Madonna cantou-a como La Isla Bonita e reforçou o mote. Hoje, nem os furacões nem as disputas políticas desencorajam os veraneantes VIPs e endinheirados de se divertirem neste refúgio tropical.
Belize City depressa se revela tão desagradável como ameaçadora, ainda mais para quem passeia equipamento fotográfico. Transformada num entreposto do tráfico de droga das Américas, a maior cidade do Belize habituou-se à frequente destruição causada pelos vários furações que atingiram já o país e rendeu-se a uma cultura de gangs e de violência que afastam a maior parte dos visitantes comuns. As suas ruas semi-arruinadas e caóticas são atravessadas por esgotos e canais mal cheirosos e patrulhadas por bandos de residentes afro e garifunas soberbos e com portes impressionantes, vozes graves e intenções quase sempre suspeitas. Esperava-nos o recanto mais acolhedor do país e não ficámos para saber mais.
A caminho de Ambergris Caye, consoante a profundidade do mar, a água muda de tons verdes para azuis vezes sem conta, e passamos por ilhéus repletos de mangues e pelicanos. Ao fim de meia hora surge então a marca branca da espuma provocada pela rebentação na linha coralífera e, pouco depois, a silhueta de Ambergris. À medida que nos aproximamos, fica mais nítida uma primeira frente de casas de madeira, mesmo junto à praia, de onde se projectam dezenas de docas e molhes envelhecidos.
Ambergris, (às vezes Am-ber-griss e outras Amberjis) é o maior dos cayes do Belize. Estende-se por cerca de 40 km de comprimento, numa espécie de prolongamento da península mexicana do Iucatão. A ilha é protegida das fúrias ocasionais do mar pela segunda maior barreira de recife do mundo que é, também, o seu principal chamariz.
Mas o recife, só por si, não faz milagres e, quando chega a época das chuvas, – de Junho a Novembro – os seus 4500 habitantes sabem que estão à mercê dos caprichos da natureza. O primeiro furacão verdadeiramente destrutivo devastou o Belize, em 1931, numa altura em que ainda nem sequer eram baptizados. O segundo foi o Hattie, em 1961, e o terceiro chegou em 2001, com o simpático nome de Íris. O último a fazer estragos de monta foi o Richard, em Outubro de 2010.
Claro que, como principal domínio turístico nacional, a ilha tem prioridade na reconstrução. As autoridades não podem dar-se ao luxo que os americanos e europeus que aqui investem tenham prejuízos e, para tal, La Isla Bonita – assim a cantou Madonna – tem que continuar a seduzir.
A maior parte dos moradores de Ambergris vive em San Pedro, na extremidade sul da ilha, onde a barreira de recife está apenas a 800 metros ao largo. Trata-se de uma cidade pouco desenvolvida com um pequeno aeroporto onde aterram os visitantes e os nativos mais ricos. O transporte é assegurado por carrinhos de golfe. Há dezenas deles a circular para cá e para lá, miniaturas representativas da dimensão da cidade e do seu espírito humilde, o mesmo espírito despretensioso que faz com que, durante o dia, muitos dos habitantes andem descalços e de tronco nu.
San Pedro está disposta em redor de três ruas principais que antes se chamavam simplesmente Front street, Middle street e Back street e as autoridades decidiram baptizar, em vão, com nomes a sério: Barrier Reef Drive, Pescador dr. e Angel Coral dr. É entre estas ruas e o início da pista do aeroporto que se concentram quase todos os serviços, a apenas alguns metros uns dos outros. Nas casas de madeira de dois andares desta zona central, estão também as principais lojas, bares e restaurantes, bem como a igreja baptista.
É impossível perdermo-nos por aqui. Além de pequena, a cidade estende-se numa estreita faixa de terra encaixada entre o Mar das Caraíbas, a leste, e a lagoa de San Pedro, a oeste – esta sim, um labirinto de pequenos cayos, baixios e ilhotas em que só os mais experientes conseguem navegar.
