Novo México Acima, a Caminho de Taos
Por alguma razão esta zona do sul interior dos Estados Unidos ficou conhecida por “Terra do Encanto”. Justifica-se que se orgulhe do título ao ponto de as autoridades a usarem como epíteto e o escarrapacharem nas matrículas dos carros do Novo México pelo menos, desde 1999.
Seguimos num carro californiano. Na viagem entre Albuquerque e Santa Fé, surpreendem-nos temperaturas negativas.
E um nevão de toca-e-foge que depressa congela o deslumbre rodoviário em que andávamos. Quase tão rápido como chegara, o tempo frígido rumou a outras paragens.
Desviamos caminho para oeste, apontados ao Bandelier National Monument. Quando lá damos entrada, a desejada combinação de céu limpo e sol radioso abençoava-nos uma vez mais. Tínhamos dado com os primeiros testemunhos grandiosos que a civilização ameríndia Puebloana deixou a estes confins do Novo México e aos estados vizinhos do Colorado, Utah e Arizona. Não seriam, nem de longe, nem de perto, as últimas.
O Legado Puebloano do Bandelier National Monument
Caminhamos montes e encostas acima e abaixo, intrigados quanto a como, entre 1150 e 1600 d.C. se tinham instalado e prosperado em grutas e aberturas escavadas em grandes paredões de rocha e leitos de rio do Planalto de Pajarito. Exploramos as suas moradias quase milenares durante duas horas a fio. Só não prosseguimos porque, no entretanto, o sol descera mais do que esperávamos.
Taos ainda distava uma hora e meia. Apontamos a Española. Apanhamos a State Road 68 e seguimo-la na companhia do Grande, um de vários rios famosos e cinéfilos da nação ianque.
Mais abaixo no mapa, o Grande deixa o Novo México e entra no Texas. O seu caudal sinuoso marca, ali, o limiar sul deste estado e estabelece a fronteira, ziguezagueante a condizer, dos Estados Unidos com o México.
Estávamos bem a norte dessa raia que o The Donald (Trump) tornou tão polémica. A mesma fronteira em que o sempre soberbo John Wayne faz do Coronel Kirby Yorke, na liderança de um posto de cavalaria infernizado pelos índios apaches que, na longa metragem homónima lançam sucessivos raides a partir do lado mexicano.
O Grande que perseguíamos era outro, recém-nascido. Contava com umas poucas centenas de quilómetros desde a sua nascente, formada pelo aglomerar de riachos nas montanhas San Juan do Colorado.
Ao Longo do grande Rio Grande
Road 68 acima, vimo-lo passar nas imediações de sucessivas povações com nomes hispânicos: Santa Clara, Española, Pueblito, Alcalde, La Villita, Los Luceros, Velarde, Embudo, Rinconada e por aí fora.
A determinada altura do seu curso, o rio atraiçoa a RD68. Parte com a 570 e, pouco depois, com a 567, para norte. Nós, mantemo-nos fieis à State Road 68, rumo a Taos.
Chegamos já sobre novo anoitecer gélido a tempo de nos refugiarmos num motel de beira de estrada conveniente, o Super 8. Lá nos instalamos à pressa.
Mas, mudamos de ideias e de saímos disparados em direcção à igreja de San Francisco de Assis, um dos templos missionários da região, situado em Rancho de Taos, ainda hoje, palco de missas regulares.
Vindos de Santa Fé, já nos tínhamos habituado aos edifícios de adobe ora elegantes ora elegantes e monumentais do Novo México.
Peregrinação à Igreja Deserta de San Francisco de Assis
Erguida pelos Padres Franciscanos entre 1772 e 1816, a igreja revelar-se-ia apenas mais um. Isto, se a sua origem histórica não fosse a de escudo de fé contra os ataques frequentes dos índios Comanche de que os colonos se viram vítimas.
