O calor estival e mediterrânico é o mesmo dentro e fora das muralhas.
No interior aprimorado e fortificado de Mdina, uma exposição improvisada e mal-amanhada de aparelhos e soluções refrigeradoras como a que encontramos na rua Wirja Ta’ Vari seria de todo impossível.
Ao contrário da cidade-mãe, a vizinha não sente a pressão de figurar na lista provisória da UNESCO, de ansiar juntar-se aos outros três lugares de Malta declarados Património da Humanidade.
Na sua assumida subserviência, Rabat satisfaz os moradores o melhor que pode.
Em altura de braseiro, é bem-vinda uma camioneta de caixa aberta que expõe aos transeuntes, ventoinhas eléctricas, termos, geleiras e afins, todos eles itens providenciais.
À boa maneira do sul da Europa, os reformados da cidade têm mais que fazer que passar tardes em casa.
Quando entramos no King George V Cafe, sob as arcadas que confrontam a Basílica de São Paulo, encontramo-los em animada cavaqueira, aqui e ali, exaltados com a sorte das cartas.
Naquele refúgio sombrio, entre paredes anciãs e espessas, o calor mal entra. Se chegar a entrar, disfarçam-no o convívio, as cervejas geladas e a distracção dos turistas esfomeados e sedentos, alvos fáceis das manhas que os empregados lhes reservam.
Para dentro do Portão Vilhena, nas ruas de Mdina, só circulam calhambeques a serviço de casamentos elegantes e o ocasional veículo essencial às manutenções.
Rabat, por sua vez, está à mercê da frota de carros envelhecidos que deambula pela ilha.
E, em particular, dos muitos pseudo-protótipos tuning que os jovens malteses exibem e conduzem de forma selvática, mesmo se partilham o labirinto de triqs (ruas) da cidade com charretes, bicicletas e outros veículos ainda mais lentos.
Numa dessas triqs, Joseph Cappara anuncia a sua ferraria com um letreiro de fonte excêntrica que o promove ainda como fornecedor de tintas britânicas. Em casa de ferreiro, é frequente o espeto de pau.
Com um cartaz complementar, anunciante do protector de metais Hammerite, o logotipo sob um cimo de armadura e elmo, Cappara desfaz quaisquer dúvidas.
E remete-nos para a era de ouro de Malta, entre 1530 e 1798, quando os Cavaleiros Hospitalários a governavam e a desenvolviam como ilha-satélite do Reino da Sicília.
A Cisão Secular entre Mdina e Rabat
Foi Girolamo Cassar, um engenheiro militar dos Hospitalários quem, ao decretar uma redução substancial da Mdina amuralhada, causou a cisão definitiva dos espaços de Mdina e de Rabat.
No meio do Mediterrâneo, há muito que Malta era cobiçada.
Os Árabes, os Otomanos e outros viam-na como um troféu cristão alternativo à Terra Santa. Sem surpresa, o lugar mais a salvo destes arqui-inimigos era o meio da ilha.
À falta de espaço dentro das muralhas de Mdina, as ordens religiosas aliadas dos Hospitalários instalaram-se e aos seus templos nas imediações da fortaleza.
Assim o fizeram Franciscanos, Dominicanos e Agustinianos.
Decorridos quatro séculos, protegidas a condizer, estas ordens resistem. Proliferam nos seus mosteiros e conventos.
São os garantes espirituais dos há muito fiéis malteses, os remissores dos seus copiosos e sortidos pecados, desde a obsessão pelo tuning, aos golpes caça-Euros perpetrados pelos cafés, restaurantes e bares sobre os turistas incautos.
Esquina atrás de esquina, Rabat revela-nos bem mais que apenas o seu corriqueiro dia-a-dia.
Desvenda-nos, por exemplo, a arquitectura simples mas deslumbrante do Palazzo Xara, além de restaurante, um Band Club com pergaminhos.
A Domvs Romana, um Legado Prodigioso da velha Melite
Um dos patrimónios incontornáveis da cidade, a Domvs Romana local, surge sobre a fronteira entre Mdina e Rabat. Faz-nos recuar para tempos ainda mais longínquos em que a cidade não era nem uma nem a outra.
Por volta do século I a.C., Malta integrava o já vasto Império Romano. Durante parte significativa dos mais de quinhentos anos que dominou a Europa, o Norte de África e a Ásia Menor, Roma fez bom uso da pequena ilha abaixo da Península Itálica.
À medida que o Império se expandia, destacava aristocratas incumbidos de administrar e desenvolver Melite, a antiga capital.
Os edis instalavam-se em mansões faustosas, dispostas em redor de pátios acolunados, as suas divisões decoradas com mosaicos policromáticos de estilo helénico condizente.
Quem, como nós, a visita, descobre, na Domvs Romana uma sobrevivente prodigiosa.
Do passar dos séculos.
E da conversão em cemitério a que o Califado Fatimida a submeteu no século XI, quando a enterrou sob, pelo menos, duzentos e quarenta e cinco sepulturas de súbditos árabes.
Assim permanecia, quando, em 1881, trabalhadores paisagistas se inteiraram da inusitada sobreposição, logo confirmada por uma equipa de arqueólogos.
A Domvs Romana destaca-se, como uma das mais antigas atracções, em tempos subterrânea, de Rabat.
Longe de ser a única.
