Decorriam os primeiros tempos da vigente pandemia e seus confinamentos quando, a notícia de uma evasão indevida se destacou das demais.
Cristiano Ronaldo tinha ido passar uns dias à Madeira.
Com a ilha e todo o Portugal confinados, publicou fotos suas com a companheira e o filho em passeio na Ponta de São Lourenço.
O seu, à época, mais recente capricho suscitou uma polémica condigna, ainda assim, muito aquém da excentricidade geológica da península extravagante que o acolheu.

Uma rocha com forma de paquiderme entre o Caniçal e a Ponta de São Lourenço.
O Primeiro e Estranho Avistamento da Ilha da Madeira
À passagem ao largo, se distraído, quem chega de ferry da vizinha ilha de Porto Santo poderá ser levado a pensar que nunca chegou a deixar o ponto de partida.
A Ponta de São Lourenço condiz bem mais com Porto Santo ou as Desertas que com a verdejante, em certos pontos, luxuriante Madeira.
E, no entanto, encerra-a como um apenso oriental, sinuoso e bizarro, que o confim oposto da ilha não tem igual.

A forma caprichosa da Ponta de São Lourenço.
No nosso caso, partimos da capital Funchal. Passado o Machico, a visão do porto e complexo industrial do Caniçal deixa-nos apreensivos.
Contornada a Quinta do Lorde, deixamos para trás o derradeiro vestígio de civilização povoada.

Estrada que conduz ao norte da Ponta de São Lourenço, com vista para a costa norte da Madeira.
Uma rotunda que acolhe uma palmeira frondosa e uma roulotte de comes e bebes estabelece o limite rodoviário.
Daí em diante, ao longo de 9km, a Ponta de São Lourenço assume as cores e formas que a sua geologia vulcânica e pré-histórica lhe concedeu.
Revela-se e deslumbra por Natureza.

Caminhantes fazem uma pausa no percurso PR8 da Madeira para admirarem a costa norte da Ponta de São Lourenço.
PR8 – Um Trilho Acima e Abaixo da Ponta de São Lourenço
O trilho que a sulca recebeu o código de PR8. Começa por curvar a meia-encosta, acima do Atlântico suave e cristalino da Baía d’Abra.
Logo, desce para um aperto encerrado pela Praia de São Lourenço.
Entretanto, desvia para a vertente oposta.
Lá nos deixa num miradouro virado a norte que exibe um castro de ilhéus e rochedos exuberantes, castigados sem clemência pelo mar setentrional.

Penhascos aguçados ao largo da costa norte da Ponta de São Lourenço.
Mesmo à sombra, impressiona-nos a imponência da enseada que dali se estende até à espécie de cabo da Ponta do Rosto.
Os seus penhascos elevam-se mais cem metros acima do mar.
Em diversos pontos, o trilho avança sobre o fio da navalha dessas alturas. Renova uma inesperada sensação de vertigem.
Aos ziguezagues, descemos para o istmo rasante, curvo e sombrio em que o “mar do Norte” por pouco se funde com o do Sul.
O extremo oposto, coloca-nos na base da quase-ilha que se segue.

Pesca artesanal ao largo da costa sul da Ponta de São Lourenço.
Havia algum tempo que vislumbrávamos um oásis diminuto, um palmeiral tão verdejante como destoante.
Umas centenas de passos depois, percebemos que emprestava sombra à famosa Casa do Sardinha, bar, restaurante, centro de actividades e de recuperação de energias.
Para muitos, a principal razão de ser da caminhada.
Casa do Sardinha, o Coração Logístico da Ponta de São Lourenço
O nome do estabelecimento mantém-se aquele porque ao longo dos anos ficou conhecido.
Ambos, foram legados pelos antigos proprietários daquelas terras, criadores de gado, como o provam as pedras de curral que por ali subsistem, num tempo em que boa parte da península admitia pastos e até cultivos.
De trigo, da cevada plantada pelos também camponeses da vila piscatória do Caniçal que a faziam germinar no solo aparentemente inóspito do actual Ilhéu da Cevada (dos Desembarcadouros).
Não tardámos a avistá-lo.
São Lourenço, o Porquê do Santo Baptismo
A Ponta de São Lourenço está para sempre ligada aos primeiros momentos da descoberta e colonização da Madeira. Preserva o nome da caravela de João Gonçalves Zarco, um dos três descobridores da ilha.
O achamento da Madeira deu-se em 1419, um ano após do de Porto Santo. Por sua vez, a colonização mais próxima da Ponta de São Lourenço, a do Caniçal, verificou-se por volta de 1489, quando Vasco Martins Moniz e o seu filho primogénito Garcia Moniz lá se instalaram numa fazenda.
No início do século XVI, os Moniz ergueram uma igreja que deu origem à mais antiga das pequenas paróquias da Madeira, São Sebastião do Caniçal, mais tarde, freguesia do Caniçal e uma das coutadas preferidas dos descendentes do Capitão Donatário pioneiro do Porto de Machico, Tristão Vaz.

