Após inúmeros meandros, caprichosos como o recorte serrado da costa norte da ilha, a estrada interna-se num inesperado apêndice geológico.
Intersecta uma laje de tom ocre, de tal forma espalmada e alongada que acolhe o relvado do clube local, o Solpontense FC.
Como se não chegasse o desafogo, na quase ponta desta ponta, há ainda a pista do Aeroporto Agostinho Neto, desactivado desde 1999, em consequência de um avião provindo de São Vicente se ter deparado com visibilidade quase nula e se ter despenhado, aos 1300 m de altitude de Santo Antão.
A Rua Direita prova-se de tal maneira directa que quase entra pelo porto da Ponta do Sol abaixo. Identificamo-lo pela sua forma de Boca de Pistola.
E pela abundância de barcos artesanais em doca seca, encaixados com critério que baste às entradas e saídas frequentes.
O Porto Piscatório Improvisado da Boca Pistola
Cada qual, com a sua combinação de cores vivas e nomes que só os donos e pescadores sabem por que os escolheram.
O “Nha Sonho”, o “Flor de Baía”, o “Andorinha” o “Maria de Fátima” entre outros, todos unidos pelo código da terra que os acolhia: “P. Sol.”
Àquela hora, mais chegavam.
Embalava-os o mar zangado do Norte que nem o pontão mal-amanhado, já quebrado pelas sucessivas tempestades conseguia amainar.
Os homens ao leme das pequenas embarcações viam-se, assim, obrigados a contar com a intrusão das vagas, para não esbarrarem nas escoadas de lava opostas.
Um atrás do outro, sem atribulações, mais barcos eram puxados para cima da rampa verdejante que os limos faziam escorregadia.
Vinham carregados com a pescaria da tarde: garoupas, charrocos, serranos, salmonetes, pargos e as esticadas moreias.
Vimos parte dos espécimes serem amanhados sobre as poças salgadas da lava, por homens de peles que o sol já pouco escurece, de caras austeras, mas que, face a pedidos bem-dispostos, concedem sorrisos suaves.
Outra parte, é vendida logo ali, na iminência dos restaurantes-marisqueiras de Santo Antão.
Estes negócios complementam uma oferta de alojamento que tem aumentado ao ritmo a que os viajantes tornam famosos os cenários e as incontáveis rotas de caminhada únicas da ilha, algumas, por trilhos das montanhas que encerram a Ponta do Sol.
Regresso ao “Outro Tempo” de Santo Antão e de Cabo Verde
Tempos coloniais houve em que a vida e até o nome da povoação eram outros, bem distintos. Durante a quase totalidade do século XX, as suas gentes crioulas não poderiam sequer imaginar que, remota como era, a povoação conquistaria tal notoriedade turística.
Décadas a fio, foi daquele mesmo porto, hoje piscatório, que os santantonenses sofreram o desgosto de partirem para servirem, sem retorno, as roças longínquas de São Tomé e Príncipe, desgosto, agora, com fama mundial, pela letra de Armando Zeferino Soares e a voz de Cesária Évora.
Se bem que o tema abordava, em particular, as despedidas dramáticas da ilha de São Nicolau, de onde era natural Zeferino Soares.
O aeroporto vizinho do porto, por sua vez, foi baptizado de Agostinho Neto, na medida em que o político, primeiro presidente de Angola, por ali viveu o degredo cabo-verdiano a que o votou o governo de Salazar.
A Era Colonial da Villa Maria Pia
Na mesma senda das evocações e homenagens, à Ponta do Sol, os colonos portugueses chamaram Villa de Maria Pia, em honra da rainha portuguesa, também eternizada como Anjo da Caridade e Mãe dos Pobres.
Tratada pelo destino e pela História de forma inclemente, sobretudo nos derradeiros anos de vida, em que a afligiu o regicídio do seu filho D. Carlos e do neto mais novo, D. Manuel II.
Por altura da implementação da República, já a dita villa no cocuruto de Santo Antão existia há várias décadas, a partir de determinada altura, como quartel-general dos governadores da ilha.
Quando, em 1900, um tenente da armada levou a cabo um levantamento da Comissão de Cartografia do Porto da Ponta do Sol, encontrou e registou uma grelha geometrizada semelhante à actual, orientada numa diagonal sudeste-noroeste, com base numa grande praça empedrada.
No século e pouco que decorreu, como seria de esperar, a vila expandiu-se.
Com a pista do aeroporto desactivado e o Atlântico a delimitarem-na acima, estendeu-se para a base da laje, cada vez mais próxima do sopé das montanhas e, assim, providenciou abrigo aos seus mais de quatro mil habitantes.
A Praça da Igreja e a Grelha de Ruas na Diagonal de Ponta do Sol
À data da nossa visita confrontavam-se ainda, na praça, o poder religioso e o executivo:
uma igreja alva de duas torres, com a companhia de uma palmeira contra o palacete repleto de janelas, amarelo garrido da edilidade da Ribeira Grande, a segunda maior cidade de Santo Antão e capital indisputada do Norte.
Dos transeuntes com que nos cruzamos, duas fiéis, ambas de lenço na cabeça, casaco e saia, preferem a protecção divina.
Uma delas senta-se num banco da praça, no prolongamento do templo.
