As ondas do Atlântico desfazem-se areal acima. Desenrolam-se, vigorosas, quase até linha de coqueiros cimeira entre o limiar da Costa do Ouro e a estrada N1 que percorremos desde a já longínqua Acra.
A determinada altura, um meandro do asfalto concede-nos a visão longínqua de um castelo branco ladeado por mais coqueiros hirtos e que parece flutuar entre o azul do oceano e o do céu.
A configuração do percurso não tarda a esconde-lo mesmo se nos aproximamos, a cada quilómetro que passa, da povoação envolvente.
A estrada volta a render-se ao afago das vagas. Logo, serpenteia entre pequenas enseadas inundadas de barcos de pesca folclóricos ou pelo meio de um casario também garrido que se adensa.
Deixamos o carro. Completamos o que faltava do percurso até à base da língua de terra em que sabíamos ir-se materializar a miragem de há minutos. Os primeiros moradores da zona estão demasiado atarefados para ligarem à nossa incursão.
O Legado Controverso de Elmina
Até que, com o castelo pela frente, na comunhão de bandos errantes de cabras e de uma multidão frenética de pescadores e varinas ganesas, nos abordam alguns vendedores e candidatos a guias cada qual com as suas próprias abordagens de encantar.
“De que país são? Portugal? Isto era vosso, já sabem, não é ? … Encontraram o guia certo para vos explicar como tudo se passou!”
Prosseguimos em direcção ao forte a responder às propostas concorrentes e persistentes de venda de serviços e de artesanato da forma o mais paciente possível.
É assim, semi-escoltados, que chegamos à entrada do velho castelo, isolada por fossos e disfarçada na sua imponente fachada virada a terra, como é suposto numa fortaleza erguida para se conservar.
Invadimo-la curiosos pelo que encontraríamos no interior, onde nos esperava Alex Afful o guia pré-incumbido de nos apresentar o monumento. Instantes depois, já seguíamos os seus passos e as suas palavras numa deslumbrante viagem ao passado épico mas também pesaroso da actual Elmina.
A Costa de Ouro como Triunfo do Projecto de Descoberta de África
O Infante D. Henrique enviava navegadores a explorar a costa africana desde 1418, instigado pelos rumores de abundância de ouro, marfim, pedras preciosas e de outras riquezas.
Pelo anseio de encontrar uma rota alternativa que permitisse chegar directamente às especiarias da Ásia e de assim descartar os comerciantes árabes, até então, intermediários incontornáveis.
Pelo interesse da igreja em converter ao Cristianismo os povos a sul da Ibéria.
Após cinquenta anos em que esses navegadores foram aportando ao longo da costa de África, em 1471, chegaram à zona de Mina. Regia, então, Afonso V.
O rei mostrava-se pouco interessado em continuar a apoiar as expedições marítimas e o comércio da Guiné que só recentemente tinham começado a dar proveitos à Coroa. O rei arrendou a exploração da Costa da Guiné, sob regime de monopólio comercial, a um comerciante de nome Fernão Gomes.
Ao chegar à zona do actual Gana, Fernão Gomes deparou-se com um comércio de ouro já estabelecido entre nativos de distintas etnias e entre estes e os sempre incómodos comerciantes árabes e berberes. Fernão Gomes apressou-se a impor as suas próprias regras, como era de esperar, apoiado pela Coroa.
Com o Tratado de Alcáçovas a assegurar os direitos exclusivos sobre a recém-baptizada Costa do Ouro, D. João II, o rei que se seguiu, deliberou que devia ser construído um novo entreposto que protegesse o comércio aurífero de Portugal no Golfo da Guiné.
O Entreposto Fortificado de Elmina
O projecto foi atribuído a um cavaleiro da Ordem de Aviz granjeado com várias comendas e conselheiro do rei. D. Diogo de Azambuja combatera lado a lado com Afonso V na conquista de Alcácer-Ceguer. Foi determinante na Guerra de Sucessão de Castela de 1475-1479 em que o inimigo lhe feriu gravemente uma perna.
