Descolamos do aeroporto Princess Juliana de Sint Maarten, tornado famoso por ter no início da sua pista a pequena praia de Maho, pela razia que os aviões lhe fazem e aos banhistas momentos antes de aterrarem.
E por se lá se ter popularizado a diversão de sofrer na pele o poder dos jactos dos maiores modelos Boeing e Airbus. A aeronave em que voávamos para Saba pouco tinha que ver com estas.
Saba é visível da Maho Beach. Como o são também Anguila, Saint Barthelemy, Saint Eustatius e Saint Kitts & Nevis, de boa parte da costa e cumes de Sint Maarten. Sem surpresa, um quarto de hora depois da partida, aterramos na pista do aeroporto Juancho E. Yrausquin, uma das mais curtas do mundo.
Transposta a imigração, recolhidas as malas, encontramo-nos com Dona, uma taxista de conveniência com origem em St. Thomas, nas Ilhas Virgens Americanas mas que se havia mudado há vinte anos e em definitivo para, Saba, a ilha da sua avó.
É no carro de Dona que fazemos a primeira viagem por Saba, como as seguintes, própria de uma montanha-russa.
Do Lado do Vento de Saba
Sempre aos esses, ascendemos a encosta íngreme de Zion’s Hill até à segunda povoação da ilha, Windward Side. Lá encontramos uma vila repleta de vivendas alvas, com vedações também elas brancas e telhados de zinco vermelhos de que pendem adornos vitorianos gingerbread trim e janelas dotadas de portadas verdes.
Não será alheio a esta harmonia arquitectónica e visual, um conjunto de leis em vigor, criadas para evitar disformidades e aberrações.
Saba até pode ser holandesa. É, aliás, a mais diminuta municipalidade holandesa. Já estas casas, tantas delas seculares, são produto da história intrincada da ilha.
A Joalharia Criativa de Mark Johnson
Dona leva-nos à presença de Mark Johnson, um dos filhos pródigos, abastados e criativos de Saba. Encontramo-lo na sala da sua The Jewel Cottage, um chalé com 150 anos adaptado a montra de joalharia de luxo em que Mark passa parte do tempo atrás do portátil a filtrar as encomendas e outras mensagens importantes na sua mailbox.
Além de designer e comerciante de joias, Mark é colecionador de arte e um sério viajante aficionado pela história e pela realidade dos lugares que tem o privilégio de conhecer, umas vezes em prospecção de novas gemas exóticas e de qualidade superior, ou em busca de quadros e esculturas e afins meritórios do seu investimento.
Seja qual for o lugar ou o tema de que falamos, Mark não só está a par como nos surpreende com reparos, análises, histórias e experiências umas mais preciosas que outras, todas elas a moldarem em nós um inevitável deslumbre.
Mark conduz-nos à Villa Compass, uma das vivendas tradicionais encantadoras na lista de imobiliário que detém em Saba. Mostra-nos a casa e dá-nos algum tempo para nos instalarmos. Logo após, saímos para almoçar.
Com os dias em Saba contados e a tarde a avançar, fazemo-lo meio à pressa. “Se estão mesmo com coragem, saiam já que ainda têm tempo. Fiquem é a saber que é puxado.”
Mark comentava a ascensão ao Mount Scenery (887m), o cume supremo da ilha e do Reino da Holanda. Estávamos conscientes que íamos sofrer. Habituados a estas penas, não nos deixamos demover pelo alerta do anfitrião.
À Conquista do Tecto de Saba. E da Holanda.
Encontramos o início do trilho bem sinalizado à beira da estrada, pouco abaixo do lar de Mark e do centro de Windward Side.
Aos poucos, ladeira a ladeira, degrau a degrau, vimos o caminho para o zénite holandês tornar-se mais íngreme e luxuriante, ladeado por colónias prolíficas de grandes fetos, alguns arbóreos, de palmeiras, bananeiras, orelhas-de-elefante e árvores ensopadas e atapetadas por bromélias, musgo e líquenes.
