“Maravilhosa, não vos parece? Não é por acaso que lhe chamam “La Linda!”
Gaba-se assim Roberto – um nativo que conduz passeios guiados pelo centro histórico de Salta – quando se apercebe que fotografamos cada recanto com interesse redobrado. “Buenos Aires pode ser a capital, Córdoba tem todas as suas velhas Missões mas olhem que não encontram, por lá, uma Andaluzia sul-americana como nós temos aqui”.
Uma simples caminhada através do centro histórico desvenda-nos o edifício do cabildo (a antiga edilidade), a catedral e várias casas da época dos vice-reis, com as suas fachadas e varandas majestosas.
Sente-se, nas ruas, o peso da religiosidade imposta pelas igrejas. De quando em quando, passam grupos de freiras vindas ou a caminho dos conventos.
Para lá da capital homónima, a província de Salta é uma manta de retalhos paisagísticos. Compreende uma panóplia de ambientes, relevos e climas difícil de encontrar noutras partes da Argentina.
Da savana chaqueña (área mais próxima ao Paraguai) aos planaltos andinos, sucedem-se desertos e oásis, montanhas cobertas por selva luxuriante e cordilheiras áridas.
Tal como na província vizinha do sul, Mendoza, no extremo oeste da região, os picos nevados remotos superam os 6.000 metros de altitude.
Nacional Argentina 68 Adentro. De Salta a Cafayate
De Salta em direcção a sul, a nacional 68 serpenteia entre vales e desfiladeiros cada vez mais secos e avermelhados.
Fazem-nos lembrar os cenários do Oeste índio e “cowboy” dos Estados Unidos. Assim que chegamos a Cafayate, a Argentina colonial reclama e reconquista o protagonismo.
Nos dias que correm, Cafayate abriga uma população dedicada de artesãos de prata, tecidos e peles mas é mais conhecida graças à sua reputada produção de torrontés, um vinho branco frutuoso que se diz acompanhar, na perfeição, as idolatradas empanadas saltenhas.
Encontramo-las de quando em quando em bares perdidos na vastidão rodoviária que continuávamos a percorrer.
Ruta Nacional 40. Valles Calchaquies rumo à Quebrada del Toro
Na manhã seguinte, saímos para a Ruta Nacional 40. Aos poucos, voltamos a aproximar-nos dos Andes. Os Valles Calchaquíes abrem-se à estrada de ripio em Chicoana e prolongam-se pela Cuesta del Obispo.
Desvendam-nos lugarejos rurais alienados envoltos por pastos de encosta em que o gado se alimenta de forma vertiginosa.
E por campos agrícolas profundos, preenchidos por minifúndios pintados de tons de verdes e amarelos.
Pouco depois, passamos por Cachi. Sempre a conquistar altitude, entramos no Parque Nacional Los Cardones.
Percebemos os seus limiares bem demarcados por uma profusão de cactos com formas distintas que a população autóctone se habituou a imaginar como vigilantes dos montes, das manadas de vicuñas, dos guanacos, dos pumas, de gatos monteses e de outras espécies com nomes locais excêntricos.
Para norte, impõe-se no mapa a ainda mais vasta Quebrada del Toro. Segundo a crença predominante, o ex-líbris da província de Salta recebeu o seu nome por ter sido, durante muitos anos, rota de arrieiros que se dirigiam para o Chile.
E por os vaqueiros usarem estas zonas baixas e verdejantes do vale para engordarem os animais que conduziam.
Só que a teoria é contestada por uma facção minoritária que defende que a palavra toro tem origem indígena (provavelmente aymara) e significa “água barrenta”.
Na Rota do Tren a Las Nubes
Seja qual for a explicação correcta, a forma mais popular de descobrir a região é subir a bordo do Tren a Las Nubes. Enquanto explorávamos estas paragens, no entanto, o comboio mantinha-se desactivado para uma renovação urgente.
Quando tudo anda sobre carris, a composição parte da gare General Belgrano, em Salta. Avança ao longo de 217km, por um percurso sinuoso que penetra nas montanhas e visita mais alguns pequenos pueblos andinos com grande significado histórico.
Após atingir a meseta salteña, o Tren de las Nubes detém-se em San António de los Cobres. Mesmo de carro, esta povoação surge-nos como uma visão surreal de adobe e lata perdida na imensidão inóspita.
San António de los Cobres cresceu como entreposto dos circuitos das caravanas de mulas que ligavam o Peru à Argentina. E, mais tarde, o país das pampas às minas de nitrato do Chile, o mesmo composto químico que fertilizou, durante décadas, o solo agrícola português.
Nos dias que correm, San António é a penúltima estação antes do viaduto La Polvorilla que encontramos já a 4220 metros de altitude.
As Salinas Sem Fim das Terras Altas Andinas
Dali para a frente, continuamos pelas estradas improvisadas de terra, cascalho e areia da puña andina, a par com manadas de mulas selvagens, perseguidos por pés-de-vento e outros caprichos barométricos.
Vencidas mais algumas dezenas de quilómetros, vislumbramos a miragem real das Salinas Grandes. Confirmam-se um conjunto de salares planos e visualmente infindáveis em que só a actividade longínqua de alguns trabalhadores a carregar um camião parece quebrar a uniformidade branca do cenário.
Deixamos o trilho demarcado. Sobre uma superfície estaladiça, chegamos às suas imediações quando o camião está prestes a partir. Ficamos à conversa com o guarda indígena da exploração.
Não demora a confessar-nos a solidão a que o seu emprego o votou: “Amigos, chegam a passar-se semanas em que não vejo mais nada que sal … De quando em quando, aparecem por aí uns coiotes desesperados, atraídos pelo cheiro do que estou a cozinhar. Às vezes, nem isso…“
Por Fim, em Terras de Jujuy. A Quebrada de Humahuaca
Com a fronteira chilena a anunciar-se uma derradeira vez, invertemos marcha para leste. Quando entramos no território de Jujuy, mandam-nos parar dois agentes da autoridade que aguardavam à beira da via. “Temos um caso urgente para resolver em Humahuaca, precisamos que nos levem até lá”, atira o guarda Rodriguez com pouco à vontade.
Começamos por hesitar. Rendidos à expressão simpática do segundo polícia e à falta de alternativas viáveis, acabamos por ceder sem resistência.
Vencida a desconfiança, durante mais de duas horas, a conversa desenrola-se, alegre. Toca temas diversos com destaques óbvios para os futebóis argentinos e português e para o estado quase sempre problemático das finanças das duas nações.
À medida que flui, o diálogo permite-nos também perceber que aquela boleia forçada se devia, na realidade, à longa crise argentina. Em específico, à falta de verbas das esquadras do norte do país para assegurarem transporte aos seus agentes.
Ainda a caminho da fronteira com a Bolívia, passamos a desbravar a Pampa Azul. Lá se destacam, pela sua dimensão quase urbana, Abra Pampa, Trés Cruces, Casabindo e La Quiaca.
La Quiaca. O Limiar Noroeste da Argentina
Dedicamos uma atenção mínima às três primeiras. O estatuto de limite setentrional da Argentina e o perfil suspeito de La Quiaca desperta-nos a curiosidade.
Lá exploramos o mercado local, instalado, por conveniência, a apenas umas centenas de metros da aduana.
Até ao anoitecer, observamos, deliciados, os contrabandos e negócios duvidosos dos visitantes bolivianos e argentinos. Entre conversas casuais, recusamos ofertas de lucros irresistíveis.
No dia seguinte, retomamos a ruta nacional 9 de regresso a Jujuy e a Salta, sempre pelos confins andinos da América do Sul.