Há já algum tempo que o Zimbabué se evidenciava pelas piores razões.
Só os viajantes mais destemidos se aventuravam pelo seu território desgovernado.
A inflação deste país outrora próspero dizia bem do caos a que o orgulhoso Presidente Mugabe o havia entregue: em 1998, era de 32% e, no fim de 2009, tinha já ascendido ao valor surreal de 516 quintiliões (1030) por cento, ainda assim o segundo pior caso da história.
Os preços dobravam a cada 1.3 dias.
Agravavam a pobreza generalizada numa altura em que a maior parte da população recorria ao mercado negro e às nações vizinhas para sobreviver. 60% da vida selvagem tinha desaparecido devido à caça ilegal e à deflorestação descontrolada.
No entanto, o panorama assustador do país pouco ou nada parecia importunar a existência colonial-glamorosa do hotel Victoria Falls, instalado, desde 1904, no recanto noroeste do Zimbabué.
Há muito conhecido como “The Great Lady of the Falls.”
O Abrigo ex-Colonial do Victoria Falls Hotel
A noite anuncia-se. Hóspedes com as mais distintas origens instalam-se nas cadeiras confortáveis do Stanley’s Terrace, perfumados e rejuvenescidos dos passeios africanos da tarde.
Alguns são estreantes no hotel.
O responsável pela equipa de empregados nativos apresenta-os às normas da casa no tom clássico british tão bem caracterizado por Steven Fry enquanto o Jeeves da série Jeeves & Wooster.
“And, if you allow me a final note, ladies and gentlemen, dinner is served from six to nine at the Livingstone Room and Jungle Junction restaurants”.
A arquitectura e decoração em redor revelam-se fieis ao ambiente anacrónico que perdura, inspiradas pela grandiosidade e elegância eduardiana com que os colonos britânicos procuraram sentir-se em casa.
Tão longe da velha Albion.
Além do mobiliário da época, destacam-se troféus de caça, longas sequências de posters que recordam a vanglória do império britânico.
Ilustrações e fotos a preto e branco ou sépia conduzem ao passado longínquo de Victoria Falls – a povoação – e das cataratas, na companhia de hóspedes habituais, muitos deles reais ou presidenciais, outros, apenas célebres.
David Livingstone desbravou toda esta zona de África à futura colonização da sua coroa.
Inspirou uma série de nomes e títulos, do cocktail mais procurado do hotel à cidade que se desenvolveu do outro lado da fronteira com a Zâmbia.
Não viveu o suficiente para assistir a estes desenvolvimentos adicionais da sua estranha mitificação.
David Livingstone. Da Escócia ao Coração Zambeziano de África
Livingstone nasceu, em 1813, na vila escocesa de Blantyre, no seio de uma família protestante. Durante a sua adolescência, sentiu o apelo da causa missionária.
Em 1841, partiu para a África do Sul.
Lá se juntou a Robert Moffat, da London Missionary Society.
O seu trabalho em Kuruman, os métodos de Moffat e da sociedade missionária, em geral, desiludiram-no. Esse desapontamento levou a que tomasse as suas próprias iniciativas.
Entre 1852 e 1856, depois de quase ter sido devorado por um leão, levou a cabo uma exploração exaustiva da África Central e do Sul.
Foi um dos primeiros ocidentais a realizar uma travessia do continente.
E cumpriu-o com partida de Luanda, Angola e chegada a Quelimane, junto à foz do rio Zambeze, Moçambique, no oceano Índico.
Mapa Cor-de-Rosa e a Rivalidade Luso-Britânica pelo Domínio de África
Também os portugueses Silva Porto, Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens e Serpa Pinto tinham esboçado o feito.
A determinada altura, incentivou-os o objectivo de contribuirem para a concretização do chamado Mapa Cor-de-Rosa, a colonização portuguesa de uma vasta área contínua de África do Atlântico ao Índico, litoral de Angola ao litoral de Moçambique.
Àquela latitude, a combinação letal da malária, com a disenteria, a doença do sono e a oposição feroz de tribos poderosas como os Lozi e os Lunda, haviam, até então, frustrado todas as intenções.
Durante a travessia, Livingstone desceu o rio Zambeze, conduzido por nativos que lhe revelaram as quedas d’ água Mosi-oa-Tunya (o fumo trovejante),
Rendido à beleza e imponência daquele lugar, o explorador viria a escrever: “… cenas tão adoráveis devem ter sido admiradas pelos anjos enquanto voam”.
Ficou com o crédito da descoberta e aproveitou para as baptizar em honra da sua monarca.
Não obstante, mesmo se sem o mesmo impacto e reconhecimento, crê-se que os exploradores portugueses já teriam, antes (durante o século XVII) explorado a zona e assinalado as cataratas em diversos mapas,
Um dos mais prováveis terá sido o missionário jesuíta Gonçalo da Silveira (Almeirim, Portugal, 1526). Silveira desembarcou em Sofala, Moçambique, em 1560.
