Quando se contempla a cidade do topo da Serra do Sincorá dificilmente se consegue imaginar o estranho cenário provisório que esteve na origem do seu nome.
Nesses primeiros tempos Lençóis pouco mais era que um reduto garimpeiro caótico. Tornava milionários os poderosos e esmagava os mais fracos. Hoje, bastam uns dias para se constatar que, do seu passado, restam quase só os aspectos positivos.
Foi algo que o governo brasileiro, perante a pressão do MCC – o Movimento de Criatividade Comunitária criado por defensores da região – acabou por favorecer. Foi proibida a prospecção industrial.
Em 1973, Lençóis da Bahia foi promovida a Património Nacional, um título apenas concedido às verdadeiras preciosidades históricas e naturais brasileiras.
É mais que apenas isso que faz de Lençóis tão especial. Existem inúmeras cidades belas por esse mundo fora que não exercem o seu magnetismo. Há qualquer coisa mais. Qualquer coisa que ultrapassa os sentidos.
Ao fim de algum tempo, torna-se óbvio que Lençóis e os seus 6400 habitantes vivem uma relação de amor incondicional e que, por sua vez, geram paixão nos visitantes brasileiros e estrangeiros.
Estes, ligados a outras cidades e a outras pessoas, quando se vêem obrigados a partir, acabam por fazê-lo contrariados. Nem todos os forasteiros se conformam com a despedida. De tempos a tempos, lá surge mais um que não resiste à felicidade prometida e acaba por ficar.
Dona Eulina, a proprietária da pousada em que nos hospedamos, foi uma das contempladas. Baiana de nascimento, mudou-se para São Paulo ainda criança. Lá passou grande parte dos seus quase 60 anos.
Nos últimos quinze, dava consigo a sonhar com um lugar diferente, envolto de uma atmosfera única de afectividade e bem-estar, um fenómeno que nos descreve com uma emoção renovada: “Numas curtas férias, resolvi voltar à Bahia com a minha filha.
Por mero acaso, passámos por Lençóis. Passeando pelas calçadas, reconheci o refúgio dos meus sonhos. Depois de vencer os receios próprios da mudança, apressei a reforma, comprei uma casa e abri o negócio que giro agora, com o meu marido Roberto. Nunca mais quisemos sair daqui.”
Dos Lençóis Originais a Domínio de Coronéis
Apesar das condições precárias, a vida correu de feição a muitos dos fundadores da povoação.
As primeiras jazidas de diamantes, extensão geológica das jazidas do deserto do Namibe separada pelo Atlântico com a deriva dos continentes, foram descobertas na Chapada Velha, em 1822, por bandeirantes que procuravam ouro e escravos mas não desdenhavam formas alternativas de enriquecer.
Vinte e dois anos depois, um tal de “Sinhô” Casusa do Prado achou algumas pedras preciosas com maior valor. A região atraiu milhares de caça-fortunas, uns já abastados e opulentos a quem a riqueza não chegava, outros que só possuíam a roupa que vestiam.
Perante a falta de habitações e outras infra-estruturas, os recém-chegados instalaram-se em tendas provisórias. Vistas das colinas em redor, essas tendas pareciam lençóis estendidos ao vento. Foi essa visão descomunal que ditou o nome da futura vila.
Num ápice, circularam pelo Brasil lendas de tesouros incalculáveis saídos dos leitos dos rios e riachos da região. A migração intensificou-se. Anos mais tarde, os acampamentos de garimpeiros tinham já dado lugar a diversas povoações: Vila Velha de Palmeiras, Andaraí, Piatã, Igatu.
E a mais apetecida de todas, Lençóis da Bahia.
O Fim dos Diamantes Finos, e a Exportação das Gemas Toscas
No auge do ciclo diamantífero, Lençóis tornou-se na maior fornecedora mundial de todo o tipo de diamantes. A pouco e pouco, começaram a predominar as gemas toscas. Eram úteis apenas para fins industriais.
