Por alguma razão se tornou a cidade motora da Noruega, a capital do petróleo e do gás natural, uma das urbes que mais energia empresarial transmitem à nação norueguesa.
Organização e funcionalidade não faltam a Stavanger. A começar pela incrível localização e conveniência do porto Vagen da cidade. Caminhamos uns dois ou três minutos ao longo do Byparken.
Passada a estátua do escritor e edil Alexander Kielland, damos entrada na rua marginal de Strandkaien. Uns metros abaixo, encontramos o “M/S Rygertroll”, o catamarã em que íamos embarcar.
Só por si, subir ao convés superior do navio e contemplar o velho Vagen em redor era já uma experiência histórica recompensadora. O baptismo do catamarã só a enriquecia.
Evocava um um demónio sobrenatural, um troll da tribo Ryger, uma das que dominaram estas paragens ocidentais da Noruega séculos a fio, em disputa com a rival Horder.
Em jeito de homenagem à estas suas origens étnicas, a província de que Stavanger é capital denomina-se Rogaland, nome também ele derivado da tribo Ryger.
O “M/S Rygertroll” estava prestes a conceder-nos uma incursão deslumbrante às profundezas do seu território.
Rumo ao Longo e Profundo Fiorde Lyse
Zarpamos. O catamarã contorna a península por que se espraia Stavanger. Navegamos ao largo do famoso museu do Petróleo e avançamos para leste.
Um dos primeiros salpicos de terra que encontramos volta a remeter-nos para a era medieval de Rogaland.
Diz-se que Tingholmen foi a ilha em que Olav Tryggvason, Olavo I (995-1000), o primeiro rei cristão da Noruega e agente incansável de conversões à força dos noruegueses, realizou a primeira assembleia nacional, em 998.
Olav terá tido as suas razões para o lugar mas, quando contemplamos a ilha, diminuta, em boa parte rochosa, hoje urbanizada apenas e só por um farolim branco, a escolha intriga-nos.
Pouco tempo depois, passamos sob a ponte pênsil Bybru, para o lado de lá do estreito Straumstein e para uma vastidão interior do Mar do Norte ainda pejada de ilhas e ilhéus.
Oanes surge na ponta de uma outra península em forma de subcontinente indiano. Por essa altura, o “M/S Rygertroll” flecte para norte. Com Oanes à esquerda e Forsand à direita, cruzamos a lysefjordsenteret, a entrada oficial para os longos 42km de extensão do Lysefyord.
Lyse significa luz, ou brilho. Terá sido o granito claro e reflector do desfiladeiro que suscitou que os noruegueses assim o tratassem.
Em Junho, o mês em que estávamos, a meteorologia de Rogaland fazia o que podia. Longe de invernoso, desde a partida de Stavanger que o dia se mantinha nublado e fresco. Naquelas condições, seria difícil ao fiorde de Lyse resplandecer à altura.
Escala em Fatahla, a Gruta dos Vagabundos, e num Pasto Íngreme de Cabras
O “M/S Rygertroll” progride fiorde acima, agora mais próximo das falésias a bombordo, algumas com mais de seiscentos metros de altura.
Fiel à sua rota, o comandante detém o catamarã em frente a Fantahla, a Gruta dos Vagabundos.
Na prática, um desfiladeiro apertado, perpendicular aos penhascos do fiorde de Lyse, repleto de fragmentos de rocha produzidos pela erosão glacial e por árvores jovens que parecem brotar literalmente do granito.
Menos de dez minutos depois, atingimos um recorte na falésia distinto.
Em vez de vertical ou côncavo como até então, o Lysefiorde concedeu um pequeno parapeito ervado e inclinado que serve de pasto a cabras.
Longe de selvagens mas qualificadas a sobreviver no curral natural dos penhascos, as cabras são alegadamente ali soltas pelos donos durante os meses de Verão, de maneira a engordarem com a erva viçosa que se renova de hora para hora, com a humidade, a chuva e a irrigação adicional que cai do topo da falésia.