Àquela hora quase nocturna não encontramos vivalma. Nem de índios nem de cowboys, de padres franciscanos ou qualquer que fosse o género humano válido no Novo México, diga-se de passagem. Mesmo assim, ficamos a fotografá-la sob um crepúsculo que o avançar do tempo tornou religioso.
Afinal, estávamos perante uma das igrejas mais pintadas e fotografadas dos E.U.A. As orgulhosas autoridades de Taos reclamam que o é, aliás, do mundo inteiro.
A sua arquitectura colonial hispânica terá parecido humilde aos frades que a delinearam e supervisionaram. Hoje, essa simplicidade adobada e amarelada é vista como uma incrível expressão de subtileza da elegância. Justificou a adolação de Georgia O’Keeffe e de Ansel Adams, entre tantos outros pintores e fotógrafos, de artistas em geral.
Nem condicionados pelas nossas próprias limitações e pela reverência perante o edifício, queríamos deixar de dali levar um bom registo fotográfico. Esperamos, assim, pelo momento em que o amarelo-torrado da fachada iluminada e o azul da abóbada celeste mais resplandecessem e fazemos as nossas fotos, rendidos a uma trilogia distorcida do templo, da cruz de Cristo e da estátua branca de São Francisco de Assis.
A Caminho de Taos
Uns minutos depois, o breu apoderou-se do cenário. Desde o nascer do sol e de Santa Fé que vínhamos a viajar e a descobrir o âmago pós-colonial do Novo México. Àquela hora tardia, sobrava-nos uma réstia de energia. Ansiávamos pelo repouso no Super 8, o tal motel situado num vale amplo entre o já distante limiar do Deserto de Chihuahua e as montanhas de Sangre de Cristo.
A aurora prenda-nos com uma meteorologia igual à antecessora. Saímos disparados para Taos. Pode até parecer estranho mas, estávamos de tal maneira intrigados quanto ao que encontraríamos no velho Taos Pueblo que atravessámos a Taos cidade sem nos determos.
Quando verificamos o caminho no mapa, reparamos numa realidade curiosa. Até então, o rio Grande tivera o protagonismo fluvial do Novo México.
A Inesperada Confluência Fluvial do Planalto de Taos
Ali, onde Taos e o povoado secular homónimo se haviam instalado, os rios e acequias (canais) eram muitos mais. Fluíam o Lucero e o Pueblo de Taos. Estes, ramificavam-se em vários cursos secundários e voltavam a unir-se. Mais para sudoeste, o Pueblo de Taos render-se-ia ao Grande.
Todos estes fluxos irrigavam e alisavam um planalto aluvial situado acima dos 2.000 metros. Muito devido à água gerada pelo degelo a norte, a aridez do Deserto de Chihuahua dava lugar a uma área de transição para as montanhas que anunciavam as terras altas do Colorado, os seus prados e florestas. Entendíamos, assim, porque os nativos escolheram há muito esta zona para se instalarem.
Uma Aldeia de Adobe Milenar
Estacionamos à entrada de um descampado terroso. Para diante, impunha-se um conglomerado excêntrico de casas de adobe por pintar, umas empilhadas sobre as outras. Formavam uns cinco níveis habitacionais. E retalhos com arestas arredondadas, à primeira vista uniformes mas que compunham uma geometria geral inusitada.
Nos pisos térreos mais à mão dos visitantes, encontrávamos lojas exíguas e escuras de artesanias: a Taos Indian; a Dancing Hummingbird.
A maior parte, anunciava olaria, trajes e bijutaria. Uma em particular, promovia ainda contadores de histórias.
Avançamos rumo ao coração da aldeia. Sentamo-nos num banco de um lar avançado, de adobe, claro está. Um adobe tão puro que, da sua argila gretada, ainda saía palha amarela. Sem aviso, um casal abre uma porta vermelha e senta-se ao nosso lado. Eram Beatrice e Joseph, irmãos Pueblanos de etnia Tiwa. Perguntam-nos se precisamos de ajuda. Destas suas boas-vindas, a conversa veio a fluir em redor do mundo.
