O percurso rodoviário para o início do trilho revela-se bem mais longo do que estávamos a contar.
Tem início a norte de Saint Pierre, uma das quatro cidades com nomes santificados (Saint Louis, Saint Pierre, Saint Joseph, Saint Philippe) que se sucedem nos fundos da ilha da Reunião.
Deixamos a vivenda em que nos hospedávamos para um circuito de montanha russa pelos campos de cana-de-açúcar que preenchem o distrito de Saint Pierre.
Em pleno Verão do hemisfério sul, onde o Trópico de Capricórnio passa logo abaixo da ilha, encontramos a cana na sua altura máxima prévia ao corte. De tal maneira crescida que, aqui e ali, obriga as autoridades rodoviárias a equipar cruzamentos rurais de semáforos.
Nessa torrente de cana, avançamos para norte e para o centro da ilha, às tantas, por vertentes do vulcão que a altitude transforma em prados salpicados de pequenas árvores.
Fica para trás a terra lisa da Plaine des Cafres. Já pela Plaine des Remparts, a via contorna a cratera exterior de Commerson.
Piton de la Fournaise e sua Lava à Vista
Sobre a fronteira entre os distritos de Saint-Pierre e Saint-Benoit, ascendemos e entramos na grande caldeira de Fouquê. Num ápice, o verde que resistia rende-se a uma vastidão lávica, avermelhada e rugosa.
A estrada finda, de frente para uma falésia quase vertical que oculta o rebordo interior da caldeira.
Nas imediações do Pas de Bellecombe, uma benesse geológica viabiliza que continuemos a pé.
Num ápice, chegamos ao cimo da orla. Detemo-nos a apreciar os cenários opostos e as suas diferenças.
De um lado, a imensidão sulcada pelas Routes Forestières do vulcão. Para o outro, uma nova vastidão, enegrecida, com um visual estéril quebrado por arbustos que despontam de cada greta na lava.
A espaços, nuvens brancas formadas sobre o Índico a leste elevam-se e invadem a coroa do vulcão. Aí, desintegram-se numa névoa fina que paira sobre o solo e irriga a vegetação.
Essa névoa borrifa a atmosfera algo extraterrestre do lugar, bem patente num cone de que percebemos as gradientes do ocre e a forma caprichosa, semelhante à das armadilhas para outros insectos construídas pelas formigas-leão.
Essa semelhança inspirarou os geólogos a baptizarem-na de Formica Leo.
Tal como tinha subido, o trilho ziguezagueava, agora, acima de falésias cortantes.
Logo, voltava a descer, pelo interior da orla que a maior riqueza mineral e a humidade retida florestava.
Descida para a Grande Caldeira do Piton de la Fournaise
A preceder a descida, uma placa vermelha e branca afixada num portão de ferro que, em caso de perigo, barraria a passagem, avisava os caminhantes para aquilo em que se iam meter:
“Erupção provável nos próximos dias. Recomenda-se prudência. Não deixe os trilhos sinalizados.”
Registamos a advertência mas prosseguimos.
Vencidos vários zês protegidos por vedação, atingimos a superfície lávica e plana interior.
Instantes depois, estamos nós próprios a caminhar sobre a escória resvaladiça da Formica Leo, com vista para o pico Piton de la Fournaise que escondia a cratera principal.
A sua encosta noroeste exibe manchas de escoadas recentes.
Em redor da Formica Leo, junto a distintas secções do trilho, a lava expelida pelo grande vulcão fornalha da Reunião exibia-se com aspectos díspares que as autoridades se dignavam a identificar.
Preenchia a quase totalidade da caldeira Fouquê lava de fluxo mais rápido, tipo pahoehoe.
Nas imediações da Formica Leo, encontravam-se, todavia, excertos de lava encordoada, com falhas de que, uma vez mais, brotavam arbustos.
Outros trechos ainda revelavam fluxos díspares e concorrentes. Lava esfarelada e mais escura de tipo A, acumulada sobre torrentes pahoehoe de um castanho claro.
Do cone Formica Leo, progredimos rumo à base do Piton.
A Capela de Rosemont, na Base da Cratera de Dolomieu
Quase a atingi-la e aos 2300 metros de altitude, antecede-a nova formação vulcânica peculiar, a La Chapelle de Rosemont, uma formação rochosa secular, registada e descrita aquando de uma primeira expedição ao vulcão, de 1768.
Eternizada, em 1791, pelo pintor J. J. Patu de Rosemont.
Como tantas outras formações e formas de vida em redor, em 2018, a lava expelida pelo vulcão cobriu-a na íntegra. Causou o colapso do seu interior.
Uma abertura quase quadrangular ainda concede aos mais ágeis e destemidos uma estranha entrada para o altar místico e escurecido, em que salvo excepções, a presença de uma estatueta de Nossa Senhora ou de Jesus Cristo sinaliza um refúgio espartano de oração.
