A travessia do embarcadouro para a doca de entrada na ilha é tão rápida que ridiculariza a epopeia rodoviária que tínhamos enfrentado para ali chegar.
De San Blas para norte, sucederam-se auto-estradas recém-construídas.
A elas, um percurso labiríntico, por estradas e estradinhas cada vez mais estreitas, entre pueblos perdidos na planura ressequida do estado de Nayarit.
O derradeiro trecho sobre asfalto, com mais de 10 km, cumprimo-lo já por águas tresmalhadas da Laguna Grande de Mexcaltitán, uma lagoa na iminência do Pacífico, imensa, se bem que não tanto como outras a norte.
Nesse preâmbulo asfaltado, velam-na, de ambos os lados, sebes de mangues sem fim, altas e densas. A espaços, riachos, grandes poças e outros corpos de água menos definidos, quebram a ditadura do manguezal.
Alguns desses hiatos revelam-nos grupos e famílias de pescadores, munidos de linhas e redes, entretidos com o peixe que por ali abunda.
Sem aviso, a recta interminável dá de si. Para os fundos do Embarcadero de Tuxpan, uma margem terrosa que faz, ao mesmo tempo, de porto e de parque de estacionamento.
O arrumador de serviço indica-nos de onde zarpam os barcos. Aproximamo-nos do pontão convencidos de que iríamos esperar pela próxima saída.
O barqueiro apresta-se a explicar que os procedimentos eram outros: “Não amigos, isto aqui é mais passageiro chega, passageiro parte. A ilha está já ali.”
Mexcaltitán à Vista. Enfim.
Passamos para bordo da embarcação coberta. Nuns poucos minutos, cruzamo-nos com dois barcos quase iguais. Instantes depois, chegamos ao molhe mais próximo da ilha de Mexcaltitán.
Decora-o um mural em formato panorâmico, com o centro à sombra de um abrigo telhado que protege o desenho de um medalhão ancestral.
No extremo esquerdo, um indígena de tanga manobra uma canoa, em jeito de gondoleiro.
No oposto, destaca-se o que nos parece um rei, ou imperador, enfiado num elmo emplumado. Ainda estávamos por desembarcar. A ilha e os seus ilhéus já tratavam de nos convencer da sua magnitude histórica.
Passamos do barco para o molhe. Dois moradores carregam colchões prestes a ser mudados para outras paragens.
Um outro, debate-se com a rede telefónica instável da zona, numa chamada emocional que, como acontece com as suas saudades, vai e vem.
Avançamos para o âmago da ilha. Umas poucas dezenas de passos e damos entrada na Plaza Central.
Comprovamos, assim, a pequenez quase radial de Mexcaltitán, que tem um perímetro de cerca de mil metros, 400 m de norte a sul, 350 m de este a oeste.
Os Peregrinos Católicos de Mexcaltitán
A um Domingo à tarde, a povoação acolhe um bom número de forasteiros.
Uma parte são turistas.
Como viríamos a apurar, muitos mais eram Cristãos, ali reunidos em função das missas de um padre colombiano que conquistara o apreço e a simpatia de uma comunidade crescente de fiéis.
Tantos que não cabiam na igreja de San Pedro y San Pablo, o templo católico convencional da ilha, o mais antigo e diminuto, que encontramos frequentado por uma família compenetrada nas suas preces, mas não tanto como desejariam.
Um estranho murmurar ressoa nos fundos do altar. Vem do extremo oposto da praça, do lado de lá do coreto e da palmeira que lhe faz companhia, uma buriti, assim nos parece.
Durante a manhã, as várias comitivas cristãs desembarcadas na ilha tinham-se aglomerado no edifício mais desafogado do Museu del Origen.
Do interior, emanavam as palavras proféticas do tal padre colombiano idolatrado, Carlos Cancelado e os gritos e gemidos de fiéis comovidos, num estado de absoluto êxtase.
Na praça, outros nativos entregavam-se à prioridade mundana da sua subsistência.
Entre os devotos e os turistas, mais e mais visitantes desembarcavam na ilha.
Os ilhéus com olho para o negócio, esperavam-nos em bancas de recuerdos e do artesanato colorido huichol, uma etnia indígena dos estados ocidentais do México, incluindo o de Nayarit que continuávamos a descobrir.
Uma Ilha que Vive em Função do Camarão
Outros, expunham uma panóplia de petiscos e especialidades que os mexicanos tratam por antojitos, e as bebidas preferidas da nação. As micheladas e as cheladas, as especiais de Mexcaltitán, com sabor a camarão.
O artrópode avermelhado é, afinal de contas, o produto principal e a maior fonte de receita da ilha. Os pescadores capturam-no, sobretudo entre Maio e Agosto e das três da madrugada até de manhã.
Vemos o fruto do mar e do seu trabalho a secar ao sol tropical, sobre lonas de plástico verde.
Os restaurantes locais servem-no fresco e em abundância em ceviches gloriosos e noutros pratos incontornáveis, as albóndigas de camarón barbón e o tlaxtihuil, um caldo tradicional que resulta de uma cozedura de milho com camarão.
