O recobro em Moçâmedes dura o que dura.
Partimos da cidade o mais cedo que conseguimos, tendo em conta a reparação do pneu furado na tarde passada e umas compras de mantimentos incontornáveis.
Voltamos a passar pela lagoa (seca) dos Arcos. Encontramo-la, por fim, iluminada por um sol matinal radiante.
Atraídos pela vegetação que sobrevive da água subterrânea e de lamas superficiais, distintos agrupamentos de gado frequentam-na.
Uma manada de vacas pasta na base das falésias que os Arcos epónimos da lagoa integram.
Um rebanho de cabras, em busca de melhor e disciplinado, ascende um trilho que dá acesso a árvores com folhas suculentas.
Cirandamos, por ali, atentos aos seus movimentos e a como enriqueciam a paisagem. Pouco tempo depois, revertemos o trajecto em busca da Estrada Nacional 100 que nos levaria mais para sul.
À saída dos Arcos, passamos pelo mesmo lugarejo que lhe serve de portal e pela mesma bandeira do MPLA que, à imagem de tantas outras disseminadas por Angola, exibe a filiação das suas gentes ao partido eternizado no poder.
Em vez de seguir por uma via demarcada, Alexandre, o guia que nos conduz, decide confiar na secura da vastidão e na sua já comprovada capacidade de navegação.
Confrontado com uma imensidão inóspita sulcada por marcas de rodagem e sem vista do Atlântico, improvisa um rumo, atento apenas às manchas mais escuras, indicativas de areias em que o jipe se atolaria.
À Procura de Welwítschias Mirabilis
Chegamos ao asfalto incólumes. Deixamo-lo instantes depois para um tal de Desfiladeiro dos Flamingos, que Alexandre percorre na direcção do oceano. A determinada altura, apercebemo-nos que o salpica uma colónia de welwítschias.
Mais rodada no que diz respeito à sua promoção turística, há muito que a Namíbia promove esta grande planta endémica do deserto Namibe como a sua flor nacional, marca emblemática de cerveja e afins.
O Namibe angolano é, todavia, o mesmo. Apenas mais setentrional. As welwítschias mirabilis despontam das suas areias em lugares inesperados e remotos como aquele.
Tornam-nos ainda mais místicos e mirabolantes, como a planta em si, um quase-milagre do deserto que se desenrola em longas folhas tentaculares que justificam o nome popular de polvo-do-deserto.
Alexandre ilustra-nos como se dividem em espécimes machos e fêmeas.
Como se buscam uns aos outros, munidos de flores distintas que se polinizam e, assim, perpetuam a inusitada espécie gimnospérmica.
Examinamo-las e fotografamo-las com a admiração que nos merecem. Após o que voltamos a retroceder em busca do asfalto.
Apontamos à estrada litoral que ramifica da EN100. Cruzamos o rio Curoca, a umas poucas centenas de metros da foz.
Do seu vestígio de caudal perdido num leito pedregoso e ressequido, seguimos para sul.
Litoral do Namibe Abaixo, Rumo à Velha Porto Alexandre, actual Tombwa
Detemo-nos num promontório ventoso de que de destaca um templo cristão ermo, acompanhado da beira da estrada, pelas ruínas de uma casa com visual colonial que alguém identificou como “Café Mito da Utopia”.
Completamos a curta peregrinação até á Capela da Nª Srª dos Navegantes.
Da orla costeira que a acolhe, vemos as areias do deserto deslizarem encosta nua abaixo e juntarem-se ao Atlântico verde-azulado.
Dali, avançamos até à cidade, em tempos coloniais portugueses conhecida como Porto Alexandre, hoje, baptizada com o nome local das plantas welwítschia: Tombwa.
A Génese Lusa e Piscatória de Tombwa
Porto Alexandre foi fundada, por volta de 1863, diz-se que por pescadores de Olhão a que, mais tarde (1921), se juntaram outros originários de Vila do Conde que terão abandonado o Brasil por se recusarem a perder a nacionalidade portuguesa.
Durante o século XX, a enorme quantidade de peixe ali atraída pelas águas frias e ricas em nutrientes da Corrente de Benguela, sustentou a migração de milhares de angolanos e o desenvolvimento de uma séria actividade piscatória, dotada de infraestruturas condizentes.
De tal maneira que, em 1961, Porto Alexandre se tornou cidade e atraiu visitas regulares de sul-africanos adeptos da pesca recreativa.
A sobrepesca e a subida da temperatura da água devido ao aquecimento global fizeram com que os peixes diminuíssem.
Ainda assim, quando percorremos a rua marginal de Tombwa, vemos as praias pejadas de embarcações de pesca.