No fim desse ano, dedicou-se a subir o rio que os portugueses conheciam por Cuama (Zambeze), em busca da capital do império Monomotapa, com capital na povoação que originou as actuais ruínas de Grande Zimbabué.
Em “Os Lusíadas“, Luís de Camões narra como árabes muçulmanos de Moçambique se enfureceram com a acção do padre e o estrangularam.
“Vê do Benomotapa o grande Império,
De selvática gente, negra e nua,
Onde Gonçalo morte e vitupério
Padecerá, pela fé santa sua.”
Mais tarde, os portugueses enviaram uma expedição com o fim de vingar a sua morte. Esses homens não regressaram ou voltaram a dar notícias.
Malgrado o seu fim trágico, Silveira eternizou-se na história colonial de África.
A personagem José Silvestre de “As Minas de Salomão”, de H. Rider Haggard, terá nele sido inspirada.
Por acção de Gonçalo da Silveira ou por obra de outro missionário ou explorador, no século XVII existiam já mapas portugueses que assinalavam a localização das grandes cataratas do rio Zambeze, como sendo “mortais”.
As razões para tal, mantêm-se várias. O risco de nelas cair de quem navega o Zambeze.
As numerosas colónias de hipopótamos, crocodilos, elefantes e outros animais potencialmente letais.
A referência principal de orientação dos hóspedes do Victoria Falls Hotel é, ainda hoje, a cortina de “fumo branco” avistada por Livingstone à distância.
A Travessia Arriscada entre o Hotel Victoria Falls e a Victoria Falls Povoação
Tentamos não a perder de vista à medida que avançamos pelo trilho que conduz à povoação e às quedas de água.
A caminhada é interrompida por complicações inesperadas. Uma manada de búfalos bloqueia a passagem.
Os animais – conhecidos pela sua agressividade – só se mudam ao fim de 20 minutos. Vencido o obstáculo, abordam-nos dezenas de nativos determinados a vender-nos peças de artesanato.
Cruzamos a linha de caminho de ferro e o centro da pequena Victoria Falls. Prosseguimos em direcção à entrada do recinto.
Já no interior, espanta-nos a mudança na vegetação, que a aspersão provocada pelas quedas torna bem mais densa e luxuriante que a da savana em redor.
Essa vegetação funciona como um véu natural. Logo se impõe a visão vertiginosa da falha geológica em que se precipita o Zambeze.
Hora de Desvendar as Mosi-oa-Tunya, as Cataratas de Victoria
Enquanto procuramos as perspectivas privilegiadas da Devil’s View, onde a catarata concentra um volume de água massivo, os borrifos refrescam-nos.
São seis as gargantas que compõem as Vic Falls, como são também chamadas.
Com uma altura média de 108 metros, formam uma falha com 1700 metros de extensão que integra o território da Zâmbia.
Cada uma delas dá origem a visuais distintos que mudam à medida que o volume de água oscila da época das chuvas para a seca.
Encontramos a estátua memorial de David Livingstone, em que se lê o mote peculiar porque se regia: “Cristandade, Comércio e Civilização”.
Após a descoberta das cataratas, Livingstone passou a acreditar que a chave para a concretização daqueles princípios era a navegação do rio Zambeze como uma artéria comercial para o interior.
Regressou à Grã-Bretanha com o fito de obter apoio para as suas ideias. E de publicar um livro sobre as suas descobertas que o destacasse como um dos principais exploradores da época.
Livingstone começou também a acreditar que devia seguir um chamamento espiritual que o instigava a explorar em vez de converter.
Demitiu-se da London Missionary Society.
A Decadência Inevitável e a Morte de Livingstone
O governo britânico subsidiou-o e Livingstone regressou ao seu projecto.
O Zambeze provou-se invencível junto aos rápidos de Cahora Bassa.
No tempo que passara, os membros da expedição aperceberam-se da real personalidade do pioneiro escocês. Acusaram-no de não saber liderar, de ser temperamental, caprichoso. De não tolerar criticas ou discordâncias.
Em 1862, John Kirk, o seu médico escreveu “Só posso chegar à conclusão de que o Dr. Livingstone não está bom da cabeça e é um líder perigoso.”
Livingstone revela-se, então, obstinado.Mesmo tendo visto morrer parte dos seus assistentes e sido abandonado por outros, declarou: “Estou preparado para ir a qualquer lugar, desde que seja para a frente”.
Durante seis anos, David Livingstone perdeu contacto com o mundo exterior. Nos últimos quatro de vida esteve doente.
O seu retiro intrigou a Royal Geographical Society de Londres e o mundo em geral.
O New York Herald decidiu enviar Henry Stanley para o procurar. O jornalista encontrou o explorador em Ujiji, nas margens do lago Tanganika, em Outubro de 1869. Lá o terá abordado com a sua famosa frase “Dr. Livingstone, I presume?”
Quatro anos depois, Livingstone morreu de malária e de uma hemorragia interna provocada por disenteria. A rainha Victoria, por sua vez, faleceu em Janeiro de 1901.
Victoria nunca viajou para sul da Europa. E nunca chegou a ver as “suas” quedas d’ água.