Da capela de Rosemont, o trilho faz-se, de uma vez por todas, à vertente da cratera Dolomieu, na diagonal, por forma a suavizar o trajecto.
Contadas umas dezenas de passos, embrenhamo-nos na névoa que tínhamos avistado do cimo da caldeira, quanto mais para cima e para leste, mais arrefecidos pela humidade, envoltos numa alvura flutuante e enigmática.
Aqui e ali, cruzamo-nos com vultos que regressam já do cimo.
Piton de la Fournaise conquistado e a Cratera à Vista
Quarenta minutos passados, entre esculturas naturais de lava pura e dura, atingimos a orla suprema. Mesmo assim, com bastante menos esforço e cansaço do que os exigidos por outros vulcões que conquistámos. O caboverdiano Fogo, bem acima da sua Chã das Caldeiras. O majestoso El Teide, de Tenerife e vários outros.
Ficamos com a cratera Dolomieu logo abaixo e uma linha pintada de branco que delimitava a área em que os caminhantes podiam recuperar e admirá-la em relativa segurança.
Instalada nesse refúgio, uma família piquenicava, com as nuvens que chegavam de Oriente, a sobrevoarem-na.
Outras nuvens desfaziam-se no interior da cratera, contra o calor difundido pelas entranhas do manto terrestre.
Naquela altura, como em tantas outras, o Piton de la Fournaise provou-se tratável. Não obstante, este vulcão da ilha da Reunião com cerca de 530 mil anos, mantém-se vigoroso.
Um Passado de Erupções Regulares
A sua última erupção, datada de 19 de Setembro a 7 de Outubro de 2022, deu-se cerca de oito meses após a anterior, dentro da média de oito ou nove meses de intervalo até ao seu reservatório magmático se preencher e reavivar o fulgor que dele fazem um dos mais activos da Terra.
Em termos de libertação de lava, o Piton de la Fournaise é comparável, por exemplo, ao Etna mas, ainda assim, muito menos produtivo que o Kilauea que mantém a ilha de Hawai’i em permanente crescimento.
Como constatávamos do cimo, a maior parte da lava do Piton de la Fournaise fluía pela encosta leste da cratera, na direcção dos fundos orientais da Reunião, rumo ao Índico.
Noutros dias de exploração, percorremos a estrada N2 que cruza o caminho inexorável da lava, pouco acima de onde se funde com o oceano e, à imagem da Big Island havaiana do majestoso mas inactivo Mauna Kea, faz expandir a ilha.
Essa área de escoamento da lava para oriente revela-se imensa.
Nos quase 12km entre o Quai de la Rouville (norte) e o antigo porto do Quai de Sel (sul), contam-se pelo menos quatro rios de lava que as sucessivas sobreposições e solidificações deixaram bem vincados.
Nem sempre a lava se fica por este raio de acção.
Os Rios de Lava da Vertente Leste e o “milagre” da Notre Dame des Laves
Durante uma erupção de 1977, fluiu bem mais para norte, pelas imediações da povoação de Piton Sainte-Rose. No seu curso, a lava cercou uma igreja católica local e descaiu por 3 metros da nave adentro.
No computo geral, o templo foi poupado.
Um corrimão prateado facilita-nos e aos crentes a entrada e permite-nos constatar o bom estado do interior, uma clemência da Natureza que contrasta com o destino de Plymouth, capital da Pequena Antilha Montserrat.
E que mereceu o seu rebaptismo para Igreja da Nª Srª das Lavas e que os fiéis consideram óbvia intervenção divina.
Por estes lados da Côte-au-Vent, a humidade que a brisa sopra de leste e a maior distância da cratera viabilizam uma floresta improvável.
Os franceses tratam-na por Floresta do Grande Queimado.
Túneis de lava serpenteiam pelo subsolo e sob a linha exígua de asfalto que as autoridades sobrepõem à lava. Até que o vulcão se ira, a volta a cobrir e exige nova obra.
Nesses intervalos de clemência, também a vida humana germina. Vemos um pelotão de ciclistas pedalar pelo cenário de assombro.
Passam por um restaurante improvisado a partir de uma carrinha, dois toldos e umas poucas mesas e cadeiras que, com a tarde a dar de si, se arruma e encerra.
Tempo de Caminhar para Fora da Caldeira
Sobre a orla da cratera de Dolomieu, o iminente fim do dia gera nos randonneurs tardios uma pressa acentuada.
Todos sabem que, sobre a lava negra, a escuridão cai a dobrar.
De acordo, com as nuvens a rosarem a ocidente, afluem para o doloroso regresso aos veículos em Bellecombe e às suas casas.
Reentramos na vivenda de Saint Pierre tarde, a más horas, derreados pelos mais de 10 km sobre a lava fracturada e fracturante.
Em regozijo por, num dos seus próprios recobros, o irascível Piton de la Fournaise assim nos ter acolhido e deslumbrado.