Andamos a explorar o Norte, entre o Fortim do Faial e o Miradouro do Guindaste quando o apelo das terras altas e florestadas nos volta a sequestrar.
Regressamos à estrada da Praia do Faial.
Galgamos os seus incontáveis meandros, aqui e ali, por cristas que nos concedem visões dramáticas do que deixávamos para trás. Antes destacado acima do oceano, contra o céu, o morro da Penha d’Águia alisa-se e some-se na orografia intrincada da ilha.
Pouco depois de passarmos o Chão de Cedro Gordo, enfiamo-nos num manto de neblina densa que paira sobre o relevo a leste e, ora o afaga, ora o cobre por completo e transforma em vultos vegetais fantasmagóricos de pinheirinhos que sobressaem de morros.
Ribeiro Frio: nas Alturas Verdantes da ilha Madeira
Como sempre acontece na Madeira, a névoa mantém-se localizada.
Quando chegamos aos mais de 860 metros de altura do casario que anuncia Ribeiro Frio e ao snack-bar “Faísca” que serve o lugarejo, já só vislumbramos lampejos distantes da “lebrina”, assim a chamam, com frequência, os madeirenses.
Uma chuva fulminante tinha voltado a encharcar a povoação e a irrigar o Parque Florestal homónimo que a envolve.
Detemo-nos no bar, resolvidos a nos reaquecermos das sucessivas escalas fotográficas, batidas pelo vento húmido, algo frígido de nordeste.
Bebemos chocolates quentes. Recuperados, percorremos o asfalto da ER103 que faltava para o núcleo turístico e piscícola de Ribeiro Frio.
A floresta quase tropical volta a cerrar-se.
Cerca-nos de um tapete de fetos viçosos, a maior parte, rasteiros e de uns poucos exemplares arbóreos que parecem rivalizar com os folhados e tís em redor.
Escutamos o fluir ecoante de um qualquer curso d’água. Mais acima, damos com um sortido de tanques gradeados de pedra de distintas formas, treze deles, para sermos mais precisos.
Quando os vemos repletos de peixes escuros e sarapintados, confirmamos que estamos no Posto Aquícola de Ribeiro Frio.
E no lugar certo.
Os Viveiros de Trutas arco-íris de Ribeiro Frio
Ao longo dos séculos, os colonos engenhosos da ilha da Madeira dotaram-na de uma enorme rede de levadas que conduz a água dos riachos aonde faz falta.
Há muito que as trutas arco-íris percorrem esses riachos e até mesmo os canais mais apertados das levadas.
Por motivos naturais e outros que se prendem com a complexa divisão e manipulação dos riachos e da água, o número de trutas sempre oscilou.
Ora, desde 1960, que Ribeiro Frio e as suas gentes têm a missão possível de gerarem novos espécimes, dos ovos aos alevins e aos peixes já resistentes.
Uma vez criados, libertam-nos nos cursos d’água, de maneira a viabilizar a pesca no interior da ilha e fomentar o consumo saudável desta espécie fluvial.
Sem chegarem sequer à pesca e sem surpresa, os restaurantes da povoação mantêm a truta como um dos principais pratos dos seus menus. Os moradores, consomem-nas amiúde.
Uma capela próxima, erguida em honra de Nª Srª de Fátima abençoa-os e aos visitantes, num branco envelhecido e que tem, à porta, azulejos evocativos da Virgem Maria e de Jesus enquanto “Cordeiro de Deus”.
Ribeiro Frio: um Parque Florestal Pejado de Laurissilva
Trutas, restaurantes e templos à parte, em termos de Criação de natureza, Deus fez um trabalho imaculado, também nestas partes recônditas da Ilha Jardim.
Ribeiro Frio está o cerne de uma imensidão com todos os atributos naturais que lhe conferem o título de genuinamente madeirense.
Há uma boa razão para o parque circundante ter sido titulado de florestal. Preenche-o uma mancha densa e generosa da floresta original da Madeira, aquela que os colonos encontraram e, aos poucos, tiveram que desbravar.
O Ribeiro Frio, suas corgas tributárias e as nuvens do norte, renovam uma flora com nomes peculiares que se preserva, em boa parte, endémica.
Compõem-na os tis e folhados de que já falámos, incontáveis loureiros, vinháticos-das-ilhas, uveiras-da-serra, urzes-das-vassouras e urzes-molares.
E ainda, arbustos e outras plantas floridas, casos do isoplexis, das estreleiras, orquídeas da serra e dos massarocos, a nosso ver, mas sujeito a debate, a espécie de planta mais excêntrica da ilha.
Esta amálgama vegetal deslumbrante forma ou integra o ecossistema da Laurissilva, exclusivo da Madeira – de que ocupa cerca de 20% do território – e de outras ilhas da Macaronésia, dos Açores, das Canárias e, de bolsas inesperadas e diminutas do litoral africano da Mauritânia.
