Quando nos reconhece à saída das chegadas, Anthony solta um talofa (olá) efusivo que é seguido por algumas palavras diplomáticas e uma viagem a passo de caracol para o centro: “O nosso limite é de 40km/h.
A polícia de Samoa não perdoa! E gostam especialmente aqui da saída do aeroporto.”
Demoramos uma eternidade a chegar mas, depois de saltitarmos durante uns meses por várias ilhas do Pacífico, estamos mentalizados para a noção arrastada de tempo destas paragens e já não desesperamos, como de início.
Apia: a via para o arquipélago samoano
Em termos visuais, a capital dificilmente será louvada pelos visitantes mais exigentes.
Organizada em redor de uma baía ampla parcialmente protegida por recifes de coral – que é também o seu porto – Apia contrasta com a restante ilha-chefe Upolu onde o trânsito, o ruído e a relativa confusão urbana não chegam.
Quase um quarto da população de Samoa (44.000 habitantes) partilha a longa avenida marginal, e as ruas que dela se estendem para o interior da cidade.
Já instalados, saímos do hotel em modo de descoberta. Percorremo-las atentos às peculiaridades incontornáveis das ilhas do Pacífico.
Passamos pelo terminal rodoviário. Vêmo-lo repleto de velhos autocarros garridos que divulgam os nomes das mini-empresas que os conduzem.
Ou mensagens de incentivo, fé e esperança como “Life Goes On” e “Glory to God”. São acima de tudo estudantes, os passageiros daquelas relíquias automóveis.
Protegem-se do sol abrasador à sombra das estruturas das paragens e entregam-se a conversas animadas que só a compra de shaved-ice e uma ou outra tropelia interrompem.
O dia-a-dia da cidade decorre entre uma combinação atípica de edifícios polinésios, coloniais e de aberrações arquitectónicas da modernidade com destaque para o prédio “soviético-samoano” de sete andares em que se instalou o governo ensombrando a fale que alberga as autoridades do turismo.
As torres gémeas da catedral católica atraem-nos ao lado oposto da rua. Durante décadas a fio, a igreja enfeitou a marginal de branco e azul e, as estátuas da Nossa Senhora e de diversos santos abençoaram Apia.
Viagem Circum-Rodoviária de Upolu
Nos dias seguintes à chegada, Anthony mostra-nos as vertentes selvagem e bucólica de Upolu, uma ilha marcadamente vulcânica que o clima tropical chuvoso se encarrega de manter luxuriante.
Aproximamo-nos do litoral da costa oposta à da capital.
Atravessamos diversas povoações marcadamente polinésias, organizadas em redor das suas fales comunais em que os homens levam a cabo a cerimónia da ava (noutros países do Pacífico do Sul, kava), uma bebida feita a partir de uma raiz inebriante.
Comités de mulheres locais reúnem-se para decidir a melhor gestão para as suas aldeias ou produzir os ie toga, enormes tapetes feitos com base em folhas secas e siapos, tecidos feitos de casca de árvore com motivos da fauna e flora da ilha.
Ainda o Legado do Tsunami de 2009
Já junto ao mar, surpreende-nos a destruição generalizada que assolou algumas outras povoações. Meio reticente, Anthony explica-nos a tragédia que a provocou. “todas estas aldeias daqui ainda não recuperaram do tsunami de 2009. Morreram 190 pessoas. A maior parte dos sobreviventes mudou-se para o interior.
Ou para outros países. Continuam tão traumatizados que se recusam a aqui regressar.”
Apesar da protecção de uma barreira de recife que torna a água ainda mais turquesa, a praia e povoação de Lalomanu também foram devastadas. Mesmo assim, mais recentemente, um nativo preferiu arriscar e não desperdiçar o seu potencial turístico. Construiu fales e pequenos bungalows que hospedam os estrangeiros rendidos à beleza e exotismo do lugar.
Continuamos a desbravar a costa sul. Fazemo-lo com paragens estratégicas para reabastecer de alimentos e bebidas nas pequenas mercearias remediadas de beira da estrada.
Depressa constatamos que fazem quase sempre parte de domicílios. Por norma, precisamos de gritar para que os donos, ou os filhos apareçam ou se dignem a acordar da sesta.