A nova aventura africana de que D. João II o incumbiu celebrizou-o ainda mais. Em 1481, Azambuja comandou uma frota de nove caravelas e duas naus que transportou 600 soldados, 100 pedreiros e carpinteiros e toneladas de pedra e outros materiais necessários à construção da fortaleza planeada.
Volvido um ano, Azambuja já aproveitava o pé-de-guerra entre as poderosas etnias da região: os Akans, os Ashantis, os Fantis e outros. Aliado aos Akans, conseguiu permissão para erguer a fortaleza, obra que terá terminado em 1482.
Na sequência, enviou a frota de volta a Lisboa. Permaneceu em Mina até 1484, com 60 soldados – entre os quais Cristovão Colombo – e a tarefa adicional de aprofundar contactos comerciais com a população nativa que aumentassem o proveito da Coroa.
Enquanto seguimos Alex Afful, testemunhamos a seriedade com que Azambuja desempenhou a sua missão. Por ter sido construída sobre camadas profundas de rocha sedimentar, a fortaleza de Mina resistiu às vagas do Atlântico que, como presenciámos, a continuam a fustigar.
À Descoberta do Grande Forte em Tempos Português
Passou pelo tempo de tal maneira que mal parece acabada de erguer. Mantêm-se intactos os seus três grandes pátios: o principal, o interior e o de serviço. À medida que a eles acedemos por escadarias íngremes e adarves amplos percebemos o grau de complexidade e a clareza arquitectónica da estrutura. Vislumbramos o Atlântico sem fim dos seus baluartes virados a Ocidente.
Subimos aos aposentos construídos no cimo da estrutura para albergar o Capitão-Mor. Apercebêmo-nos, de imediato, de como são amplos e os ventila uma brisa permanente vinda do oceano. Ao contrário das divisões em redor do pátio principal que vieram mais tarde a servir para aprisionar captivos africanos.
Alex Afful sublinha que o comércio de escravos convencional só teve início após os portugueses perderem a fortaleza para os holandeses.
Mesmo assim, atalha num ápice a visita guiada para os seus recantos mais tenebrosos e elucida-nos quanto às agruras que ali viriam, entretanto, a ser cometidas. “E esta era a famosa Door of No Return, semelhante à de outros fortes e casebres ao longo da costa africana.
As Masmorras Tenebrosas do Forte com Saída na Door of No Return
Daqui, desta masmorra tenebrosa, os escravos eram acorrentados e despachados para os barcos. Aqueles que sobreviviam à travessia do oceano nunca mais voltavam a ver África.” Reparamos em várias grinaldas de flores colocadas por visitantes anteriores em pesar pelos seus antepassados e, à entrada do forte, num texto negro encrustado num mármore branco que dita:
”Na Memória Eterna: da angústia dos nossos ancestrais. Que possam aqueles que morreram repousar em paz. Que possam aqueles que regressarem encontrar as suas raízes. Que a Humanidade nunca mais perpetre tal injustiça contra a Humanidade. Nós os que vivemos, juramos que assim será.”
Subimos a um varandim amplo virado para a povoação que acabamos por partilhar com um grupo de ganeses, alguns trajados de jilabas, que se fotografam de iPad em riste, entre uma bateria de velhos canhões negros. Desse miradouro muralhado, apreciamos o casario multicolor de Elmina e um outro forte destacado acima na encosta.
O Frenesim Piscatório do Rio Benya
E, mais impressionante, que tudo, testemunhamos a incrível azáfama que tomava conta da foz do rio Benya.
Um atrás do outro, dezenas de barcos venciam as ondas do fim do estuário e na entravam na boca do rio apontados às docas de pesca mais repletas de embarcações e inundadas de gente e de peixe que até hoje presenciámos, em mais de quinze anos de viagens pela Terra.
Haveríamos de examinar de mais perto. Até então, continuámos a descobrir os recantos intrigantes e os segredos do forte de São Jorge de Mina.