São barcos que, malgrado as adversidades, continuam a alimentar os quase 50 mil habitantes da cidade.
Tombwa retém boa parte dos edifícios erguidos nos anos anteriores à independência angolana: a escola primária, a igreja, dezenas de vivendas com óbvia arquitectura lusa.
Destoam, sobretudo, alguns prédios e os murais garridos em redor da rotunda que faz girar o trânsito no centro da cidade. Almoçamos ali por perto, enquanto Alexandre compra um bidon e alguns mantimentos ainda em falta.
Para sul de Tombwa, o asfalto deixa de ter lugar. Voltamos a sulcar uma extensão arenosa por que nem todos se aventuram.
Por essa altura, Alexandre tinha voltado a retirar boa parte do ar aos pneus do jipe.
Avançamos, como que numa levitação acelerada, areal a perder de vista adentro.
PN Iona: do Malogrado navio “Vanessa” ao Portal para o Grande Parque
O condutor e guia leva-nos até à beira-mar. Lá nos revela o “Vanessa”, um barco de pesca encalhado e que as marés fizeram afundar na areia.
Quando chegamos, as suas torres e estruturas descobertas servem de pouso a corvos-marinhos.
A embarcação era apenas uma de centenas derrotadas pelo mar traiçoeiro ao largo do Deserto do Namibe.
Mais para sul, já em território namibiano, os barcos naufragados e entregues às areias são tantos que esse litoral foi baptizado de Costa dos Esqueletos.
No entretanto, regressamos a um interior ligeiramente elevado do deserto.
O Parque Nacional Iona tinha, por ali, um posto de controle e de abrigo dos seus rangers.
Era suposto lá nos registarmos.
Fazemo-lo segundo indicações do oficial de serviço A.Chipandega.
Monitorados ainda por um coiote habituado a por ali cirandar, atento a qualquer oferenda dos humanos.
Um cartaz alerta para uma zona ainda minada, um dos legados trágicos da longa Guerra Civil Angolana.
PN Iona: em Busca das Grandes Dunas Rosa
Seguimos noutra direcção. Na das reputadas Dunas Rosa do Iona, um sem fim de dunas hiperbólicas a que o sol rasante confere o tom. Para as alcançarmos, temos que passar para o areal limiar, o batido pelas vagas do Atlântico.
Em plena época do cacimbo, o forte vento vespertino estendia-as quase até à base das dunas.
Com a maré-vazante já bastante recuada, o alcance das ondas concede-nos uma margem de manobra aventurosa que, como outros guias-condutores da zona, Alexandre Rico tinha aprendido a controlar.
Avançamos, assim, sobre a areia molhada e endurecida.
Na maior parte do percurso, a salvo das vagas, mas, a espaços, por elas apanhados e com a progressão do jipe comprometida pela água.
Sobrevivemos a umas quatro ou cinco incursões do mar.
Após um desses sustos, damos de caras com uma foca enorme que, desajeitada, se arrasta areia abaixo, ansiosa pela segurança do oceano.
Adiante, Alexandre detém o jipe: “A partir daqui é a zona da morte.
Noite Passada às Portas da Zona da Morte
Durante o cacimbo já não podemos avançar mais. As dunas são enormes e a distância é demasiada para a conseguirmos percorrer a salvo do mar.”
Ascendemos, a pé, ao ponto mais alto e panorâmico.
De lá, admiramos o confronto assombroso entre o Deserto do Namibe e o Atlântico, atormentados pelas rajadas de vento sul que nos atiravam areia das arestas dunais.
Fotografamos um ocaso filtrado por nuvens que enegreciam o horizonte ocidental.
Logo, refugiamo-nos na base de uma duna usada para pernoitas nas Dunas Rosa do Parque Nacional Iona
Lutamos contra o vento até conseguirmos estabilizar uma fogueira alimentada com troncos e ramos apanhados na praia. Cozinhamos e partilhamos uns petiscos.
E estórias de Angola, do deserto, da vida de Alexandre e de tudo um pouco.
Derreados pela longa viagem, pelo frio e, sobretudo, pela adrenalina gerada pelo derradeiro trecho, rendemo-nos ao desígnio de dormirmos no deserto.
A Aurora Resplandecente do Deserto do Namibe Dourado
O despertar prenda-nos com o Deserto do Namibe dourado pela aurora.
Aquela espécie de amostra gerou, em nós, um deslumbre absoluto. Ainda nos mantemos na ansiedade de regressarmos ao Parque Nacional Iona fora da época de Cacimbo.
De cruzarmos a Zona da Morte.
E de nos premiarmos com uma expedição à enigmática ilha da Baía dos Tigres.