Mar esmeralda e cristalino na costa norte da Ponta de São Lourenço.
Corsários Ingleses, Piratas Mouros e Ameaças Afins
A colonização do extremo oriental da ilha sempre se provou problemática. Sobre o virar para o século XVII, em plena Dinastia Filipina, os ingleses, inimigos viscerais da Coroa Espanhola, encarregaram-se de atacar e saquear os seus habitantes.
Não foram os únicos. O isolamento daquela ponta da Madeira, às portas de África, tornava-a também vulnerável às pilhagens mouras.
A zona revelava-se tal maneira susceptível, que a Capitania de Machico relembrava com frequência os colonos para se manterem atentos às fogueiras do Caniçal.
Durante algum tempo, foi este o único sistema de alerta de ataques provindos do lado da Ponta de São Lourenço. Anos mais tarde, reforçou-o um pequeno forte-vigia.
As infraestruturas de defesa poderiam ter sido outras, bem mais funcionais, caso tivesse passado da mente do Marquês de Pombal a ambição de erguer um porto na Baía d’Abra, conjecturado para abrigar dez naus.
Em vez dessa estrutura, hoje, serve a Ponta de São Lourenço o ínfimo Cais do Sardinha, o ancoradouro e prainha de seixos e água cristalina que regala os caminhantes com banhos recompensadores. Também lá teríamos o nosso mas, regressemos ao trilho.

Cais do Sardinha e a sua praia pedregosa.
A Derradeira e Mais Extenuante Ascensão
É detrás da Casa do Sardinha que parte o derradeiro trecho do PR8, de longe o mais cansativo. Um esboço de escadaria feita de centenas de socalcos irregulares e demasiado largos exigem-nos das coxas, toda a sua força.

Caminhante percorre o itinerário PR 8 ao longo do limiar leste da ilha da Madeira.
Sabemos que o vencemos e que conquistámos os 162 metros do Pico do Furado quando damos com o Miradouro sem saída da Ponta do Furado.
Nesse cimo uma vez mais exposto ao norte, internado no Atlântico como nenhum até então, a ventania é infernal. Perturba-nos a estabilidade necessária à fotografia e agrava o receio de, sem planos para tal, dali nos estatelarmos no fundo rochoso e pedregoso do sopé do Morro do Furado.
Deslumbramo-nos com a solidão insular do Farol algo equilibrista da Ponta de São Lourenço (107m), o limiar humanizado da península. E, para leste, com o vislumbre das esguias Desertas.
Mesmo desejosos de avançar para lá do reduto encordoado, resistimos ao vendaval e fintamos a tragédia.
Uns poucos metros aquém do Pico do Furado, espanta-nos o fulgor vegetal de uma planta que proliferava da sombra e humidade retida entre dois penhascos.

Um dos poucos exemplos de planta verdejante.
Uma Fauna e Flora de Reserva Especial
De aparência inóspita, a Ponta de São Lourenço acolhe formas de vida tão especiais que, em 1982, foi decretada Reserva Natural: a península em si, reserva parcial. O Ilhéu da Cevada, reserva total.
Feitas as contas, a península é habitat de 138 espécies de plantas, 31 delas exclusivas da ilha da Madeira.
No que diz respeito à fauna, abriga uma das maiores colónias de gaivotas do arquipélago, Corre-caminhos, Pintassilgos, Canários-da-Terra, Francelhos, Cagarras, Roques-de-Castro, Almas-Negras e espécimes de Garajau-Comum, bem como alguns inusitados caracóis endémicos.

Ave-marinha em pouso sobre uma aresta basáltica.
Ao largo, apesar de mais fáceis de encontrar nas ilhas Desertas, são avistados, de quando em quando, Lobos-Marinhos.
Revertemos à Casa do Sardinha.
Desse quartel-general providencial, regressamos ao início do trilho.
À Descoberta da Ponta de São Loureço. Agora por Mar
Uns dias depois, complementamos a caminhada com uma exploração marinha da Ponta de São Lourenço. Zarpamos da doca da Quinta do Lorde.
Navegamos ao largo dos recortes que precedem a península e, passada a Ponta do Buraco, sobre as águas tranquilas da Baía d’Abra.

Uma lancha percorre a costa sul da Ponta de São Lourenço.
Após uma escala no Cais do Sardinha, seguimos para a base da Ponta do Furado, de onde, ao contrário do miradouro acima, conseguimos detectar e fotografar o furo geológico em questão.
Prosseguimos ao largo do Ilhéu da Cevada, até chegarmos ao estreito que o separa do vizinho ocre de São Lourenço.
Agora, a partir da superfície do mar, impressionamo-nos a dobrar com o coroar destemido do farol homónimo, inaugurado em 1870 e, como tal, o farol ancião da Madeira.
De alguma forma, o Ilhéu do Farol protegia-nos das correntes e vagas caprichosas geradas pelo encontro dos mares do Norte e do Sul. Protegia, mas não muito.

O Farol de São Lourenço, a coroar o Ilhéu do Farol
Quanto mais deixávamos a sombra dos seus penhascos e nos expúnhamos à vastidão do oceano, mais as ondas e as correntes nos faziam sentir a fragilidade que Gonçalves Zarco, Tristão Vaz Teixeira e Bartolomeu Perestrelo souberam domar.
Com o vento a dramatizar o fluir da lancha, impôs-se um regresso às águas tranquilas do sul. Tínhamos desvendado a ponta remota da Ponta de São Lourenço.
Nas muitas voltas que demos à grande ilha, não voltámos a ver uma Madeira assim.
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