A loja domiciliar “Angélica” anuncia que vende gelatina, mas, com maior destaque, tamales de camarón.
Um dos restaurantes da Plaza Central, humilde, popular como nenhum outro e em que acabamos por almoçar, denomina-se, aliás, “El Camarón”.
As Chuvas que Tornam Mexcaltitán a Veneza do México,
Saímos à descoberta do resto da ilha.
Uma rua circular, a Venecia, permite-nos percorrê-la, em volta, por entre o casario térreo pintado de um sortido de tons vivos, à boa moda mexicana, já não no branco e vermelho que tinge boa parte da Plaza Central.
Em plena época seca deste ocidente do México, as águas da lagoa estão baixas. Descem de dia para dia.
Como nos explica, de tronco nu, o señor Cuauhtémoc, o perito em consertar ventoinhas da povoação, em Maio, o calor e a humidade tornam-se insuportáveis.
Assim que o sol sobe no horizonte, as pessoas quase não conseguem sair de casa.
É quando mais solicitam os seus serviços, quase sempre com urgência.
De Junho a Novembro, as chuvas constantes e fortes inflam a lagoa sem apelo. Em vez de caminharem pela povoação, os cerca de oitocentos moradores percorrem-na de barco.
A calle Venecia, como o apodo de Veneza mexicana de Mexcaltitán, ilustram a época anfíbia e ainda mais excêntrica da ilha.
No pré-estio que atravessamos, o caudal ao largo da ponta sudeste de Mexcaltitán e do seu embarcadouro revela uma língua de areia.
Tornou-se o pouso predilecto de dezenas de pelicanos-brancos-americanos e de umas poucas outras aves que estes toleram, sobrevoadas e atormentadas por fragatas oportunistas.
Enquanto secam as penas, as aves habitantes do ilhéu efémero, mantêm-se de olho nos peixes.
Nos que por ali nadam e nos que os pescadores descarregam quando regressam ao ancoradouro enlameado aquém da calle Miguel Hidalgo.
Foi essa a rua eleita para honrar o pai da independência do México.
O Mito eventualmente Real da Aztlán dos Aztecas
À imagem de milhares de outras ruas e avenidas dos quatro cantos da nação.
Segundo defendem vários historiadores, o papel de Mexcaltitán na formação da mexicanidade terá sido muito anterior. E, em termos históricos, tão ou mais crucial.
O termo azteca, mais tarde com sinónimo no mexica (de Vale de México), define o povo que partiu de Aztlán, sua uma terra ancestral. Aztlán seria uma ilha luxuriante situada num grande lago, repleta de aves e de animais em que os indígenas pescavam e caçavam a partir de canoas, entre jardins flutuantes de milheirais e plantações complementares.
Um sector dos historiadores defende que, apesar da sua menção em antigos escritos aztecas e da crença que nela coloca o já secular Movimento Chicano, Aztlán nunca passou de um lugar mitológico.
Alguns, com destaque para o político e arqueólogo Alfredo Chavero (1841-1906) e para Wigberto Jimenéz Moreno afirmaram-se apologistas da sua real existência.
Quem os contesta sublinha que torna a sua teoria mais suspeita o facto de se ter disseminado a partir de 1970.
Na década em que os mexicanos e os americanos “descobriram” as maravilhas do estado de Nayarit e as suas autoridades se começaram a esforçar para o promover.
Seja como for, Chavero, Moreno e adeptos das suas postulações afiançam que, com base nesses mesmo escritos e noutros dos conquistadores e cronistas espanhóis, Mexcaltitán teria sido a tal ilha que os Aztecas deixaram, em 1091.
Que de lá partiram para uma peregrinação rumo a sul, em busca de paragens apontadas pelas divindades, em que deviam assentar e fundar a sua própria nação.
Mexcaltitán, e a Tese do Ponto de Partida para Tenochtitlán
Sabe-se, hoje, sem grandes margens para dúvidas, que o lugar a que os Aztecas chegaram foi Tenochtitlán, uma ilha situada no lago de Texcoco, em pleno Vale do México.
Os escritos narraram que Tenochtitlán foi revelado, aos aztecas, por Huitzilopochtli, deus do Sol, através da visão de uma águia pousada que devorava uma cobra sobre um cacto. Essa cena animal consta, ainda hoje, centrada, na bandeira nacional vermelha, verde e branca do México.
Os aztecas transformaram Tenochtitlán numa cidade-estado poderosa, capital de um grande Império que expandiram para sul, até se depararem com o império rival dos Maias e até que, em 1521, Hernán Cortéz e os conquistadores a seu mando, apoiados por milhares de indígenas rivais, os derrotaram.
Por altura da nossa incursão a Mexcaltitán, não detectámos outros estrangeiros na ilha.
Todos os visitantes, incluindo as centenas que vimos de saída da missa do padre Cancelado, a zarparem para uma ilha secundária e rumo ao Embarcadero La Batanga, eram mexicanos de Nayarit, de outros estados e paragens.
A dúvida que subsiste e que, por certo, para sempre subsistirá está em se Mexcaltitán é ou não a terra de origem dos seus ancestrais.