Em busca de litorais atraentes na velha Indochina, desiludimo-nos com a rudeza balnear de Nha Trang. E é no labor feminino e exótico das salinas de Hon Khoi que encontramos um Vietname mais a gosto.
Estava longe de ser pioneira a nossa determinação em desfrutarmos da ainda pouco conhecida costa vietnamita. Até na esfera fictional nos ocorriam exemplos memoráveis. Numa das cenas mais emblemáticas de “Apocalypse Now”, o capitão e veterano de operações especiais Benjamin Willard (Martin Sheen) apercebe-se das intenções tresloucadas do tenente-coronel Bill Kilgore (Robert Duvall) e, sob inúmeros helicópteros, caças e uma chuva de projécteis de obuses e outros dispositivos explosivos, pergunta-lhe: “Está louco? Raio que o parta! Não lhe parece um pouco arriscado para diversão?” Ao que o lunático Kilgore responde: ”Se eu digo que é seguro surfar esta praia, é porque é seguro surfar esta praia! Eu não tenho medo de surfar esta praia, vou surfar este sítio todo!”. A cena prossegue para uma sequência de excentricidade militar. Kilgore larga o megafone que usava para fazer ouvir os seus comandos, despe a camisa, pega num rádio-transmissor e ordena um bombardeamento de napalm à floresta em que se abrigava o inimigo. Acaba, assim, com o ataque que por pouco não matara os infelizes soldados que, por sua ordem, surfavam as pequenas ondas do delta em redor.
Foram fictícios os nomes que Francis Ford Coppola atribuiu ao rio que Willard então sobe em busca do coronel Walter E. Kurtz (Marlon Brando) e os de vários outros locais que retratou nas Filipinas. Mas não se revelou esse o caso de Nha Trang, cidade do sul do Vietname que acolheu uma das bases militares mais importantes dos americanos durante a guerra e que tínhamos decidido visitar também com o propósito de tirarmos nem que fosse um só dia de repouso balnear.
Chegamos ainda de madrugada de uma longa viagem nocturna de Hoi An, a mais de 500 km para norte, instalamo-nos na guest house da empresa de autocarros que nos trouxera e dormimos sem hora de despertar.
Por volta da 1h da tarde, acordamos já bem recarregados, tomamos um pequeno-almoço robusto e saímos para espreitar a beira-mar que delimitava a cidade a Oriente. Já nas imediações do mar da China do Sul, contornamos o grande edifício do Concert Hall. No topo, esvoaça a bandeira vermelha e amarelo-estrelada do Vietname e, em frente, desfila um batalhão de soldados de uniformes verde-tropa antiquados.
A combinação destas visões traz-nos mais uma vez de volta o imaginário dos tempos bélicos da nação e deixa poucas dúvidas quanto ao triunfo inesperado e sacrificado do antes norte vietcong. Acima de tudo, precisávamos de mais alguma paz e sossego. Atravessamos a derradeira estrada marginal e uma floresta de cocos considerável para o ambiente municipal em que se encontrava. Do outro lado, damos com um areal com mais de 6 km de extensão.
A tarde ainda vai meio, o sol tropical queimava como quase sempre na época seca do sul do Vietname. Estavam reunidas as condições para uma enchente de banhistas mas, como era de esperar numa Ásia tão recatada, só uns quantos forasteiros ocidentais se sujeitavam à lenta tortura da radiação ultravioleta.
Em redor destes, verdadeiros enxames de massagistas, vendedores de marisco, de redes de dormir, artesanato, CD’s e DVD’s piratas, protegidos do grande astro até à ponta dos dedos, faziam o que podiam para atormentar o seu descanso. Mesmo refastelados longe do centro logístico da praia, não tardamos a chamar atenções e a ser incluídos no rol de alvos.
Durante mais de uma hora, descontraímos o que conseguimos abordados de três em três minutos por propostas comerciais bastante recusáveis. Até que uma frente de nuvens densas nos leva o Sol e, aos poucos, afluem à praia alguns jovens banhistas vietnamitas e de outras partes da Ásia, satisfeitos por nela se poderem divertir sem macular as suas peles sagradas.
Aproveitamos o resto do dia para reorganizarmos a viagem de Nha Trang para sul.
Na manhã seguinte, começamos por visitar a principal herança arqueológica da região, umas torres conhecidas por Po Nagar construídas entre os séculos VII e XII em honra da deusa hindu do reino Cham mas que acabaram por ser adaptadas à fé budista que, entretanto, conquistaria a preferência do povo viet. Demoramo-nos o suficiente para apreciarmos a sumptuosidade histórica do lugar e o cenário fluvial formado pelo rio Cai, logo ao lado.
Por essa altura, já tínhamos alugado uma motoreta e determinado que rumaríamos à praia de Doc Let. Várias publicações dedicadas às viagens garantiam tratar-se da mais encantadora do Vietname.
Avançamos por estradas repletas de crateras, numa realidade de jogo de computador que nos obrigava a desviar vezes sem conta de outras motas sobrecarregadas de passageiros, de objectos e de animais. Também nos esquivámos de carros e carroças de bois, cães, patos, porcos e até de canas de bambu em queda de um qualquer camião.
Já em Doc Let, de novo com os pés refrescados no Mar da China do Sul, confirmamos o azul-turquesa forte de que havíamos lido e uma areia tão branca e reflectora que nos “cegava” os olhos. Percebemos igualmente que os vietnamitas tinham substituído parte da floresta de coqueiros por uma espécie de ciprestes juvenis que, de acordo com os nossos padrões culturais, conferiam à praia um certo visual trópico-funerário.
Damos alguns mergulhos e braçadas e, durante uma boa meia-hora, descansamos as pernas massacradas pela viagem. Mas ainda são 8 da manhã e somos praticamente os únicos ocidentais em Doc Let. Voltamos a ser visados vezes sem conta por vendedores, agora de panos e de fruta fresca. Não tardamos a perder a paciência.
Regressamos à motorizada apontados a umas salinas por que antes tínhamos passado. Quando chegamos, dezenas de trabalhadores percorrem os passadiços salientes em filas harmoniosas, cada um carregado com dois cestos cheios de sal que equilibravam, à moda vietnamita, sobre uma vara ao ombro.
Aproximamo-nos com subtileza. Ao examinamos melhor a cena, percebemos que são mulheres. Têm o corpo e a cara tapados como protecção da erosão aliada do sol e do sal. Observamo-las a suportarem o árduo ofício com estoicismo – como acontece frequentemente às vietnamitas, em vez de aos seus maridos, quando toca a tarefas pesadas. Numa ou outra ocasião, retiravam as máscaras da face para mostrarem sorrisos esforçados e deixarem escapar uma qualquer observação ou pergunta para nós imperceptível.
No regresso a Nha Trang, descobrimos que aquelas se tratavam das salinas de Hon Khoi encarregues de “salgar” uma boa parte do Vietname. As suas trabalhadoras da comuna de Ninh Hai levantavam-se todos os dias às três da madrugada e pedalavam 4 km para ali pegarem ao serviço. Das 4 às 9 da manhã, repetiam viagens de ida-e-volta, carregadas com 20 kg de sal e aumentavam, assim, os inúmeros montes já formados.
A partir das 9h, o sol tornava as salinas numa verdadeira fornalha que, tal como elas, já não conseguíamos suportar. Dessa hora em diante, chegavam os camiões que distribuíam a matéria-prima pelo país. Não esperámos pelo primeiro. Voltámos à motoreta e enfrentámos o doloroso regresso a Nha Trang com um almoço vietnamita bem temperado em mente.