Graças ao seu poder perfurativo, revelavam-se perfeitas para mega-projectos de construção civil então conduzidos pelos franceses.
Foram os casos do Canal do Panamá, do túnel de Saint Gothard e do metro de Londres.
A compra sistemática e em grandes quantidades destas pedras menos preciosas provou-se motivo suficiente para o governo de Paris instalar um vice-consulado em Lençóis. Como seria de esperar, da arquitectura à etiqueta, Lençóis e os seus negociantes afrancesaram-se.
No início do século XX, Lençóis e as cidades em redor tivessem viram desvanecer-se grande parte do seu potencial económico. Os franceses partiram.
O principal testemunho da sua presença é, ainda hoje, o requintado edifício creme do vice-consulado, onde os diamantes eram negociados com os representantes europeus.
Depois da era francesa, com a liberdade cada vez mais real dos escravos e a perda das enormes verbas obtidas com a venda dos diamantes, Lençóis adaptou-se a um novo estilo de vida.
A Era Bélica de Horácio de Mattos e dos Coronéis Rivais
A partir de 1920, a cidade havia regredido de tal forma que se tornou num domínio decadente, disputado por coronéis e seus jagunços. O mais famoso de todos, o destemido Horácio de Mattos destacou-se dos demais com recurso à força e à irreverência.
Levou mesmo o governo brasileiro de Epitácio Pessoa a assinar com ele um acordo de pacificação. Como veremos mais à frente, na região, assim como por todo o Sertão, um coronel líder de um exército jagunceiro, desde que vitorioso, podia ser um herói. Este, até a praça principal da cidade tem com o seu nome.
Malgrado o declínio económico trazido pelo século XX e a perturbação social, na sua fase de decadência já Lençóis se havia consolidado como uma impressionante unidade arquitectónica.
O casario da cidade desenvolveu-se em boa parte devido à necessidade de exibição da sua nova aristocracia milionária. Claro está, que, tanto quanto podia, a população mais pobre fez questão de seguir o exemplo.
A praça Horácio de Mattos é o ex-líbris do casario colonial herdado. A toda a volta do seu quase rectângulo, os edifícios, de dois andares, são elegantes e coloridos. Muitos deles, ostentam fachadas trabalhadas e janelas e portas ogivais. Distribuídos pelos prédios, surgem candeeiros parisienses de tons cinza que conferem ainda mais requinte ao conjunto.
À noite, asseguram uma iluminação suave mas quente.
Depois do Calor, a Festa de Lençóis
À tarde, as praças e ruas de Lençóis, fustigadas pelo sol tropical, mantêm-se quase desertas. Com o fim do dia, os turistas e os séquitos que os guiam e acompanham retornam das actividades na Chapada Diamantina.
Por essa altura, os Lençoienses saem também das suas casas. A cidade anima-se. Dois dos lugares preferidos para a janta e convívio seguinte são o largo que surge a meio da rua das Pedras e a Avenida Senhor dos Passos.
Ali, os pequenos restaurantes e as bancas improvisadas servem especialidades baianas como o pastel “acarajé” acompanhadas de “chopes” geladinhos, caipirinhas ou sucos naturais.
Com frequência, a banda local reúne-se para ensaiar e inunda a cidade com os tons graves e agudos das mais genuínas composições brasileiras.
A Vida Nocturna e a Que Subsiste Noite Fora
Durante muito tempo a famosa rua das Pedras albergou o “brega”, a prostituição que sempre acompanhava os novos focos prospectores. É, agora, a par com as esplanadas da praça Horácio de Mattos, responsável por uma animação nocturna menos polémica.
Nela se situa o famoso Club 7, mais conhecido por Inferninho, um “disco-bar” à moda local, que passa versões “tecno” de temas sertanenses e serve inúmeros tipos de cachaça. Esta combinação, em conjunto com a inquestionável boa-disposição dos clientes habituais transformou a “danceteria” num lugar de culto para os visitantes mais jovens da cidade.