Conversas em Redor da Genética
“Sara, tu pareces Navajo, sabes?” Para a co-autora Sara, era mais uma etnia/nacionalidade a adicionar à sua lista. Uma porque não contava.
Até já tínhamos visitado e percorrido a Navajo Nation a norte do Grand Canyon e em redor do famoso e cinéfilo Monument Valley. Por razões que só a razão conhece foi, ali, no povoado de uma das tribos que em tempos mais rivalizaram e guerrearam com os Navajo, que a Sara se viu confrontada com tal comparação.
Os Antigos Pueblanos desta zona também são agora popularmente conhecidos por Anasazi. Ora, Anasazi é o termo há muito usado pelos Navajo para designar os seus “antigos inimigos” do sudoeste. Os descendentes dos Puebloanos desaprovam-no. Preferem ver a sua etnia tratada por Puebloanos Ancestrais. Fosse como fosse, naquele pueblo inverosímil de Taos, continuávamos em paz, entre indígenas amigáveis.
A Sara passou para o lado dos nativos. Quando contemplei o trio, não pude deixar de constatar e sentir uma base sólida na observação de Beatrice e na semelhança dos três visuais: os olhos rasgados e escuros com sobrancelhas incompletas. Os cabelos pretos e lisos e as peles de tons parecidos, o da Sara mais com a de Beatrice.
Como eu a via, a face masculina tostada e marcada pelo sol do tímido Joseph fazia dele um meio-caso à parte. Para mim, Joseph era um verdadeiro pele-vermelha, sem nada de pejorativo.
Continuamos a tagarelar à sombra e retomamos a observação de Beatrice “É que o meu pai é chinês.” explica-lhe a Sara, o que traz à baila a grande migração paleolítica dos povos asiáticos para as Américas pela Ponte Terrestre de Bering. O tema dar-nos-ia muito que falar. Na prática, concordamos em que deveriam partilhar os três uma mesma base genética de há uns 15 ou 16 mil anos atrás.
A História de Resiliência de Taos
Estima-se que Taos tenha sido fundada em redor do ano 1000 d.C. É o mais setentrional dos vários Pueblos do Novo México. Lá residem o ano inteiro cerca de 150 pessoas e, muitas mais, partilham as suas vidas entre casas modernas na cidade de Taos em redor (durante o rigor do Inverno) e os seus pequenos negócios no Pueblo, quando a meteorologia suave das restantes estações do ano o permite.
Já a cidade de Taos para que, não tarda, nos mudámos – na origem Don Fernando de Taos – resultou da colonização que se seguiu ao domínio espanhol dos Puebloanos.
Taos – a cidade – passou por revoltas indígenas contra os missionários e os encomenderos. Mais tarde, integrou o México. E com a supremacia político-militar dos E.U.A. sobre o México que resultou na entrega de boa parte do Norte Mexicano e do Novo México, também Taos mudou de “donos”.
E a sua Nova Era Artística
A excentricidade colonial de adobe de Taos, cedo atraiu uma catadupa de almas criativas. Na viragem para o século XIX, a cidade acolheu os primeiros artistas, entusiasmados pela inspiração daquelas paragens tão distintas dos E.U.A.
As obras da comunidade local de artistas e os seus estúdios, entretanto considerados históricos, ajudaram a notabilizar a povoação e a lá chamar forasteiros curiosos, como nós.
Outros dos seus edifícios emblemáticos é casa de Kit Carson, um lendário pioneiro norte-americano, caçador de peles, agente de assuntos índios que intermediou incontáveis disputas entre os colonos e os indígenas, mais tarde, promovido a oficial do exército dos Estados Unidos.
Carson permanece sepultado nas imediações do lar-museu, junto da terceira esposa Josefa Jaramillo.
Enriquecida pelo seu extraordinário passado multi-étnico, multinacional, multi um pouco de tudo, Taos prossegue no trilho da sua história, mais viva que nunca.