Chega o fim-de-semana e Albuquerque muda para o seu modo lúdico. Vários eventos desportivos e musicais têm lugar nas instalações da universidade local.
Conscientes da inevitável irreverência estudantil, um batalhão de polícias soberbos do Novo México patrulha as vastas instalações académicas com a missão de evitar estacionamentos e comportamentos demasiado caóticos.
Um deles, extrovertido além de altivo, apercebe-se da matrícula do nosso carro e do ar desorganizado do interior e não resiste a comentar: “Califórnia??
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Nativo-americano tem ajuda para terminar de vestir o seu traje, no parque de estacionamento da arena The Pit.
Vocês chegaram mesmo de longe. Vêm por causa do concerto ou dos índios ??” Por essa altura, não fazíamos ideia nem de uma coisa nem da outra. Comparando a excentricidade das hipóteses, optamos por questionar a autoridade sobre a última.
A Supreendente Descoberta do Pow Wow de Albuquerque
O agente diz-nos que o The Pit – a grande arena desportiva que serve de casa à equipa de basquete local, os Lobos – está prestes a acolher um Gathering of the Nations. Mais depressa do que contávamos, confirmamos a informação.
Deixamos o velhinho mas elegante Buick Le Sabre arrumado dentro da legalidade entre os pavilhões da instituição. Atravessamos uma avenida movimentada e damos com outro parque de estacionamento repleto.
Reparamos que, ali, em vez de teenagers eufóricos, saem dos carros e cruzam a estrada indígenas atrapalhados, trajados, pintados e enfeitados com penas, plumas, jóias e outros adereços étnicos que formavam visuais por vezes semelhantes, noutros casos, em tudo díspares.
Aproximamo-nos das roulottes que fazem de bilheteiras e descobrimos os posters que, mesmo já não sendo preciso, provavam que ali tinha lugar um dos maiores pow-wows (encontros de indígenas) da América do Norte.
Elementos de mais 500 tribos tinham vindo dos quatro cantos dos E.U.A. e do Canada para celebrar as suas culturas-mãe e renovar crenças espirituais.
Dividiam-se em diferentes escalões de idades, dos anciãos às crianças com o propósito de participarem em 32 provas de danças, noutras de canto, em competições de tambores e ainda na da Miss Indian World.
Entramos no pavilhão.
Centenas destes participantes e muitos mais apoiantes percorrem o corredor superior para cá e para lá entretidos a conviver, a comprar comida e bebida ou a espreitar as inúmeras bancas de pequenos negócios.
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Milhares de nativo-americanos rodopiam em redor do recinto The Pit.
A Reunião Cerimonial do Gathering of the Nations
Achamos a abertura de uma escadaria e conseguimos finalmente espreitar a arena. As bancadas estão repletas de gente e de cor.
Lá em baixo, um exército exuberante de índios dança em volta do ringue, sincronizado com a banda sonora hipnótica produzida por grupos de tocadores de tambores e por cantores de um falsetto tribal profundo.
Os vários tambores distribuídos em redor do recinto são enormes e ecoam o bater do coração da Terra. Castigam-nos grupos de homens poderosos, alguns de dimensões também exageradas.
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Tocadores de tambores e cantora levam a cabo a sua exibição.
Tínhamos já reparado no tipo de alimentação fast food servida pela maior parte das bancas e bares do exterior e no piso superior, em tudo condizente com a que mina a saúde da nação norte-americana.
Exibiam-se perante nós algumas das vítimas mais improváveis da obsessão ianque pelo lucro fácil e imediato. Na própria assistência que admirava os seus dotes musicais, contavam-se inúmeros indígenas volumosos.
Em tempos, as suas tribos sobreviviam do que recolhiam da Natureza e caçavam.
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Nativo norte-americano com um cocar exuberante.
A Destruição Generalizada das Civilizações Nativo-Americanas
Séculos depois da conquista do Oeste, depois de repetidas perseguições, chacinas e clausuras em reservas, os índios foram reduzidos de muitos milhões a apenas 500.000, uma população ínfima se tivermos em conta o total de habitantes dos Estados Unidos e Canadá, quase 350 milhões.
Vitimam-nos, agora, também, as bebidas açucaradas e os burguers king size, os cachorros, tacos, burritos, nachos e batatas fritas ensopadas em óleos e molhos, uma de várias agressões culturais que sofrem num já longo processo de conformação.
Propulsionada pela argúcia das suas marcas, a civilização capitalista desenvolvida pelos colonos europeus da América do Norte conquistou o mundo com relativa facilidade.
Provindos de uma relação íntima com a terra, os nativos nunca poderiam resistir. Naquele fim-de-semana, os cocares, trajes típicos e rituais exuberantes de cada tribo têm destaque temporário.
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Centenas de índios exibem os trajes das suas tribos durante o Pow-wow de Albuquerque, Novo Mexico.
