Chegámos ao areal da praia Cañaveral desgastados pela longa caminhada, ensopados em suor, com um objectivo claro.
Largar a tralha amochilada que nos prensava os ombros, despir a roupa escassa e enfiarmo-nos na água com tom de esmeralda, ali a uns poucos passos. Já ensaiávamos os mergulhos no mar cálido do Parque Nacional Tayrona quando estranhámos o seu estranho fluxo diagonal.
Contrariados, abortámos a submersão para inspeccionarmos uma tabuleta de madeira espetada nas imediações. “Proibido Nadar. Não seja parte da estatística.” destacava-se da longa mensagem. Para bons entendedores, quatro ou cinco palavras bastaram.
E obrigam-nos a caminhar uns oitocentos metros adicionais.
Nesse derradeiro trecho, cruzamo-nos com três jovens banhistas em óbvio modo de descontração balnear.
Partilham fruta tropical sobre um banco de madeira à sombra da selva.
Nas imediações, um burrico cinzento preso a um tronco parece querer achar sentido no alarido das suas gargalhadas e na nossa inesperada passagem.
Em simples fatos de banho e com a alma leve de preocupações, Felipe Guerrero e Vittoria Serra também estranham o peso que carregávamos e o desconforto que por essa altura já era impossível disfarçarmos: “Vocês andam a cumprir alguma penitência?” pergunta-nos o rapaz crioulo.
A explicação deu para uma conversa curiosa e sem fim à vista que, a determinada altura, achámos melhor atalhar ou nunca mais nos veríamos dentro de água.
Prosseguimos até uma enseada de nome Piscinita que, por fim, nos concedeu a desejada recompensa.
Andávamos pelas derradeiras terras setentrionais da América do Sul, espartilhadas entre o Mar das Caraíbas e a orla frondosa da Serra Nevada de Santa Marta.
Serra Nevada de Santa Marta, Tayrona e o Desembarque dos Conquistadores Espanhóis
Eram, as mesmas terras exuberantes e frondosas em que os conquistadores espanhóis desembarcaram, pouco depois de Colombo ter dado com diversas ilhas do Mar das Caraíbas e com a península do Iucatão.
Nuns meros 42 quilómetros vertiginosos para o interior, as montanhas inaugurais daquela cordilheira andina ascendiam uns impressionantes 5.700 metros de altitude.
Ao longo do ano, tal barreira intransponível bloqueava as massas de ar quente e húmido sorvido ao mar pelo calor equatorial. Quase sem excepção, a panela de pressão que nos ia cozendo, rebentava com grande dramatismo e estrondo mal o sol começava a cair sobre a vastidão do Pacífico.
Não tínhamos sequer secado a água salgada quando fomos surpreendidos pelo dilúvio ribombante do dia, que obrigou dezenas de visitantes a zarparem mais cedo das praias do parque das imediações.
As pernas fraquejavam da longa vinda mas tivemos que as submeter a um regresso ainda mais esforçado pela floresta tropical escurecida pelas nuvens baixas, um retorno encharcado e, em pouco tempo, enlameado.
Há séculos que esta região assim é irrigada sem misericórdia.
Os primeiros conquistadores espanhóis a ancorar nestas mesmas costas partilhadas com a selva, depressa se habituaram a precaver e a reagir aos caprichos meteorológicos, como aos mosquitos demasiadas vezes infernais e à resistência das tribos nativas.
Comandados por Rodrigo de Bastidas – na sua vida ibérica, um escrivão público dos arredores de Sevilha, mais tarde membro da tripulação da segunda viagem de Cristóvão Colombo ao Novo Mundo – desembarcaram na zona em 1525.
Pouco depois, fundaram Santa Marta.
A Chegada de Simón Bolivar por Santa Marta, de onde Nunca Chegou a Sair
Em termos urbanísticos, esta cidade parece ter-se perdido para sempre do quase meio milénio de história. Ainda assim, aceitámos o seu acolhimento por uns dias esperançados de que nos viesse a surpreender.
Não tardámos a confirmar que o mais conceituado dos hóspedes de Santa Marta é, desde há décadas, o seu principal cartão de visita.
Só por si, a sua curta e trágica presença reforçou e muito o nosso interesse na capital do departamento colombiano de Magdalena.
Após a longa Admirável Campanha militar em que triunfou de forma sucessiva sobre as forças coloniais hispânicas, Simón Bolívar deu sequência à luta independentista no território actual da Colômbia (então Nova Granada), no Equador e no norte do Perú dos dias de hoje.
Seguia o sonho de criar uma nova nação entregue aos seus próprios destinos.