Fazem companhia à outra espécie que prolifera no fiorde, as focas (phoca vitulina), em redor de duzentas, segundo as últimas contagens.
Com o tempo, as ofertas de petiscos feitas pela tripulação e passageiros dos barcos tornaram as cabras uma atracção faunística inusitada.
A Vista Inaugural e Muito Picada da Rocha do Púlpito
Prosseguimos quase colados à base dos penhascos.
Às tantas, detectamos uma plataforma rochosa destacada do cimo do fiorde, uma espécie de fatia de granito, talhada de forma caprichosa da meseta pelas forças tectónicas e pelos milénios de erosão.
A locução informa-nos que era aquela a Preikestolen, a Famosa Rocha do Púlpito.
A confirmação gera um frenesim fotográfico que quase suplanta o suscitado pelas cabras.
Umas centenas de metros adiante, o fiorde de Lyse revela-nos as suas cascatas de Hengjane.
Precipitam-se num fluxo quase vertical de quatrocentos metros do rio Hengjanda, a encerrar o seu fluxo entre o lago Skogavatnet acima e o fiorde que navegávamos.
Ali mesmo, o “M/S Rygertroll” inverte rumo, de volta à entrada do fiorde e a Forsand, na margem oposta da ponta de Oanes. Em Foresand apanhamos o autocarro que nos leva estrada 13 acima.
Depois, pelo caminho de Preikestolen, às curvas, acima e abaixo até atingirmos o campo base da Rocha do Púlpito, às margens do lago Revsvatnet.
Sem razões para ali desperdiçarmos tempo, ansiosos por desvendarmos o que nos reservava o púlpito, pomo-nos de imediato em marcha.
Caminhada para as Alturas do Fiorde Lyse, em Busca da Rocha do Púlpito
Separavam-nos quase 4km do cimo do fiorde.
Cumprimos os primeiros por uma encosta preenchida por um pinhal de troncos e raízes vigorosas, intercalado por clareiras semi-alagadas, transitáveis por um passadiço de tábuas imposto à vegetação.
Os últimos quilómetros, vencemo-los por um trilho reclamado a uma colónia caótica de calhaus de granito, por uma via natural da mesma rocha, elevada face a um lago negro.
Esta via legada pela erosão, conduz-nos às traseiras do ponto limiar e mais elevado do fiorde.
Quando a contornamos, ainda em ascensão, identificamos de imediato a vastidão do fiorde de Lyse.
Víamo-lo estendido para nordeste e para sudoeste. Sulcado por rio desafogado e liso, encaixado entre vertentes forradas de vegetação.
De pequenas árvores e arbustos de um verde intenso que não chegava a quebrar o azulado predominante das montanhas de Ryfylke.
Várias delas tinham cumes acima dos oitocentos metros. Naquela altura veraneante do ano, os cumes não revelavam sinal de neve.
Chegada à Rocha do Púlpito de Preikestolen
Por fim, a recortar a vastidão norueguesa e as nuvens acima, lá estava o paredão massivo da Rocha do Púlpito.
Em época alta, concorrida e idolatrada como se de um culto se tratasse, a Rocha do Púlpito tem já ao seu longo uma fila de crentes que esperam a sua vez para se fotografarem na extremidade vertiginosa, a desafiarem o bom-senso e a brincarem com a sorte.
Alguns dos seus fiéis, perdem a noção do que é justo. Demoram-se uma eternidade em fotos e mais fotos e levam ao desespero os pretendentes atrás.
Outros ainda, entregam-se aos atrevimentos fotográficos mais extremos. Em vez de se fotografarem a uns metros da queda, passam as pernas para lá do limiar.
Sentam-se entregues aos desígnios divinos naquele assento granítico de 25 por 25 metros, com uma altura de seiscentos e quatro metros, mais que severa, que não tolera a mínima displicência.