Quanto mais ascendíamos mais húmida e ventosa ficava a encosta, às tantas, batida por rajadas que arrastavam uma caravana interminável de nuvens vinda de sudeste.
Por fim, chegamos à zona plana do cume. O trilho subdivide-se na direcção de dois limiares distintos, ambos sobre falésias vertiginosas. Tanto um como o outro, ziguezagueiam por uma floresta densa de árvores e de vegetação rasteira.
Evitamos uma cobra negra. Prosseguimos rumo à orla sul daquele topo. Evitamos o precipício disfarçado pelas nuvens e subimos uma derradeira rampa rochosa que nos leva ao ponto de observação virado a Windward Side.
Mal nos seguramos a um mastro de comunicações de forma a evitarmos que as rajadas nos fizesse voar, identificamos a povoação lá em baixo, iluminada por uma luz solar esbatida que, de alguma forma, conseguira iludir a névoa esvoaçante.
À Mercê da Nebulosidade Sem Fim
Provou-se excepcional o momento. De então em diante, durante uma boa meia-hora, o máximo que conseguimos foi voltar a vislumbrar a vila em dois ou três lapsos entre nuvens.
Enquanto esperávamos, apercebemo-nos que tínhamos a companhia de um galo obstinado, calculávamos provindo das terras abaixo. Por algum tempo, manteve-se na base do rochedo, a observar-nos os movimentos mas, quando nos viu abrir duas barritas energéticas, escalou-o em três tempos e não desistiu enquanto não conseguiu a sua porção.
Convencidos de que aquela meteorologia caprichosa levaria a melhor, inaugurámos o regresso pungente a Windward Side.
Acolhimento Precioso na The Jewel Cottage
Nessa noite, doridos mas satisfeitos pela pequena conquista, jantamos com Mark Johnson e com Glenn Holm – responsável pela promoção do turismo de Saba – na The Jewel Cottage de Mark. Trocamos histórias de viagens e de aventuras. Diversas acerca das andanças e do mundo das gemas de Mark.
Várias outras sobre a génese de Saba e da vida dos seus cerca de dois mil habitantes, boa parte deles imigrantes dominicanos, venezuelanos e de outras partes que chegam atraídos pelos salários e condições recompensadores e acabam por se estabelecer e constituir ou trazer famílias.
A dimensão reduzida da ilha fez com que as famílias históricas sejam poucas, com meia-dúzia de apelidos predominantes, com destaque para Hassell e Johnson. A maior parte delas têm ancestrais mistos holandeses, ingleses, escoceses e africanos.
Algumas, partilham ainda genes de irlandeses exilados, em 1625, por Carlos I, quando o recém incumbido rei procurou sanar rebeliões que ele próprio gerou ao atribuir terras dos rebeldes a um grupo de nobres escoceses seus apoiantes.
A Volta de Montanha-Russa à Saba
Na manhã seguinte, cedo, saímos com Glenn Holm que nos conduz de Windward Side pela ilha fora. São tantos os altos e baixos, as colinas e os vales que, às tantas, parece-nos impossível Saba medir apenas os seus 13km2 oficiais.
Passamos por Saint Johns. Pouco depois desse relativo alto, avistamos The Bottom – corrupção inglesada do holandês antigo De Botte (a taça).
The Botte, ou melhor, The Bottom
Tal como deixa antever o nome actual, a capital de Saba surge num vale profundo, cercado por montanhas de todos os lados.
Glenn explica-nos com orgulho que lá se situa a Saba University School of Medicine, uma instituição reputada e que atrai centenas de estudantes dos Estados Unidos determinados a obter o seu M.D (Medicine Degree) num ambiente exótico mas que, sem vida noturna ou escapatórias congéneres, os mantém estimulados e focados.
Almoçamos em The Bottom. Logo após, Glenn desafia-nos a espreitarmos o interior da Sacred Heart church, erguida num já remoto ano de 1935. Abrimos a porta. Encontramos o templo deserto. Atraem-nos as cores garridas que envolvem o altar.