A Levadas e Veredas Deslumbrantes que passam por Ribeiro Frio
Sulcam tal floresta prodigiosa, veredas e levadas, para conveniência das gentes rurais da Madeira, com frequência (senão quase sempre) umas emparelhadas com as outras.
Com esse e outros perfis, partem de Ribeiro Frio alguns dos itinerários pedestres imperdíveis da ilha, por exemplo, o PR-10 da Levada do Furado que serpenteia até à Portela e recompensa quem o completa com vistas gloriosas da Penha d’Águia.
Satisfeitos com a deambulação entre os viveiros e pela aldeia, entregamo-nos ao PR 11, bem mais curto e simples que o predecessor.
Para tal, abandonamos de vez o alcatrão da ER 103. Enfiamo-nos na floresta.
Seguimos as curvas e contracurvas da Levada da Serra do Faial.
Servem-nos de tecto as copas frondosas de carvalhos e de plátanos. Malgrado o estio, largam folhas que amarelam em matizes e adornam o solo castanho-fértil da vereda.
De tempo em tempo, a cobertura densa da vegetação dá de si. Concede-nos vislumbres dos cenários que não tardaríamos a apreciar com olhos de ver.
Quarenta minutos de caminhada depois, na companhia de tentilhões, melros, papinhos e até de bisbis, esbarramos com uma placa amarela, à sombra, e que versa “Balcões”.
Os Panoramas Inverosímeis no Término da Vereda dos Balcões
Contornamos a rocha hiperbólica a que o sinal quase se encosta.
Do lado de lá, desvendamos a desembocadura da também chamada de Vereda dos Balcões e as estruturas panorâmicas que lhe dão azo ao nome.
Uma enorme plataforma de observação gradeada, estende-se para além da laje.
Aventura-se na direcção do vale abissal, como que a insinuar a quem chega, a urgência de se debruçar sobre a vedação e de se deixar maravilhar pelo monumento geológico em volta.
É o que fazemos.
Virados para ocidente da Madeira, deslumbramo-nos com a serrilha afiada entre o Pico do Arieiro (1817m) e o Pico Ruivo, com, 1861 metros, o zénite da Madeira e a terceira elevação de Portugal.
Abaixo, estendido para norte, até se fundir com o Atlântico, desfaz-se o vale profundo e ziguezagueante da Ribeira da Metade.
Vêmo-lo forrado de laurissilva.
Desde a linha de seixos alvos porque passa, até aos cimos pontiagudos dos montes.
A névoa que nos tinha sombreado boa parte da ascensão, volta a marcar presença, na forma de um manto compacto de humidade.
O trio cumeeiro Arieiro-Torres-Ruivo barra-o. Sujeita os vales a oriente a um efeito de estufa natural carregado de clorofila.
Daquele varandim desafogado, a contemplação gera-nos mais e mais respeito.
Lembrados de que estávamos no extremo sem saída da Levada dos Balcões, decidimo-nos a activar o plural do nome e a melhorar a contemplação.
Uns caprichos da rocha que antes tínhamos contornado, serviam de degraus para um segundo balcão improvisado no seu cimo.
Ribeira da Metade Abaixo, até à Penha d’Águia e ao Atlântico
Desse topo, em equilíbrio, voltamos a seguir os contornos da Ribeira da Metade.
Até ao casario ainda iluminado de São Roque, ao outeiro frondoso que quase o oculta, e à silhueta distante da Penha d’Águia, comprimida entre o cinzento celeste e o azulado do mar.
Enquanto estudamos a vastidão, as aves selvagens da Madeira esvoaçam, para cá e para lá.
Pombos-torcazes, a velocidade impressionante. E mais bisbis, em redor, sempre atentos a quando os visitantes desamparam os Balcões e os deixam com as dádivas de pão e outros preciosos petiscos. É o que entretanto fazemos.
Invertemos caminho. Interrompemos o regresso a Ribeiro Frio no snack-bar e loja de artesanato “Flor da Selva” que, encontramos solitário, na beira da vereda.
Tagarelamos com a senhora que nos serve um lanche providencial, satisfeitos por contribuirmos para aliviar a escassez de clientes provocada pela pandemia.
E o Regresso Tardio ao Funchal
Após o que retornamos ao carro e à estrada, desta feita, apontados à costa sul e ao Funchal.
Nesse derradeiro trajecto, passamos por Chão da Lagoa, pela porta da herdade em que o PSD Madeira se habituou a realizar as suas festas.
A mesma caravana de nuvens que tínhamos admirado dos Balcões, fluía, logo ali abaixo, contra o sol que se precipitava sobre o horizonte ocidental.
Tal como a ascensão a partir da costa norte, também a descida para o Funchal se provou uma jornada de beleza estonteante, dentro e fora das nuvens, contra silhuetas misteriosas da vegetação, por um ziguezagueado íngreme digno do Rali da Madeira.
Refreados por tanta curva e distracção, é já com o anfiteatro luminoso da cidade a exibir-se ao lusco-fusco que nos abrigamos no Funchal.