Chief chega sobre a hora marcada.
Apressa-se a salvaguardar a integridade da sua imagem: “Disseram-me que vinham dois jornalistas. Que eu tinha que me apresentar e comportar em condições! Vamos lá ver o que se arranja”.
Apesar de originalmente da Nova Zelândia, a sua figura não podia ser mais ozzie. Ri-se sem complexo do topo do seu metro e noventa e pouco.
Veste uma camisa justa e uns mini-calções, ambos de caqui, gastos pelos quilómetros percorridos no deserto, sujos de nódoas que cabe ao tempo lavar. As botas de pele, amareladas, altas e poeirentas e um velho chapéu Akubra são os derradeiros apontamentos de um traje criado e retocado pelo Outback.
Se tivesse chegado na altura certa, Chief podia ter sido um dos pioneiros destemidos que desbravaram o interior da Austrália e ergueram a cidade de onde íamos partir à descoberta do Território do Norte.
Não foi por acaso que Alice Springs surgiu no centro geométrico da Austrália.
A Árdua Colonização do Red Centre Australiano
Na segunda metade do século XIX, grande parte do sul estava colonizado. O centro e parte do Norte eram ainda domínios incógnitos, ocupados em exclusivo pelos guardiões ancestrais aborígenes.
Em 1861-62, John McDouall Stuart liderou uma expedição ao coração do deserto. Acabaria por se tornar no primeiro europeu a atravessar a Austrália de sul a norte. E estabeleceu a rota que abriria caminho à linha de telégrafo programada para ligar Adelaide a Darwin e Darwin à Grã-Bretanha.
Mais tarde, a descoberta de ouro fluvial em grandes quantidades, a cerca de 100 km, deu origem a uma população fixa em redor de Stuart, como a colónia seria baptizada. O fim do ouro ditou que a povoação se deslocasse para próximo da estação do teleférico.
Essa povoação, por sua vez, foi chamada de Alice Springs, em honra da esposa do chefe dos correios e das nascentes que irrigavam o vasto oásis envolvente.
Eram tempos ásperos, dominados pela incerteza e em que a secura dominante da paisagem pedia soluções criativas. De acordo, as autoridades pioneiras resolveram importar camelos do noroeste da antiga Índia britânica – hoje Paquistão. Conduziam-nos, em longas caravanas, imigrantes das tribos Pathan, incorrectamente apelidados de cameleiros afegãos.
Estas caravanas resolveram por algum tempo o problema da falta de água. Com o passar dos anos, tornaram-se desnecessárias. Os camelos foram abandonados ou perdidos.
Multiplicaram-se e espalharam-se pelo deserto, de tal maneira que existem, hoje, em maior número, na Austrália, que em muitos países árabes.
Alice Springs: o Âmago Urbano do Red Centre
Alice – como é carinhosamente tratada – espraia-se ao longo do leito quase sempre seco do rio Todd. É feita de edifícios baixos, armazéns e complexos comerciais térreos que pouco ou nada bloqueiam o céu azul. Outros negócios dominantes são os bares, as agencias de turismo e as galerias de arte.
À primeira vista, tudo parece normal mas a presença aparentemente disfuncional da comunidade aborígene causa, neste entreposto turístico, mais desconforto que noutras localidades do Território do Norte.
Prova-se difícil para os visitantes recém-chegados compreender porque passam o tempo sentados na relva dos jardins ou à frente de lojas e estações de serviço.
Custam a aceitar os modos primitivos e a sua incapacidade em lidar com a marginalização a que se viram votados pela civilização ocidental que os desenraizou sem retorno.
O Desenquadramento Aborígene na Sua Própria Terra
Aqui, como por toda a Austrália, o governo australiano desculpou-se e tenta redimir-se. Paga pelos pecados cometidos em dólares australianos e com a devolução de terras de que se apropriou durante o período em que manteve uma lei que equiparava os aborígenes à fauna e flora.
Aqui, como por toda a Austrália, as medidas estão longe de resolver o que quer que seja.
Durante o trecho inicial da viagem, Chief confessa: “… não faço sempre isto. Trabalho com a comunidade prisional aborígene de Alice Springs. Sou dos poucos que os conhece e aceita”.
Confessa ainda que, mesmo assim, tem dificuldade em responder às perguntas e observações preconceituosas dos turistas australianos e estrangeiros.
Tenta mentalizá-los do valor dos aborígenes explicando aos forasteiros, nos lugares mais emblemáticos, a fascinante cultura mitológica dos indígenas.
Uluru – Ayers Rock. A Sempre Controversa Questão da Ascensão
“Não posso acreditar nisto!”, repete Kevin uma última vez, após rogar uma série de pragas.
Assim que acorda e sai do seu swag (saco cama australiano), o pequeno coreano depara-se com a maior das frustrações. Depois de um ano a trabalhar em Sydney como um autómato, sonhava com o ponto alto da viagem: contemplar o Red Centre do topo do Uluru.
Nessa manhã, o silvar estridente do bush australiano soava a más notícias.
Na tarde anterior, Chief, tinha sido bem claro. Em nome dos aborígenes Anangu, pedia a todos que não subissem. Esclarecia ainda que só impediria quem o quisesse fazer caso as condições meteorológicas o determinassem.
Contra as previsões, em vez de acalmar, o vento aumentou durante a noite. Sobre a aurora, as autoridades do parque fecharam o acesso ao trilho e facilitaram a vida ao guia.