Percebemos em três tempos, porque razão os bem-dispostos habitantes da ilha a ela se referem como “A Capela Sistina de Saba”. A responsável é Helen Cornet, artista local que pintou aquele recanto da nave com incrível detalhe e, assim nos informa Glenn Holm, ilustrado com faces de seus determinados conterrâneos.
A Praia agora sem areia de Well’s Bay
De The Bottom, descemos nova ladeira íngreme na direcção de Well’s Bay. Falta agora à enseada arredondada o areal branco – ou até negro – apelativo característico de quase todas as ilhas caribenhas.
Como falta a Well’s Bay, faltam areais desses a Saba em geral que o mais parecido que tem é a praia de grandes seixos polidos e redondos que vemos por diante. Saba não desmerece por isso.
“Estão a ver aquelas boias coloridas a flutuar junto ao rochedo? Devem ser mergulhadores. Nós afirmámo-nos um dos melhores destinos de mergulho do mundo. Boa parte dos visitantes que recebemos vêm cá pela natureza e, em especial, pelo mergulho incrível que cá encontram.”
São característicos do Saba National Marine Park, grutas e túneis subaquáticos e pináculos submarinos vulcânicos com até 30 metros a partir do leito marinho, cobertos por recifes de coral saudáveis e exuberantes, por esponjas e outros invertebrados.
Neste tipo de ecossistema cada vez mais raro, os mergulhadores encontram com facilidade peixes-papagaio, barracudas, tubarões, raias, polvos, tartarugas e lagostas, entre muitas outras criaturas dos mares.
Durante um largo período da história de Saba, a Well’s Bay e outras em redor da ilha foram o habitat de outros espécimes bem mais temidos pelas potências coloniais.
A Lotaria Colonial Ganha pela Holanda
Saba era habitada por indígenas aruaques na altura em que se crê que Cristovão Colombo navegou ao largo da ilha, pouco entusiasmado por nela desembarcar devido ao litoral rugoso e rochoso. Só 140 anos mais tarde Saba viria a acolher visitantes europeus, um grupo de náufragos ingleses sem outra alternativa que lá tentar chegar.
Volvidos mais três anos, um francês à deriva nas Caraíbas reclamou Saba para o rei Luís XIII. Ignorando por completo essa pretensão, o governador holandês da ilha vizinha de Saint Eustatius – que planeamos visitar numa próxima incursão às Antilhas – destacou famílias holandesas para a ocuparem.
Passados outros vinte e quatro anos, Saba tinha já sido dominada por governadores jamaicanos apiratados, os temidos Edward, Thomas e Henry Morgan.
O reinado deste trio e a fama de Saba enquanto refúgio de piratas prolongou-se até que, em 1816, a Holanda a tomou de vez e, com recurso a escravos trazidos de África, lá desenvolveu produções de açúcar, índigo e rum.
A Municipalidade Mais Pequena da Holanda
Em tempos mais recentes, Saba chegou a integrar as Antilhas Holandesas mas, quando, em Outubro de 2010, este território autónomo foi dissolvido, Saba tornou-se uma municipalidade especial dentro da Holanda.
Foi dotada de um estatuto constitucional específico equiparado ao de Saint Eustatius e de Bonaire, um estatuto que permite aos habitantes destas ilhas votar para a eleição dos membros da Casa Holandesa dos Representantes.
Na manhã seguinte, bem cedo, subimos a bordo do “The Dawn”, a embarcação que assegura as ligações marinhas entre Saba e Sint Maarten. O mar das Caraíbas mantinha-se revolto e condenou-nos a uma hora e meia aos saltos acima e abaixo de vagas assustadoras. Nada de novo, naquelas remotas paragens.
Três dias depois de voarmos para Saba, regressamos a Sint Maarten, a metade de outra Pequena Antilha (o restante território é francês), constituinte do reino da Holanda.
Lá voltamos apostados em retomarmos o itinerário norte-sul pela alpondra das Antilhas. Quanto mais das suas ilhas visitávamos, mais nos encantavam as incontáveis excentricidades caribenhas.