Metrópole emblemática e grandiosa, Istambul vive numa encruzilhada. Como a Turquia em geral, dividida entre a laicidade e o islamismo, a tradição e a modernidade, continua sem saber que caminho seguir
O frio é tanto em redor do estreito do Bósforo que não nos espantaria que ainda fossemos prendados com uma Istambul completamente nevada como só tínhamos apreciado em posters e postais.
Indiferentes ao vento gélido, dezenas de pescadores convivem recostados sobre a ponte Galata e atentos às linhas mergulhadas no Corno de Ouro.
Sem que o esperássemos, incontáveis muezins activam as suas vozes sagradas e criam um chamamento difuso a nova oração que está longe de agradar a todos os istambulitas, sejam ou não muçulmanos. A imprensa internacional mais atenta chegou a divulgar que a dissonância de alguns dos religiosos cantadores era tal que certos moradores se habituaram a recorrer a tampões para os ouvidos e apresentaram queixas às autoridades religiosas competentes. Estas, lançaram um programa especial de afinação dos responsáveis que atenuou o problema.
Como a Turquia, e graças à força ideológica das reformas do fundador Kemal Atatürk, Istambul ainda é oficialmente secular. Mesmo se na esmagadora maioria muçulmana, a sua enorme população urbana – rivaliza com Londres no título da maior da Europa – conta com muitos crentes de outras fés, bem como ateus e agnósticos. No espectro político, divide-se principalmente entre kemalistas – os seguidores das reformas de Atatürk – e Islamitas.
A uma boa parte dos primeiros não traria nada de mal a abolição dos chamamentos que ouvimos ecoar cinco vezes por dia, dos incontáveis minaretes da cidade.
Mas, Tayyip Erdogan, o antigo edil de Istambul, agora muito contestado mas ainda todo-poderoso presidente da Turquia é um assumido sunita e defensor do papel orientador do Islão na vida da nação, algo a que se tem vindo a opor também o exército.
Entre outras infracções, Erdogan foi acusado de anti-semitismo, corrupção, manipulação de eleições, despotismo e censura dos media. De várias tentativas de sufoco da liberdade de comunicação e imprensa, destacou-se o caso recente da rede social Twitter, que prevaleceu porque a Google ofereceu aos turcos um servidor DNS gratuito, cujo código 8.8.8.8 foi grafitado nas paredes da cidade por moradores furiosos com a prepotência do presidente.
Já do outro lado da ponte e do estreito, ouvimos um guia local louvar os méritos de Istambul a um grupo espanhol: “Meus amigos, perdoem-me o atrevimento, sei bem que a Ibéria tem uma civilização inacreditável e cidades incríveis mas não me levem a mal se vos confessar que não existe nenhuma cidade na Europa tão grandiosa como esta”. Na sua etiqueta de visitantes, os espanhóis calam, consentem e seguem caminho para a península repleta de monumentos e história de que nós vínhamos.
Anoitece em três tempos. A conselho de Ari, um colega tão ou mais orgulhoso que nos apoiava nas nossas deambulações, apontamos para o bairro de Galata. Subimos ruas e escadarias íngremes e damos entrada na torre homónima, onde nos afiançara que teríamos um repasto divinal, animado por um espectáculo de variedades tradicionais da Turquia.
Inauguram-no tocadores de tambores energéticos mas a plateia só vai ao rubro quando entra em acção uma dançarina do ventre bem mais despida, sedutora e contagiante que a maior parte das jovens islamitas que, como o Presidente Erdogan, continuam a tentar contornar a proscrição constitucional turca do uso do chador. Coerente com as suas posições conservadoras, Erdogan fez questão de declarar recentemente numa conferência feminista em Istambul que as mulheres nunca poderão ser tratadas como os homens. E acusou a maior parte da audiência de rejeitar a maternidade.
A estrutura mais elevada da cidade aquando da sua construção pelos Genoveses, em 1348, a torre Galata começou a ser usada pelos Otomanos, a partir do meio do século XVIII, para detectar incêndios entre o casario abaixo. Como todos os que acedem ao topo cónico, não o deixamos sem dali apreciar as luzes que salpicam Istambul e o seu reflexo nas águas escurecidas do Corno de Ouro e do Bósforo.
O dia seguinte amanhece com meteorologia mais agradável. Aproveitamos para explorar a área entre os bairros de Topkapi, Unkapani e Yenikapi que concentra o património histórico e cultural mais sumptuoso da cidade.
Em pleno hipódromo, esforçamo-nos para decifrar algo dos hieróglifos esculpidos no Obelisco de Teodósio que, em tempos, ornou o templo egípcio de Karnak. Convertemo-nos à imponência acinzentada da mesquita e também à de outro sultão, Ahmed.
Do cimo desta mesquita azul, delicia-nos a vista sobre a basílica de Santa Sofia que o imperador bizantino Justiniano aspirou que fosse o monumento mais marcante do mundo, que deveria superar o templo de Salomão, em Jerusalém.
Com entrada ali ao lado, deixamo-nos perder entre as colunas coríntias da cisterna subterrânea de Yerebatan e olhamos nos olhos das cabeças de medusa que suportam duas delas, sem que, como alega o mito, nos transformem em pedra.
Já no palácio de Topkapi, percorremos grande parte da história da dinastia dos Otomanos, dominadores de vastos territórios em três continentes distintos, durante 600 anos.
Não nos furtamos a outro dos costumes de quem anda à descoberta de Istambul: a visita da fortaleza bizantina de Rumeli, seguida da travessia rodoviária da ponte de Mehmet que liga a Europa à Ásia.
Pelo caminho, a bordo de um mini-bus cheio de passageiros de várias nacionalidades, ninguém se safa de exibir uma cantoria tradicional do seu país. Com o Velho Mundo já para trás e algum tempo de sossego, assalta-nos a analogia de que Erdogan e, concordando ou não, os turcos em geral, também abandonaram o ensejo de se unirem à família da União Europeia, em função das políticas e ideologias rígidas do actual líder.
Em 2010, as autoridades turcas fecharam os seus portos a embarcações cipriotas. Têm vindo a desrespeitar os direitos cívicos básicos como a liberdade nas mais distintas formas. Tardam em actuar sobre a discriminação contra os homossexuais, a tortura nas prisões, os casamentos forçados e a violência contra as mulheres, entre outros temas em que nem os eurocratas com as mentes mais abertas alguma vez cederiam para acolher a que, avassaladoramente muçulmana, passaria ser a terceira maior população da União.
Regressados à Istambul europeia e agora na companhia de Ari, este continua apostado em surpreender-nos com a riqueza da cultura turca. Metemo-nos no metro e, após regressarmos a superfície, caminhamos alguns minutos até um edifício histórico recatado. “Ora, vamos lá ver o que acham disto”.
Entramos e damos com um salão de dança tomado por uma trupe esotérica em trajes místicos brancos. “Já tinham ouvido falar dos dervishes, ou não?” pergunta-nos ainda Ari, deliciado por nos proporcionar a experiência.
As luzes diminuem de intensidade. Logo após, uma banda sonora oriental que combina percussão simples, cordas, instrumentos de sopro e vozes cerimoniais apodera-se do salão. Dá o mote para que, num transe crescente, os dançarinos sufis desenvolvam as suas incontáveis rotações meditativas.
Como os restantes espectadores, deixamo-nos hipnotizar pela beleza subtil daqueles redemoinhos brancos. Até que a tempestade espiritual chega ao fim e somos devolvidos ao gelo nocturno da multifacetada Istambul.