A partir das duas ou três da manhã, acredite-se ou não, a única alternativa dançante ao Inferninho tem o nome de Veneno Café bar. Nem tudo é assim tão profano ou soa a tóxico por estas paragens.
A religião continua a ter enorme importância, em Lençóis. Como pudemos assistir, apesar das influências dos ritos e rituais africanos, (caso do Jarê, a variação regional do Candomblé) os dias santos ainda se celebram à velha maneira portuguesa.
Deambulamos pela cidade quando somos surpreendidos pelo som de cânticos distantes acompanhados pelo rebentar de foguetes. Ao olharmos para trás, verificamos que um enorme cortejo deixa da praça Horácio de Mattos e entra na Avenida 7 de Setembro, em direcção ao coreto.
Com a silhueta difusa do casario como fundo e a luz de centenas de archotes a rasgar o lusco-fusco, a cena prova-se digna de um filme passado na Idade Média e com excelente fotografia.
Após contornar o coreto, a procissão dirige-se à sua última paragem, a Igreja do Rosário. Ali, junta-se-lhe mais uma multidão de crentes que entoam temas litúrgicos.
Autorizam-nos a subir à varanda do coro. Do cimo, assistirmos à cerimónia em formato panorâmico. O seu espectáculo de devoção reforça-nos a impressão de que, passada a febre dos diamantes, Lençóis é, agora, sobretudo, um retiro acolhedor, crente e espiritual.
O Ribeirão do Meio e o Último Estertor do Garimpo
Entre os vários cursos de água com que a serra de Sincorá refresca Lençóis, os três principais, os Ribeirões do Meio, de Cima e de Baixo deliciam o povo e maravilham os forasteiros.
Principalmente aos fins-de-semana, logo pela manhã, chegam ao Ribeirão do Meio grupos excursionistas carregados de farnéis. Da saída da cidade ao rio, são cerca de 45 minutos de caminhada descontraída.
O trilho sinuoso, quase sempre sombrio, sulca a encosta da serra. Quase no fim, revela um vale largo que se projecta do topo escarpado da montanha.
É no vértice deste vale, várias plataformas rochosas abaixo, que o ribeirão se espraia. Uma dessas plataformas dá lugar a uma rampa que a água repleta de óxido de ferro (mas limpa) e, por isso, avermelhada – continua a polir.
Foi no Ribeirão do Meio que se desenvolveu o desporto radical mais inusitado da região, o “escorreganço” artístico.
Mal chegam à pequena represa fluvial, os seus praticantes sobem a rampa rochosa do rio. Uma vez no cimo, combinam a coreografia a seguir. Logo, deixam-se escorregar a grande velocidade até entrarem na água.
E se os turistas que experimentam pelas primeiras vezes se contentam em sair incólumes de uma descida de rabo, os nativos atingiram níveis de desempenho surpreendentes. O seu limite é, agora, a imaginação.
Sentados ou de pé, de cabeça para baixo ou para cima, sozinhos ou em grupo, tudo vale para se destacarem e impressionarem as garotas do Ribeirão.
Enquanto isto, no vale acima, os derradeiros resistentes da febre do diamante continuam a tentar a sua sorte. Há algum tempo atrás, recorriam ainda bombas de água destrutivas que, entre outros malefícios, aceleravam a erosão dos leitos dos rios.
Há décadas atrás, os peritos chegaram à conclusão que a extracção dos diamantes que restam na Chapada era demasiado dispendiosa. Isso contribuiu para que, em 1995, o governo federal proibisse a prospecção industrial, e autorizasse apenas o uso dos meios tradicionais.
Por detrás da decisão esteve também o facto de Lençóis, muito mais que as vizinhas Andaraí, Palmeiras e Igatu, ser a base para a exploração turística da Chapada Diamantina.
Depois de uma fase transitória em que a economia de Lençóis passou a assentar na produção de café e mandioca, actualmente, o acolhimento dos visitantes garante a subsistência de grande parte da população.