É Domingo à tarde. Mtskheta enfrenta um frenesim cerimonial.
Percorremos a ruela que dá acesso ao domínio da catedral Svetitskhoveli. No sentido contrário, um ex-noivo carrega a esposa ao colo, sobre um calçadão irregular.
Por fim, a muralha que protege o grande templo ortodoxo da cidade cede a um portão entreaberto. Passamos para o interior.
Um grupo de vendedoras de flores e de pedintes, sentados num banco de madeira reclamam a quem entra um gesto de caridade.
A Azáfama Cerimonial-Ortodoxa da catedral Svetitskhoveli
Quem entra de vez, impressiona-se com a imponência da catedral, empilhada em quatro níveis, até à cúpula abençoada por cruz dourada que a aclama.
Surgem mais fiéis da penumbra emoldurada da entrada na nave, entre eles, duas convidadas, uma loura, outra morena, ajustadas a vestidos elegantes.
Logo, nova noiva, auxiliada por o que estimamos ser uma dama d’honor, também ela a resplandecer de alvura.
Com o fim de semana a aproximar-se do término, o ciclo cerimonial prossegue, a forte ritmo.
Internamo-nos na abadia do Pilar da Vida.
Crentes acendem velas, sussurram as suas preces e leem trechos da Bíblia, diante de uma imagem de Cristo crucificado, dourada pela luz da multitude de chamas.
Depois de um Matrimónio, Outro Casamento
Na iminência do altar, damos com novo matrimónio, protocolar e sumptuoso à altura da ortodoxia cristã anfitriã.
Padrinhos e noivos seguram velas. Os nubentes, distinguidos e louvados por coroas prateadas, são conduzidos na cerimónia por um sacerdote de longas barbas negras, enfiado numa batina tom de sangue debruada e adornada com padrões e símbolos religiosos.
O padre abandona o seu púlpito, a segurar uma cruz brilhante abaixo do queixo. Puxa os noivos pelas mãos até diante do iconostásio.
Ali, posiciona a noiva à esquerda, o noivo à direita.
Depois, ao contrário.
De acordo com instruções da sua liturgia, o casal beija ambos os lados da divisória decorada por imagem de santos. Quando volta ao sacerdote, este, sela a sua união, felicitada pelos familiares em espera que, logo, debandam para o átrio.
Chegados a um outro recanto lúgubre, um segundo padre celebra um baptismo, criança mergulhada na água sagrada por três vezes, numa sequência de movimentos ágeis.
Ainda os pais acalmam e secam a criança, já um próximo duo casamenteiro está alinhado na casa de partida matrimonial, tanto eles como os padrinhos, em trajes georgianos tradicionais, todos a aguardarem que o sacerdote das bodas se recomponha da anterior e reapareça no seu posto.
Esta azáfama ortodoxa em que deambulamos e que registamos tem a sua óbvia razão de ser. A catedral Svetitskhoveli não é a maior igreja da Geórgia. Esse título pertence à Catedral da Santa Trindade, de Tbilissi.
Mtskheta e a Génese do Cristianismo da Geórgia
É, no entanto, uma das importantes e veneradas da Geórgia e do Cáucaso, uma das quatro principais igrejas do “mundo” ortodoxo georgiano.
Com o passar dos anos, o protagonismo religioso da catedral muralhada, alastrou-se a Mtskheta em geral.
Mtskheta foi o lugar em que, em 337 d.C., os monarcas da Ibéria proclamaram o Cristianismo a religião do seu reino. No século seguinte, a Cristandade estava consolidada.
A Ibéria pôde eleger o seu primeiro Catholicus e determinar que teria como residência Svetitskhoveli, à época, uma fracção do complexo defensivo e religioso que se tornaria.
Conscientes da relevância que a povoação estava a conquistar, os monarcas ditaram a sua múltipla fortificação, assente nas citadelas de Armazi, de Tsitsamuri e de Sarkine.
A História do Templo Pioneiro de Svetitskhoveli
Svetitskhoveli ficou conhecida como o lugar de enterro do manto que Cristo usou antes de ser crucificado, levado de Jerusalém por judeus desta região do Cáucaso e diz-se que guardado sob um cibório erguido no século XVII.
Com o passar do tempo, a pequena igreja de madeira pioneira de Svetitskhoveli, do século IV, deixou de servir os propósitos dos recém-convertidos, Cristãos.
Dá entrada o século V. Atento às necessidades do Catholicus e do povo, um monarca de seu nome Vakhtang Gorgasali (nascido Kartli) ditou a construção de uma basílica desafogada, à data, a maior igreja da actual Geórgia.