Deixa-se afagar pelo sol suave do fim da tarde, a ver a vida passar.
Quando percebemos que a sombra se apoderava das encostas, metemo-nos a caminho.
Parte de uma das conversas de ocasião, um pescador tinha-nos assegurado que não podíamos deixar de ir a Fontainhas. Nesse mesmo fim de tarde, apontamos ao lado oposto da base da laje e ascendemos a montanha.
A vista começa por se restringir ao casario de Ponta do Sol.
À medida que progredimos pela estradinha estreita, mais estreita que a Estrada da Corda a que nos tínhamos habituado, ziguezagueante e de terra batida, pelo cimo das falésias sobranceiras ao Atlântico, desvendamos novos e inesperados cenários.
Uma Inesperada Visão Pecuária, acima de Ponta do Sol
Já tínhamos passado junto a um complexo de currais, pouco antes de chegarmos a Ribeira Grande. Vimo-los feitos de muros de pedra, geminados, encavalitados por um talvegue estreito acima.
Daquele alto a que a estrada nos levara, desvendamos uma outra realidade pecuária de Santo Antão. Duas enormes estruturas de cimento e pedra, preenchiam, em espelho, o quase topo de uma encosta.
Estavam divididas em dezenas de compartimentos-curral, cada qual, lar de um ou mais porcos.
Espantados pela dimensão da estrutura, detemos o carro e observamos com olhos de ver.
Donos dos animais, moradores da Ponta do Sol e arredores, alimentavam os suínos com restos, uns através dos portões gradeados, outros, mais jovens, empoleirados sobre os muros divisórios, todos eles, entregues a uma descontraída cavaqueira.
Destacados da estrada como estávamos, depressa nos avistaram.
Acenamos, gritamos um olá ao vento. Pressionados pelo entardecer, tiramos umas derradeiras fotos.
Sombra e Vertigem, no Caminho para as Fontainhas
A estrada metia-se por um recorte profundo da montanha. Contornava-o num modo oscilante e abismal que nos deixou inquietos quanto ao que o resto do caminho traria.
Derrapamos sobre a hesitação quando, do nada, um homem que há algum tempo nos estaria a controlar, surge do cimo dos currais, enfiado num fato-macaco azul. “Vão para as Fontainhas?” pergunta-nos, ofegante da correria íngreme. Levem-me até lá, por favor, que já estou atrasado e a pé demora!”
Sem que tivéssemos sequer respondido, salta para a caixa da pick up. A ideia até era abrir-lhe a porta. Quando percebe que o tentávamos corrigir, o passageiro-súbito apoquenta-nos mais um pouco. “Ah. Deixem estar. Eu, de carro, sobre aquelas ravinas, até prefiro ir aqui.”
Retomamos o caminho, com cuidados redobrados. Daí, em diante, triplicados.
Lá em baixo, avistamos praias cruas, de areia negra que o Atlântico invade, primeiro, com a espuma branca da sua fúria alísia.
Logo, com um verde que a sombra já eclipsava.
Avançamos, entre socalcos impostos às vertentes, os mais elevados, quase assomados, ressequidos.
Os restantes, quanto mais próximos do fundo do vale e do leito do rio decíduo que o preenchia, mais férteis e verdejantes.
O Casario Equilibrista e Retirado das Fontainhas
No seguimento, vemos as primeiras aglomerações de casas, assentes sobre socalcos reforçados, num equilíbrio empilhado prodigioso.
Esses lares introdutórios dão lugar ao casario inusitado das Fontainhas.
Admiramo-lo, organizado em dois blocos principais, o último, a preencher toda uma crista do relevo, mesmo se exígua, aproveitada por várias dezenas dos quase trezentos habitantes.
À data, a aldeia tinha no Bar Tchu um ponto de encontro.
Entre os seus e com os caminhantes forasteiros que cada vez mais a procuram, curiosos por testemunhar tão fascinante retiro.
Quem chega às Fontainhas a pé percebe melhor que ninguém que o desterro é mais visual que real. Malgrado o isolamento no quase fundo dos vales, a aldeia dista uns meros 2 km de Ponta do Sol.
Nos primórdios coloniais, abundavam casos, esses sim, extremos, de autoisolamento.
Em que, para garantirem protecção de piratas e outros inimigos, os colonos se refugiavam para o verdadeiro interior de territórios à mercê.
No caso dos fontainhenses, além da relativa proximidade da vila, desde sempre existiu a companhia de lugarejos próximos, também eles integrantes da freguesia de Nª Srª do Livramento:
Aranhas, Corvo, Formiguinhas, Ladeira, Lombo, Lombinho de Mar, Mane Corre, Selada, Zulinca.
E outros a que nunca foi dado nome.
A escuridão começava a apoderar-se daqueles sulcos na montanha. Sem vontade de cumprirmos o regresso na penumbra, para grande frustração fotográfica, vemo-nos forçados a antecipá-lo.
Na volta à Ponta do Sol, cruzamo-nos com moradores da vila habituados a fazer daquele percurso um exercício físico, exigente, mas deslumbrante.
Quando, por fim, descemos à planura ocre da laje, já o sol tinha caído havia muito, para trás da ponta setentrional de Cabo Verde.