A Gruta e as Catacumbas de São Paulo: Incursão à Profundezas da História de Rabat
Percorridos meros 650m pelas Triqs San Pawl e Sant Agata, damos entrada nas denominadas Catacumbas de São Paulo.
Estas galerias, retalhadas até mais não e douradas pela iluminação artificial, fizeram de cemitério tanto dos Fenícios como dos Romanos que, por questões de higiene, proibiam as sepulturas no espaço urbano de Melite.
Estiveram em uso até, pelo menos, ao século VII.
E, de novo, durante a reconversão da ilha ao Cristianismo do século XIII.
Malgrado o mito de que com ela estavam ligadas, as Catacumbas de São Paulo não devem ser confundidas com a gruta homónima, acessível pela igreja de Saint Publius, um templo à direita da nave da Basílica de São Paulo.
Do Naufrágio na Costa de Malta á Santificação do Apóstolo São Paulo
Uma corrente da História defende que os Romanos conduziam o apóstolo Paulo a Roma para ser julgado como rebelde político quando uma tormenta fulminante fez o navio em que seguia naufragar.
Paulo e os restantes passageiros a bordo teriam conseguido nadar até Malta. Outra narrativa mais rica, acrescenta ainda que, durante a estada forçada,
Paulo refugiou-se nesta mesma gruta, hoje sob a basílica. Chegado o Inverno, terá sido convidado por Publius, o líder romano da ilha, para a sua casa.
Nesses dias, Paulo curou uma febre intensa que afligiu o romano. Reconhecido, Publius converteu-se ao Cristianismo e viu-se consagrado o primeiro Bispo de Malta.
Também Paulo foi santificado. Continua a ser reverenciado na ilha.
Um século depois da edificação da igreja (1653-83), o 68º Grão-Mestre dos Hospitalários (1741-73), Manuel Pinto da Fonseca, originário de Lamego, doou uma estátua do santo que permanece na gruta refúgio do apóstolo.
A gruta e a basílica de São Paulo, por sua vez, receberam já três visitas papais.
De João Paulo II, em 1990 e em 2001, e do Papa Bento XVI, em 2010.
Ao fim da tarde, apreciamos como a fachada barroca da basílica rechaça a sombra que se apodera da esplanada do King George V Cafe e da praça que a separa do domínio religioso.
Santa Marija Tal-Virtù: a Capela Demonizada de Malta
Pelas piores razões, outro templo de Rabat abanou as fundações católicas da cidade e de Malta. A capela Santa Marija Tal-Virtù deixou de ter uso após o termo da 2ª Guerra Mundial. Anos depois, um investidor alemão comprou o edifício e o terreno em volta.
Durante um bom tempo, ignorou-os.
Consciente do seu abandono, de como era remota, uma seita de satanistas fez da capela um lugar de culto. Impregnou-a de crucifixos invertidos, esculpidos e preenchidos com alcatrão, nas paredes, no piso e até sobre o velho altar.
O proprietário alemão falece. Pouco depois, um empreiteiro maltês assume a recuperação do edifício. Quando começa o trabalho, além da recente obra satânica, expõe uma cripta com mais de 2000 anos, com escritos, entretanto, identificados Romanos.
Rabat é feita destas aventuras e desventuras da história, tantas delas subtérreas, concentradas nuns poucos km2 e que continuariam a ter lugar, até num texto mais longo.
Museu Wignacourt: exposição de Arte Histórica sobre Abrigos Antiaéreos
Retomemos o tema da 2ª Guerra Mundial, regressemos às imediações da Basílica de São Paulo.
Por ali, basta atravessarmos uma outra triq, a Kullegg, para chegarmos ao famoso Museu Wignacourt, três andares repletos de obras de arte de criadores malteses e estrangeiros, de artefactos Púnico-Romanos.
Lá damos também com aquele que é o seu espaço vedeta, a Sala do Tesoureiro dos Capelães dos Cavaleiros Hospitalários, incluindo os do 54º Grão-Mestre da Ordem, o francês Alof de Wignacourt que deu o nome ao museu.
Se, à superfície, o Museu Wignacourt é tudo isto, debaixo da terra, assenta num hipogeu ligado às restantes catacumbas e sobre abrigos antiaéreos em que a população de Rabat, Mdina e de outras partes de Malta se abrigou dos bombardeamentos do Eixo.
Da Recuperação da 2ª Guerra Mundial a Cenário de Filmes da Guerra Fria
Os Nazis e os fascistas italianos procuravam evitar que os Aliados abastecessem as tropas britânicas estacionadas no Egipto e, ao mesmo tempo, que quebrassem a sua ligação às forças que mantinham na Líbia.
Malta demorou a recuperar das atrocidades. Mdina e Rabat sofreram danos parcos, se comparados com os causados pelos mais de três mil raides e seis mil e setecentas toneladas de bombas largadas pela Luftwaffe e pela Regia Aeronáutica sobre o Porto de Valletta.
Desde o encerrar da última grande guerra que Rabat vive na paz de Deus, patrocinada pelas várias igrejas. Entre as comoções lá dignas de registo, contam-se apenas algumas filmagens.
As de “Munique”, de Steven Spielberg, as de “Águia Negra”, protagonizado por Jean-Claude Van Damme, em plena Guerra Fria.
E as sucessivas invasões turísticas com que Malta há muito aprendeu a viver.