Simón Bolivar: dos Triunfos Militares à Dinâmica Independentista
Venceu a resistência recorrente das forças leais à coroa hispânica na famosa Batalha de Carabobo, entrou na sua cidade natal, Caracas, e em 1821, ditou a constituição da Gran Colómbia de que foi proclamado presidente. Bolívar não se ficou por aí.
Aliado ao General José de San Martin, outro militar independentista proeminente e triunfante na zona actual da Argentina e do Chile, levou a luta para terras do sul do Peru e da Bolívia, mais tarde baptizada em sua honra.
Bolívar tornou-se, aliás, um dos poucos homens a ter inspirado a nomenclatura de um país.
Estes feitos não impediram que divisões internas tivessem minado o seu sonho. Nove anos depois, a Gran Colómbia implodiu. Deu lugar às repúblicas da Venezuela, Nova Granada e Equador, logo entregues a guerras civis e a outros conflitos recorrentes.
Bolívar desistiu. Pouco disposto a viver o falhanço do seu ambicioso projecto de vida, planeou exilar-se na Europa com breve passagem pela Jamaica.
Já tinha enviado diversas arcas com pertences e encaminhava-se para Cartagena das Índias de onde contava partir.
Nunca lá chegou.
A narrativa da sua fase ascendente e dos momentos de queda está patente na propriedade em que terminou a sua epopeia, ilustrada por uma colecção de velhas pinturas legendadas, documentos e objectos oficiais e pessoais.
É, hoje, um dos lugares mais emblemáticos da Colômbia.
Visitam-no excursões de alunos e estudantes irrequietos que assim se iniciam ou completam a sua doutrina Bolívariana, incontornável nestas paragens da América Latina.
Como a dos Founding Fathers o é, mais a norte, em terras ianques, há já um bom tempo antagonistas da pátria-mãe do Libertador sul-americano.
San Pedro Alejandrino, a Quinta de Santa Marta em que Simón Bolivar Sucumbiu
A Quinta de San Pedro Alejandrino fica a 20 minutos de autocarro da marginal de Santa Marta.
Quando a visitamos, vemo-nos forçados a dividir a atenção entre as travessuras dos miúdos demasiado jovens para aquela injecção de história, política e ideologia e essa mesma formação de que muitos infantes se tentam evadir.
Espreitámos a berlinda em que Bolívar ali chegou, numa viagem de quatro horas da casa de Joaquim de Mier de que se mudou por o incomodar o calor e o bulício do centro de Santa Marta.
A sua solene chegada obrigou a mudanças e cuidados, incluindo a adaptação de uma sala que o protegesse do fumo de tabaco produzido por vários dos seus acompanhantes e que o irritava.
Bolívar não fumava. Era um apreciador de vinho do Porto. Nem uma coisa nem outra lhe deram a saúde que merecia. Pouco tempo depois de se instalar, surgiram-lhe sintomas de um mal abrupto.
A sua pele escureceu, perdeu muito peso, sofria de exaustão, tinha dores de cabeça e perdia a consciência.
A Tuberculose Fatal de que Não Conhece ao Certo a Origem
Foi-lhe diagnosticada tuberculose.
Esse diagnóstico ainda é o mais aceite mas alguns estudiosos negam-no. É o caso do norte-americano especialista em doenças infecciosas Dr. Paul Awvaerter que defende que o mais provável é Bolívar ter perecido de envenenamento por arsénico.
Na sua opinião, resta saber se se tratou de um simples incidente ou de um assassínio. Paul Awvaerter contempla ambas as hipóteses.
Inclina-se mais para a primeira: “Bolívar passou muito tempo no Perú. Têm lá sido encontradas diversas múmias com elevados índices de arsénico. Alguns lugares no Perú tinham, então, águas com quantidades excessivas deste químico. Simón Bolívar pode tê-las bebido durante demasiado tempo o que levou a um envenenamento crónico.”
Esta hipótese foi de imediato acolhida pelo ainda vivo Hugo Chávez, assumido admirador número um de Simón Bolívar que adaptou como principal inspiração da sua luta política. “Durante anos tive, no meu coração, a convicção de que Bolívar não tinha deixado o governo nem morrido por causa da tuberculose.
Temos a obrigação moral de limpar esta mentira. De abrir o seu caixão sacrossanto e verificar os seus restos mortais.” Desde então, Chávez insistiu na teoria de que o autor terá sido um rival colombiano, Francisco de Santander, um amigo próximo e aliado de Bolívar antes de terem entrado em conflito.
Até à sua morte, Chávez continuou a usar a suspeição levantada por Paul Awvaerter para os mais diversos propósitos políticos.
Como aconteceu ao ideal Gran Colombista de Bolívar e ao próprio Libertador, a sua Revolução Bolivariana parece ter sucumbido com a sua morte.