À primeira vista simples, o tema das ascensões ao Ayers Rock – como lhe chamaram os colonos de origem britânica em homenagem ao Chief Secretary da Austrália do Sul de 1873 – é, na realidade, bastante complexo.
Reflecte a relação melindrosa que os descendentes de colonos australianos mantêm com os indígenas.
Uluru – Ayers Rock: um Rochedo no Coração Partido da Austrália
Em 1983, o primeiro-ministro Bob Hawke prometeu devolver aquela terra em particular aos seus donos tradicionais. Concordou com um plano com dez pontos que incluía a proibição de escalada do Uluru.
À boa maneira política, a promessa depressa foi esquecida. Antes da restituição oficial, foram impostos noventa e nove anos de concessão em vez dos cinquenta pré-acordados com os aborígenes.
O acesso ao topo do Uluru acabou por ser permitido, por forma a não contrariar a vontade dos milhares de visitantes mais jovens ou simplesmente em boa forma física.
O Significado Espiritual de Uluru para os aborígenes Anangu
Os aborígenes Anangu, os protectores ancestrais do rochedo e do espaço circundante, não o escalam.
Evitam fazê-lo devido ao grande significado espiritual de Uluru. Segundo as suas crenças, passar no topo, um trilho do seu Dreamtime (o passado mitológico). Também proibiram a sua escaladas por uma questão de responsabilidade pela segurança de quem acolhem.
Ao longo dos anos, contra a vontade dos aborígenes, as subidas já causaram 35 vítimas. Em cada uma das fatalidades, os aborígenes manifestaram tristeza. Malgrado o pesar dos indígenas, os australianos são um povo habituado a conviver com a aventura e o risco. De acordo, à data, não estava prevista qualquer proibição total e absoluta que os rangers do parque pusessem em prática.
Situado no canto sudoeste do vasto Território do Norte, em pleno coração do Outback, este estranho monte-ilha de arcose, tão emblemático como homogéneo e compacto, sobreviveu a milhões de anos de erosão que apagaram do mapa um maciço envolvente gigantesco mas bem mais vulnerável ao desgaste.
Com 348m de altura máxima e 9.4km de circunferência, a formação é ainda mais intrigante por mudar de cor ao longo do dia e das estações do ano, à medida que diferentes espectros de luz nele incidem.
Negação da Superstição em redor de Uluru e o Arrependimento
Demasiados dos seus cerca de 400.000 visitantes anuais não resistem ao fascínio visual e mitológico do rochedo.
Mesmo alertados pelos guias sobre a maldição que assombra a vida de quem retira pedras do Uluru, preferem arriscar e cometem o delito.
Chief desenvolve-nos um dos seus temas preferidos, com um sarcasmo insuperável: “… mais engraçado ainda é que, por descargo de consciência ou mera precaução, são vários os que se arrependem.
Depois, já nas suas casas, gastam mundos e fundos para as tentar devolver ao rochedo. Mandam-nas por correio para as agências com que viajaram e pedem-lhes que as reponham…”
Os obstáculos levantados pelas crenças aborígenes tjukurpa não se ficam, no entanto, por aí.
Em redor do monte de rocha sucedem-se as nascentes, cavernas, pequenos depósitos naturais de água e pinturas rupestres. Mas apesar da abundância de motivos, a fotografia é restringida em diversas secções em que os Anangu realizam rituais relacionados com o género e em que não admitem pessoas do sexo oposto.
O objectivo é evitar que se quebrem tabus milenares, por os indígenas virem inevitavelmente a encontrar imagens dos seus locais sagrados naquele a que chamam o mundo exterior.
Kata Djuta: o Outro Colosso Sagrado do Red Centre
A apenas 25km para oeste, acessível pela mesma Lasseter Highway que conduz ao Uluru/Ayers Rock e, depois, pela Luritja Road, impõe-se ao céu sempre azul do Red Centre um outro capricho da Terra Australis.
Trata-se de Kata Tjuta (dialecto aborígene pittjantjajara para “muitas cabeças”), uma sequência de enormes trinta e seis rochas vermelhas que cobrem uma área de quase 27 km² e têm como ponto mais alto os 1066m sobre o nível do mar do Monte Olga.
Esta elevação, em particular, deu origem a “The Olgas”, o nome ocidental dado ao cenário.
No pico do Verão australiano, a meio da tarde, também aqui o sol castiga sem piedade.
Contra toda o senso comum, revitaliza as infernais moscas do Outback que infernizam os visitantes durante as suas caminhadas por entre as rochas.
A fama dos insectos é tal que muitos chegam munidos de redes com que cobrem a cabeça e assim reforçam o exotismo marciano do lugar.
Dedicamos toda a manhã seguinte à exploração do Kings Canyon, um território escarpado e de visual Western situado na cordilheira George Gill, ainda a sudoeste de Alice Springs.
A nova caminhada começa com a conquista da Heart Attack Hill, assim baptizada devido à sua inclinação, imprópria para cardíacos.
Prossegue, por 5km, ao longo dos desfiladeiros, de mesetas labirínticas da “cidade” e das encostas e escadarias escavadas na rocha do Anfiteatro.
Só a interrompemos, para descanso, à beira do Garden of Eden, um lago cercado de vegetação densa que quebra o domínio ocre da paisagem.
Dali, por fim, regressamos ao ponto de partida do circuito e a Alice Springs.
Na capital do Red Centre, esperava-nos outra longa mas fascinante etapa rodoviária: a metade norte da Stuart Highway.