Findas as participações, a maior parte dos nativos cede aos jeans, sneakers e cumprimentos da moda, às t-shirts e bonés de basquetebol e de basebol, às expressões feitas e às noções empacotadas da nação que destroçou as identidades das suas tribos.
A Manifestação de Resistência do Gathering of the Nations
O Gathering of The Nations a que assistíamos, como outros realizados um pouco por toda a América do Norte, eram manifestações de resistência e de sobrevivência ainda assim impressionantes.
Durante a Grande Entrada sagrada da Eagle Staff – o estandarte que simboliza a união de todos os nativos-norte americanos – os representantes de cada tribo alinham-se para ouvir a Eagle Staff Song e o discurso do MC (Master of Cerimonies) do encontro.
Partilham também uma oração ao criador do Mundo, uma prece comunal pela felicidade e pela cura dos males provocados pelo homem na Mãe-Terra.
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Indígena trajado a rigor destaca-se do restante público.
Já tínhamos descido ao campo de jogo quando prosseguiram as competições de danças inter-tribais, todas com nomes simplistas inspirados pela Natureza ou pelo dia a dia: Dança do Xaile Bonito, Dança do Fumo, Dança do Cobertor ou Dança da Coruja.
Seguiam-se as de canto, intercaladas por mais exibições majestosas dos tocadores de tambores e por curiosas provas juvenis. Ao nível em que a acção se desenrolava, os participantes contornavam o campo vezes sem conta.
Alguns passavam bem rente a nós, entregues ao ritmo, de cabeça baixa oscilante, a repetir movimentos de puro transe.
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Indígena exibe uma dança intensa da sua tribo.
Uma Inusitada Espiritualidade Patrocinada e Premiada
Certas exibições irradiavam profunda espiritualidade. Quando menos esperávamos, a música terminava e o MC anunciava a marca patrocinadora da competição que se seguia, ou o valor do seu prémio em dólares.
Todo o misticismo se desvanecia. Não foi a prova seguinte que o trouxe de volta.
O apresentador dá sinal e os dançarinos apressam-se a deixar o campo. Aos poucos, substituem-nos mulheres de distintas tribos e regiões da América do Norte, dos Tiwa da civilização Puebla em redor de Taos, as tribos da Flórida às do extremo boreal do Canadá.
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Mulheres indígenas retocam os seus visuais numa casa de banho.
Lugar para a Eleição da Miss Indian World
Começam por se alinhar de frente para a bancada principal mas, terminada a apresentação, libertam-se para mais uma dança que um painel de júris avalia com critérios rigorosos.
Ao resultado da dança somam-se os do Discurso Público, Entrevista Pessoal, Apresentação Tradicional e o do Ensaio. A pontuação final determina a eleição da Miss Indian World.
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Jovem indígena rodopia durante uma exibição de dança nativo-americana.
Por norma, a vencedora do ano transacto aparece ao público para resumir nalgumas palavras a honra do ceptro.
Observamos a canadiana Dakota Brook Brant, do clã Mohawk Turtle fazê-lo com uma segurança e orgulho algo automatizados que fazem jus ao título: “Fiquei feliz por ter sido a escolhida para servir como embaixadora. Foi um prazer ajudar a construir relações saudáveis entre os nossos parentes de todo o território índio.”
Marjorie Tahbone, uma Inupiaq/Kiowa alasquense, baixa, redonda e, de certa forma, patusca é tudo menos o protótipo de uma Miss Mundo ou Universo convencional.
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Vencedora do concurso Miss Indian World desfila em redor do recinto.
Apesar da surpresa que nos suscita, arrecada a nova coroa, atribuída segundo valores que pouco têm que ver com aqueles a que estamos habituados nestes certames. Como recompensa, passou o ano em viagem pelo mundo a promover a cultura das tribos nativo-americanas.
Fawn Wood: a Voz Eleita do Gathering of the Nations
Entra em cena Fawn Wood. No centro da arena e das atenções, esta cantora famosa entre os indígenas entoa um tema que os presentes parecem conhecer. Fá-los vibrar alternando com a sua voz estridente e poderosa sons guturais muito apreciados e letras em inglês que falam de ciúme, de amor e de entes queridos mas já partidos.
No intervalo das canções, o MC volta a intervir: “não se esqueçam que temos os CDs da Fawn para venda. Aqui a Dallas, não para de me pedir que repita o aviso!”
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Participante indígena do Gathering of the Nations prepara-se para entrar no recinto do The Pit de Albuquerque, Novo México.
Fawn passa para outro tema. A meio, dois espectadores aproximam-se dela e deixam dinheiro a seus pés. Em pouco tempo, centenas de outros fazem o mesmo e expande-se a mancha de dólares que completará o seu cachê.
O último dia do Gathering of The Nations aproxima-se do fim mas as bancas no exterior do The Pit não desarmam. Ao jeito americanizado de fazer as coisas, enquanto o encontro se prolongar the profit must go on.
Abandonamos o recinto a pensar por quanto tempo mais conseguirão os nativos norte americanos evitar a falência total das suas culturas.