Cactos. Cactos e mais cactos.
Poucos lugares na Terra terão maior concentração destas plantas perfurantes que a ilha de Bonaire. Tínhamos passado toda a manhã por eles cercados, ao longo da costa oeste.
E, logo, à descoberta do Parque Nacional Washington Slagbaai, surpreendidos por uma das poucas manhãs cinzentas e chuvosas que estas partes sul e mais secas das Caraíbas terão testemunhado.
Deixamos o parque, já pelo seu lado oriental, para uma estrada asfaltada registada como Kaya G.R.E. Herrera. Entre cactos, essa via contorce-se na direcção do meio da ilha.
O Vislumbre da Rincon Amarelada a Salpicar a Vegetação
Uns poucos quilómetros depois, já do cimo de uma outra Kaya, a Para Mira, damos com o casario amarelado de Rincon.
Vemo-lo concentrado mais próximo do sopé de um grande paredão de arriba, de topo liso, com forro espinhoso, claro está.
Dele se destaca uma igreja de frontão triangulado e uma torre com visual de foguetão.
Já na iminência das primeiras casas, uma leva de postes de electricidade viabiliza o uso dos electrodomésticos que facilitaram a vida dos moradores, pelo menos, assim terá sido suposto.
Daquela distância, subsumida no verde da vegetação, o casario parece-nos mais de um lugarejo perdido no nada que de uma cidade.
Fosse como fosse, estávamos perante a segunda urbe de Bonaire, perante a “outra” da capital Kralendijk. Quando nos aproximamos, constatamos que tinha bastante mais vida do que dali aparentava.
Rincon permanece no lugar exacto que os colonos espanhóis lhe destinaram há mais de meio milénio.
A Chegada e Colonização de Rincon, pelos Espanhóis
Apenas um ano antes da viragem para o século XVI, um trio formado por Alonso de Ojeda, por Juán de La Cosa e pelo florentino – pouco depois, nacionalizado castelhano, Américo Vespúcio que teve a honra de dar o nome ao Novo Mundo – encontraram a ilha que agora explorávamos, nos fundos das Caraíbas.
Reclamaram-na para Espanha enquanto Ilha do Pau Brasil, devido à abundância dessa madeira. O assentamento do novo território deu-se uns poucos anos depois.
Com a rota para aquelas partes do mundo recém-desvendada, os piratas britânicos, franceses e de outras nações não tardaram a por ali assentar arraiais.
Preocupados com a sua vulnerabilidade, os espanhóis decidiram povoá-la num vale blindado pelos cactos, afundado e, como tal, escondido dos monóculos dos piratas.
Por essa altura, à imagem de outras Antilhas, habitavam já essa Ilha de Brasil (e o tal vale) os índios caquetios, de etnia aruaque.
Tratavam-na por Bojnay (terras baixas), termo que se crê estar na génese de Bonaire.
Os espanhóis descreveram os indígenas como criaturas pré-históricas, moradores de cabanas de barro. Em pouco tempo, escravizaram-nos.
Mudaram-nos para a ilha de Hispaniola, para as imediações da actual Santo Domingo.
Ali, desde há algum tempo, mantinham operacionais minas de prata, uma das matérias-primas que mais apreciavam subtrair às Américas para assim enriquecer a Coroa e o Império que não cessava de aumentar.
Juan de Ampies e o Projecto da Criação de Gado a partir de Rincon
Nessa ânsia de controlar o máximo possível do Mundo, a Coroa Espanhola apontou um comandante para as hoje conhecidas como ilhas ABC: Aruba, Bonaire e Curaçao.
A tarefa calhou a Juan de Ampies. Ocorreu a Ampies que a abrolhosa Bonaire poderia, pelo menos, servir de ilha criadora de gado, que poderia fornecer os territórios hispânicos vizinhos, sobretudo de couro.
O seu plano passou por recolonizar a ilha de uns poucos espanhóis e de bastantes mais escravos indígenas de lá recém-removidos para que estes se encarregassem da pastorícia e pecuária.
De acordo, além de fazer regressar alguns Caquetios, Juan de Ampies assegurou que fossem enviados da Metrópole, navios carregados de animais.
De cavalos, cabras, ovelhas, burros, porcos e vacas destinados a uma criação centrada em Rincon.
Cruzamo-nos com descendentes desses animais nas ruas da cidade e nos seus arredores. Com uma manada errante de cabras numa perpendicular de terra batida da Kaya Para Mira.
E com burros esquivos na beira-mar da costa leste de Bonaire.
A Miscelânea Genética Ainda Mais Complexa, em Bonaire
Os habitantes de Rincon, por sua vez, descendem desses espanhóis fundadores, dos índios caquetios que os serviram e, em quase todos os casos, de ambos. Mas não só. No entretanto, os holandeses e até alguns portugueses complicaram a base genética da ilha.
Deambulamos pelas ruas e ruelas centrais de Rincon, em redor da igreja Sint-Ludovicus Bertandus, a Parokia San Luis Beltran, no dialecto Papiamento.
Àquela hora em que o calor apertava, passamos por uns poucos transeuntes apressados para se enfiarem no fresco das suas casas ou dos seus cafés-tascas preferidos.