À boa maneira norueguesa, escandinava e nórdica, as autoridades deram primazia à preservação do visual natural do lugar, em detrimento da segurança dos cerca de 200.000 visitantes que ali peregrinam ano após ano.
Excepção feita a um ou dois diminutos avisos.
A Política de “Seja o que Deus Quiser” Seguida pelos Noruegueses
Os noruegueses, em particular seguem uma política de respeito pelo meio-ambiente e responsabilização individual que se tornou notória, segundo um responsável do governo resumiu: “nós não podemos colocar vedações em toda a Natureza deste país.”
Como tal, não existem vedações. Contemplar o abismo do fiorde de Lyse por diante revelava-se já de si, confrangedor.
A espaços, acompanhar as fotos, selfies e diabruras afins na extremidade da rocha e recear que uma delas descambasse num mergulho de mais de dez segundos torna-se pungente.
Para mais, não são só os fotografados que arriscam. Aquele que é considerado um ponto ideal para conseguir a imagem das pessoas ínfimas, sobre a ponta da rocha, destacada contra o céu consegue-se na perfeição de uma laje de pedra destacada uns 40 ou 50 cm da face do penhasco.
Quando as loucuras se sintonizam a condizer, tanto quem fotografa como os modelos arrisca.
A Rocha do Púlpito – nem se esperaria outra coisa – já fez por várias vezes de fúnebre. A confiar nas autoridades, ainda estão por acontecer acidentes. O problema tem-se revelado sobretudo os suicídios. Já ali se deram alguns. Esperamos a nossa vez. Na fila das fotos, claro está, a distância segura do precipício.
Enquanto aguardamos, assistimos aos novos exercícios ora masoquistas ora exibicionistas dos visitantes.
Por fim, lá fazemos as nossas fotos sob a pressão dupla do lugar destacado do púlpito: a pressão do quanto nos conseguiríamos aproximar do abismo. E a das dezenas de candidatos ainda alinhados, a contemplarem-nos como se só nós existíssemos.
Despachamo-nos. Não corre mal. O suficiente para voltarmos à nossa vida.
Mudança Providencial para o Plano Acima, mais Panorâmico, na Encosta
No hiato que tínhamos passado em contemplação e à espera, reparámos em vultos que percorriam a montanha acima do púlpito e noutros que apreciavam os acontecimentos sobre a rocha a partir de nichos panorâmicos.
Ainda com tempo para estendermos a exploração a que nos dedicávamos, procuramos o trilho que lá conduzia. Aos poucos, examinamos distintas perspectivas do púlpito que os altos e baixos, níveis e desníveis da encosta nos revelavam. Percebemos que tínhamos subido demais.
Voltamos a descer.
Até que damos com a crista da falésia diagonal sobranceira ao púlpito, o bloco mais vasto de granito de que se destacava a famosa formação.
Dali, contemplamos o encaixe ideal da superfície quadrada no caudal do fiorde, prolongado até perder de vista. Não fossem as nuvens, quem sabe se não lhe veríamos até o término.
Instalamo-nos, respiramos fundo. Apreciamos a estranheza religiosa da vida sobre o bloco de granito que todos aqueles crentes continuavam a louvar.
Sessão Fotográfica sobre um Púlpito Abismal
Surgem uns noivos, de vestido branco e fato da cerimónia, mas em modo de sessão fotográfica.
Pouco depois de chegar a sua vez na fila e de se posicionarem, o sol afasta as nuvens, à laia de bênção divina e, como um foco sobrenatural, incide quase só do púlpito para cá e nos noivos que sobre o rochedo se destacavam.
Voltamos a fotografar tudo o que dali tínhamos já fotografado, entusiasmados e agraciados pela dádiva de luz com que já não contávamos.
O milagre durou o que durou.
Mal as nuvens recuperaram a sua sombra, inaugurámos o longo regresso pedestre, rodoviário e hidroviário a Stavanger.