No ápice do comércio do ouro, no século XVIII, mais de 300 toneladas de ouro por ano foram trocadas por trigo, tecidos e roupas árabes, colares e artigos de latão, panelas e penicos que fizeram um sucesso muito especial. Entre 1504 e 1582, terão sido trocados por ouro mais de 270.000 unidades de penicos.
Também eram trocados por ouro escravos trazidos do vizinho Benim e de outras paragens. Fosse qual fosse a moeda de troca, o ouro abundava. Em 1500, cerca de 10% das reservas de ouro do mundo.
Os corsários franceses e ingleses apressaram-se a atormentar os navios portugueses que lá ancoravam.
A Inevitável Interferência Histórica da Holanda
No contexto da dinastia filipina, a Espanha entrou em conflito com os Países Baixos. Estes expandiram os seus ataques a posses coloniais antes portuguesas tanto no Nordeste do Brasil como no Golfo da Guiné.
Em 1637, após cinco dias de resistência de quarenta homens que se diz doentes e mal-armados tomaram a fortaleza de São Jorge de Mina, à imagem do que fizeram a outros fortes portugueses no litoral africano.
Um dos factos mais fascinantes com que nos confrontamos é que os holandeses tiveram como reforços mercenários de várias partes da Europa. Também índios tapuias do Brasil que se aliaram ao conde Maurício de Nassau quando os holandeses se apoderaram de Pernambuco.
Os novos senhores de Mina rebaptizaram e ampliaram a fortaleza. Mas, por volta de 1620, o ouro diminuiu. Tornou-se mais difícil de obter. Os holandeses reagiram.
Adaptaram este e outros fortes erguidos pelos portugueses a um comércio que – numa rota geográfica bem distinta da aproveitada pelos portugueses – começara a gerar lucros exorbitantes: o fornecimento de escravos africanos às colónias das Américas, isto com o patrocínio dos próprios chefes das etnias akan, ashanti e fanti que os capturavam às tribos rivais e forneciam aos europeus.
A Continuidade Holandesa da Escravatura Transatlântica
O historiador ganês Kwesi Anquandah afiança que só no século XVII, a região da Costa do Ouro exportou mais de 650.000 escravos para o continente americano. Uma parte substancial, passou pela Door of No Return de Mina. Entre 1700 e 1755, muitos tiveram como destino o Brasil onde eram chamados de “minas”.
Prisioneiros de guerra altivos, provaram-se desobedientes e pouco dispostos a trabalhos forçados. No Brasil, participaram na maior parte das revoltas de escravos do século XVIII e deram origem a inúmeros quilombos. Em 1850, os ingleses, proibiram e fomentaram o fim do comércio de escravos.
Chegaram, inclusive, a capturar navios negreiros. Vinte e três anos depois, também capturaram aos holandeses o forte de Mina e apoderaram-se de todo o Gana. Como constatámos vezes sem conta, persiste uma forte cumplicidade histórica, cantada pelos novos ídolos do hip-hop e rap nacional entre o Gana e principalmente as Índias Ocidentais e os E.U.A..
Além da sua herança genética, ao invés da maior parte dos vizinhos africanos que, com a excepção da Nigéria, são francófonos, estas nações preservam língua e cultura anglófonas.
Após deixarmos o forte que ainda contornamos pelo exterior, embrenhamo-nos nas margens do rio Benya, olhados de soslaio pelas varinas que se mostram enfurecidas mal levantamos as máquinas fotográficas e, quase todas, se apressam a informar-nos do preço das suas imagens: “vai-vos custar 20 cedis! ”.
Aquela fraca disposição para a fotografia obriga-nos a complexas manobras diplomáticas.
Colocamo-los em prática com paciência até mesmo no antro pestilento e caótico das margens e docas de pesca, entre barcos com bandeirinhas de centenas de países do mundo.
E incontáveis espécimes recém-capurados no Atlântico ao largo, hoje, a prosperidade árdua mas garantida dos ganeses orgulhosos de Elmina.
Haveríamos de prosseguir para Ocidente, em busca da aldeia lacustre de Nzulezu.