Destilaria Cadushi e os Licores Mais Famosos de Bonaire
À falta de interlocutores disponíveis, resolvemos visitar a sede da destilaria Cadushi, produtora de uma profusão de licores.
Todos incluem sabores do incontáveis cactos de Bonaire, os Aloé Vera e os chamados Kadushis, os maiores das três espécies da ilha que mais parecem árvores.
Provamos alguns sabores, investigamos um velho alambique e o jardim criativo da fazenda, à conversa com empregados jovens.
Logo, mudamos de ares.
A Fortaleza Cultural de Bonaire da Mangazina di Rei
Seguimos para o âmago da preservação histórica e cultural de Rincon e de Bonaire, a sua Mangazina di Rei.
Lá nos recebe Izain Mercera, habitante crioulo, claro está, senhor de uma pele dourada sob um chapéu de palha, sorriso suave e fácil. Falamos em espanhol, com tentativas esporádicas de uso de Papiamento que não estávamos preparados para prolongar.
Izain explica-nos a origem do edifício, considerado o segundo mais antigo de Bonaire e da espécie de granja que o envolve.
Como forma de ilustrar um trecho mais cultural da explanação, toca-nos excertos de temas populares da ilha, num jambé.
Com apoio de uns ferrinhos, de um búzio de sopro e de um outro estranho instrumento, uma caixa com uma espécie de patilhas de metal que os seus dedos faziam vibrar e soar.
O anfitrião mostra-nos a área museológica do complexo e a vista desafogada sobre o vale dos cactos em redor, uma vez mais, para surpresa de todos, irrigado por nova chuva intensa.
Explica-nos como, em 1990, a organização redundou numa Fundação incumbida de formar as novas gerações quanto à génese cultural de Bonaire, desde os confins culturais do seu povo, às suas tradições musicais e até técnicas de cultivo específicas de uma terra tão repleta de cactos.
Como o nome deixa antever, a Mangazina di Rei, foi um armazém com uso real.
Ditaram os meandros da história que, anos após o comando de Juan de Ampies, tivesse sido propriedade de um monarca holandês, em vez de um espanhol.
A Passagem de Bonaire e de Rincon para a Posse dos Holandeses
Na segunda década do século XVII, a Companhia Holandesa das Índias estava hiperactiva. Garantia que os Holandeses rivalizassem com os Espanhóis e os Portugueses.
Em simultâneo, os holandeses eram clientes regulares dos produtos e serviços das ilhas ABC, em particular de Bonaire, onde as embarcações ancoravam para se abastecerem de água, de madeira e da carne lá produzida.
Desde 1568 que os Holandeses travavam a Guerra dos 80 anos com os Espanhóis, de forma indirecta, também com os portugueses, na medida em que, sob a Dinastia Filipina, os territórios portugueses passaram a ser considerados espanhóis.
Ora, as Caraíbas e as suas Antilhas depressa se revelaram um palco tropical da guerra. Em 1633, os espanhóis capturaram Sint Maarten aos holandeses. Estes, retaliaram.
Capturaram Aruba, Bonaire e Curacao aos Espanhóis. Uma tal de Paz de Münster pôs fim à Guerra dos 80 anos. Deixou trocados territórios de ambos os lados.
As ABC ficaram dos holandeses que, só viriam a perder o seu controle, por breves anos, para os britânicos.
Depois, durante as Guerras Napoleónicas e, mais recente, na 2ª Guerra Mundial, para os alemães.
Esta prevalência holandesa justificou o tal armazém em que nos recebeu Izain Mercera, um depósito erguido no século XIX pelo governo holandês para armazenar as rações que alimentavam os escravos ao serviço da administração.
A Chegada de Mais Escravos e dos Judeus Sefarditas Refugiados, à Vizinha Curaçao
Durante a Guerra dos 80 Anos, os Holandeses chegaram a descarregar prisioneiros espanhóis e portugueses em Bonaire. A grande evolução na estrutura demográfica da ilha deu-se quando transformaram Curaçao no principal polo esclavagista das Antilhas.
Ao mesmo tempo, converteram Bonaire numa exportadora de pau-brasil, de milho e sobretudo do sal que continua a abundar no sul hoje quase anfíbio da ilha.
Para servir essas plantações e salinas, os holandeses forçaram ao trabalho escravos africanos e indígenas, lado a lado com prisioneiros.
A população de Rincon e de Bonaire miscigenou-se a dobrar, numa panóplia genética que vemos nos rostos e, em particular, nos olhos, cabelos e peles das gentes locais.
A Sobreposição Histórica do Dialecto Papiamento
Com o passar do tempo, a língua usada pelos escravos sobrepôs-se à hispânica e à holandesa. Os escravos provinham da Guiné Bissau, de Cabo Verde e do Golfo da Guiné – também de São Tomé e Príncipe. Chegavam às ilhas ABC a falarem crioulo guene.
Concretizada a expulsão dos judeus sefarditas da Ibéria, a partir do meio do século XVII, estes, acabaram por se refugiar em Curaçao. Lá reforçaram e aprimoraram a combinação do português puro com o predominante guene.
Como seria de esperar, este contágio dos termos portugueses e portugueses-crioulos chegou a todos os cantos das ABC.
Em pleno vigor a Rincon, o recanto mais antigo de Bonaire.