Edwin e a Condenação da Emigração
Numa dessas ocasiões, despertamos Edwin, um nativo quarentão de olhos claros, barrigudo e ensonado que, com o pretexto de explicar as suas muitas tatuagens tradicionais, mais que atender os clientes, nos resume a história da sua vida, passada a tentar ganhar o dinheiro que Upolu nunca lhe pôde conceder.
“Já trabalhei embarcado e em terra. Mudei de países 5 ou 6 vezes. Não posso dizer que não vou voltar a sair mas estava realmente farto. Por agora preciso de um tempo por casa”.
São poucas as oportunidades de prosperar em Samoa. À imagem de tantas outras ilhas polinésias, o arquipélago não possui matérias-primas de valor.
As famílias que permanecem são as que herdaram propriedades e conseguem subsistir e obter lucro da terra. As que têm membros a trabalhar para o governo.
Ou num ou outro negócio do ramo turístico, que começou finalmente desenvolver-se e já representa 25% do PIB do país mas está longe de resolver a vida de todos os samoanos.
Nos piores casos de pobreza, os homens, em especial, vêem-se obrigados a emigrar para a vizinha Nova Zelândia, para a Austrália ou para o Havai ou a Califórnia, os seus destinos predilectos.
Muitas das famílias que deixam para trás juntam-se-lhes mais tarde, numa fase em que já começaram a assimilar as culturas predominantes kiwi, aussie e norte-americana.
Nos casos mais exemplares, os samoanos imigrados contribuem para o sucesso destas nações.
O Sangue Samoano da Nova Zelândia
Enquanto permanecemos em Upolu, percebemos o quanto os orgulha que saibamos que Tana Umaga – um dos melhores jogadores e capitães da selecção de rugby All Black – tenha sangue samoano.
Mas a conversa mudaria rapidamente de figura se mencionássemos os gangs de Auckland a que os jovens recém-chegados do arquipélago ou filhos desenquadrados de emigrantes acabam por fazer parte.
Em que aderem a uma cultura de conflito e violência exacerbada pela rivalidade com os clãs anglófonos e com os indígenas maori que, apesar de em casa, sofrem a sua própria discriminação.
Tatuagens e as Terras vulcânicas: resiste a Samoa Tradicional
Tatoo é uma palavra de origem polinésia que teve primeira referência escrita no samoano tatau e foi introduzida na Europa pelo explorador James Cook e sua tripulação.
Em Samoa, os padrões milenares das tatuagens começam a perder significado cultural na nação. De uma forma simplificada, servem para promover a nova identidade urbana e marginal dos samoanos e dos maori.
Enquanto isso, a lei da posse da terra pouco mudou em Samoa. A rigidez de costumes afecta o investimento estrangeiro e priva o arquipélago dos proveitos financeiros de que usufruem paragens do Pacífico concorrentes, casos de Tonga, de Fiji e da Polinésia Francesa.
Em Samoa, a venda de propriedades familiares é proibida. As terras podem permanecer nas mesmas famílias séculos a fio.
Tal como constatámos, quando coincidem com pontos de interesse turístico – sejam praias, quedas de água, lagoas etc – as famílias mantêm membros de guarda prontos a cobrar pela entrada dos visitantes. Assim aliviam as suas carências financeiras.
Numa dessas incursões em terras privadas vulcânicas, os anciãos que protegem a entrada para o trilho obrigam Anthony a sentar-se à sua frente.
Descompõem-no porque não nos tínhamos também sentado e feito as saudações requeridas pelo protocolo da ilha.
O anfitrião só se safa de consequências piores porque os elucida que somos de fora e não estamos a par dos hábitos samoanos.
Em seguida, tenta justificar-nos a demora. “Como tantas outras, as famílias deles estão para fora. A única coisa a que se podem agarrar são o convívio, os costumes e o dinheiro que tiram destas entradas.
Pode parecer-vos forçado mas eu não os recrimino. É toda a história de um povo que aqui está em questão.”
Com mais esta peripécia, confirmamos que, em Samoa, a tradição se debate com o velho costume de escapar à tradição.