Essa basílica perdurou, como tal, até ao século XI. Até que a comunidade cristã voltou a aumentar demasiado para o espaço que o templo oferecia. O Catholicus de então, reclamou uma nova, ainda mais ampla. O resultado subsiste na deslumbrante catedral Svetitskhoveli de hoje.
Do século XI em diante, Svetitskhoveli afirmou-se ainda o lugar da coroação e última morada de uma série de reis da região. Esse estatuto transferiu-se para o subsequente reino da Geórgia. Manteve-se até ao século XIX, quando o Império Russo incorporou a Geórgia.
Voltas de Fé, pela Catedral-Mãe de Svetitskhoveli
Mesmo se situada a meros 20km da capital Tbilissi, e com menos de oito mil habitantes, Mtskheta assumiu-se a sede da Igreja Ortodoxa Georgiana.
Tornou-se um centro de peregrinação e religiosidade que a coexistência do mosteiro de Jvari e de distintos templos ortodoxos místicos só veio reforçar. Viríamos a desvendá-los.
No entretanto, continuamos a explorar o reduto murado, que o sol poente fazia dourado, de Svetitskhoveli. Vemos dois crentes arrastarem uma ovelha pelo lombo e orelhas.
Deixam-na a pastar sobre um ervado, junto de um sacerdote num hábito todo negro que fala ao telemóvel.
Contornamos uma esquina do templo.
Sentados num banco de mármore, contra uma parede de pedra, os dois padres que tínhamos acompanhado nos sucessivos casamentos e baptismos, recuperam do desgaste das suas tarefas, lado a lado, ambos com dois grandes crucifixos dourados a penderem sobre o peito.
Nenhum falava uma língua que nos permitisse comunicar, apenas georgiano e russo. Como tal, esboçamos um pedido de os fotografarmos, desejo que vemos de imediato concedido.
Os sacerdotes posam, pesados e orgulhosos, da sua preponderância na sociedade georgiana. Após o que os deixamos entregues à conversa que tínhamos interrompido.
Por fim, deixamos Svetitskhoveli aos fiéis. Primeiro, de volta à ruela calçada, entre charretes, diospireiros sobrecarregados e lojas de itens religiosos e recordações já quase à sombra.
Ascensão às Alturas Panorâmicas do Mosteiro de Jvari
Momentos mais tarde, rumo ao cimo panorâmico do mosteiro de Jvari, situado nos arredores de Mtskheta.
Sem que o esperássemos, voltamos a cruzar-nos com pares recém-casados, acompanhados dos seus séquitos de familiares e de amigos, livres das formalidades ortodoxas e, como tal, espontâneos e divertidos.
O duo que casara, em Svetitskhoveli, em trajes tradicionais georgianos, beija-se como se não houvesse amanhã, filmado por um compincha promovido a cineasta.
Completada a cena, inauguram a descida de volta à cidade, numa romaria de tal maneira eufórica que a ex-noiva ignora que a cauda do seu vestido varre o chão.
Observamo-los sumirem-se nos fundos do trilho da colina. E o sol fazer o mesmo para o lado iluminado do Mundo.
Holofotes destacam o mosteiro de Jvari do crepúsculo, uma vez mais em dourado, sobre a orla vertiginosa em que os cristãos pioneiros do reino da Ibéria o ergueram, decorria o século VI.
A iluminação artificial gera silhuetas que admiramos a alongarem-se e encurtarem, numa dança caprichosa de luz e breu.
Assim entretidos, vencemos os 656 metros do monte Jvari. Deslumbramo-nos com os panoramas grandiosos que nos revela.
O Fluxo dos Grandes Rios Georgianos entre Países Ortodoxos e Muçulmanos
Abaixo, o rio Aragvi une-se ao Mtkvari (também conhecido por Kura), na sua própria comunhão fluvial, dali, destinado ao Mar Cáspio, com passagem sinuosa por Tbilissi e boa parte do vizinho Azerbaijão.
Por um capricho da História, o Azerbaijão tornou-se uma nação muçulmana, como o são o Daguestão e a Chechénia a norte. A Turquia, a oeste e o Irão, a sul.
Malgrado a disseminação islâmica em seu torno, a Geórgia e a Arménia mantêm-se cunhos milenares do Cristianismo, bastiões e difusores da fé em Cristo, desde pouco depois da sua Ressurreição.
Na Arménia, a sede do Cristianismo Ortodoxo e assento do Catholicos está em Etchmiadzin.
Na Geórgia, o assento equivalente permanece na Mtskheta de todas as missas, casamentos, crismas e baptismos, cidade santa do Cáucaso e uma das há mais tempo habitadas em contínuo à face da Terra.