Qualquer deslocação na área central pode ser feita a pé mas, para chegar aos resorts nos arredores cidade são necessários veículos ora terrestres ora aquáticos. Para norte, o percurso é interrompido no fim da Pescador drive, onde surge um canal que é atravessado num ferry puxado à mão e, pouco depois, as estradas somem-se de vez.
Com o fim da indústria do coco e da lagosta, os resorts, os bares e as agências de mergulho e excursões têm vindo a assegurar os rendimentos de muitos belizenses. Servir estrangeiros que enriquecem a olhos vistos à custa da beleza da sua terra natal não é a vida com que muitos deles sonhavam mas, enquanto as coisas não mudam, é bem melhor que nada. Para que a situação económica do país se componha, o governo aposta na educação e na formação patriótica das suas crianças. O Belize é um país quase tão jovem como algumas delas e, por isso, a consciência nacional é algo que tem que ser ensinado e incutido.
Um dia de aulas normal começa com uma palestra do director da instituição. Segue-se o hastear da bandeira quando um enorme coro de crianças em fardas azuis e brancas entoa o hino. Depois deste ritual, os alunos dirigem-se para as salas de aula sombrias e apertadas.
A escola de San Pedro é um observatório perfeito da diversidade étnica que enriquece culturalmente este recanto caribenho que, apesar de pobre, atraiu e continua a seduzir gente de todo o mundo. Junto com descendentes dos longínquos Baymen, dos escravos africanos e de filhos de ambos, estudam crianças mestiças de origem mexicana, outras, maias e chinesas, e jovens descendentes dos americanos, canadianos e europeus que para ali trouxeram as suas vidas.
Enquanto descobrimos San Pedro presenciamos também os últimos momentos de uma pré-época de campanha eleitoral. A cidade mantém-se adornada por cartazes e faixas com questões ao partido no poder, o PUP – Peoples United Party,: “Porque foi vendido o terreno do cemitério? ou “Onde foi parar o dinheiro cedido pela comunidade internacional para recuperação dos estragos dos furacões?”.
Num outro dia, uma pequena multidão de militantes e simpatizantes do PUP saiu em parada agitando bandeiras, a dançar e a entoar slogans e cânticos de apoio ao partido e ao seu candidato. A pé e em carrinhos de golfe, foram percorridas as principais artérias num circuito que haveria de terminar com a entrega oficial da candidatura. Em seguida, foi a vez do UDP – United Democratic Party, cujo cortejo bem mais modesto, se juntou, sem qualquer problema, às gentes do PUP, próximo da entrada da Assembleia Municipal.
Parece haver um jogo limpo generalizado que garante uma confraternização e estabilidade política contínuas. O facto de a ilha, como o resto do país, não ter matérias-primas valiosas, ou poder de investimento, contribui para que a ambição seja comedida e não surjam os ditadores maquiavélicos que arruínam tantas outras nações. Por aqui, só uma coisa é mais respeitada e valorizada que a democracia: a barreira de recife. Qualquer conversa leva ao tema preferido dos habitantes de Ambergris. Como acontece com um jovem empregado que conhecemos numa agência de mergulho: – “A barreira de recife é tudo o que temos, amigos. Temos que a proteger como se tratasse de uma criança!” Quando se encontram, os sanpedrenses trocam incansavelmente as suas últimas experiências de mergulho nas diferentes zonas da barreira. Todas as noites, à volta da cerveja nacional – a Belikin – ou durante os intermináveis churrascos dos bares da Front Street, discutem, ao pormenor, o estado de determinada bolsa de corais ou onde detectaram nesse dia os maiores cardumes de barracudas ou tubarões-frade. A certa altura, ouvimos dois deles contarem, orgulhosos, que um iate americano tinha sido multado por ter encalhado e destruído uns poucos metros de recife.
Os estrangeiros até podem retirar-lhes mais e mais porções da ilha, mas na barreira…isso não. Na barreira ninguém toca.