Chegamos à rotunda que interrompe a Circular da Praia nas imediações do Estádio Nacional de Cabo Verde.
Duas rotundas impostas à vastidão ressequida e espinhosa distribuem o trânsito para Praia e outras direcções. Uma amostra de manada de vacas mantém-se sobre um separador central da via que conduz à Cidade Velha.
Estranha, inesperada, a visão distrai-nos. Faz-nos perder a saída correcta. Damos mais uma volta, acompanhada, com suspeição, pelo gado. Por fim, na sequência da segunda rotunda, acertamos com o Norte de Santiago.
Num ápice, a estrada estreita. Ajusta-se aos dois sentidos mais habituais em Cabo Verde. Uns quilómetros depois, já cruzado o Pedegral e o povoado de Ribeirão Chiqueiro, entra num modo de pré-desfiladeiro que nos prepara para o relevo imponente e recortado por diante.
Uma das vias sinuosas que passa por Caiada e por Água Gato leva-nos ao município de São Lourenço dos Órgãos e ao reduto montanhoso e dramático a que contávamos dedicar algum tempo.
O Domínio Montanhoso e Verdejante de São Jorge dos Órgãos
Ali, no sector mais frondoso e florido da Escola Superior de Ciências Agrárias da Universidade de Cabo Verde, encontramos o Jardim Botânico Nacional Grandvaux Barbosa.
Foi criado em 1986, baptizado em homenagem a Luís Augusto Granvaux (1914-1983), um botânico português hiperdedicado à flora do Ultramar, sobretudo à de Cabo Verde.
Na rédea solta em que andávamos, preferimos admirá-la no seu contexto e ecossistema natural. De acordo, prosseguimos para o âmago de São Jorge dos Órgãos.
Já em pleno na vila, o relevo confronta-nos com a igreja azul de São Jorge, enfiada entre elevações com cumes aguçados.
Sentimos a urgência de nos distanciarmos do casario, de encontrarmos um ponto de observação condigno. Metemo-nos assim, por um desvio estreito, de terra mal batida que ziguezagueava por uma das encostas acima.
Desconfiados quanto aos danos que o piso agravado poderia causar no carro, encontramos num grupo de camponesas, sentadas sobre sacas e medas de milho seco, o pretexto ideal para abortarmos o desvario.
Uma Comunidade Bem-Disposta de Camponesas Solidárias
“Nós juntámo-nos aqui em trabalho comunitário” explicam-nos, como se se tratasse de uma banalidade. “Nestas partes mais isoladas, os aldeãos sofrem para dar conta das colheitas só por eles. Assim, ajudamo-nos uns aos outros.”
Criados em boa parte no campo das Beiras, lembrávamo-nos de quando essa harmonia comunitária por lá prevalecia. Mas também estávamos conscientes de como o individualismo e facilitismo a tinham exterminado, sobretudo da década de 90 em diante.
Encantados com o subsistir dessa saudosa solidariedade, entregamo-nos a uma cavaqueira, no português familiar a todos e no crioulo badiu a que as senhoras recorriam, entre elas, sempre que uma nova observação ou piada se impunha.
Na sua companhia, contemplamos o cume bicudo a dobrar do Pico de Antónia (1394m) o ponto mais elevado da ilha, terceiro de Cabo Verde, cerne de um parque nacional homónimo.
Se bem que, neste caso, o homónimo tem que se lhe diga. Quando mais investigamos mais constatamos o quanto divergiu o nome do zénite de Santiago.
O Contexto Histórico e Semântico Instável do Tecto de Santiago
Fontes supostamente credíveis explicam que, desde cedo, o monte foi tratado por Piku D’Antoni por ter sido uma das primeiras elevações de Cabo Verde registadas pelo navegador genovês António da Noli, ao serviço do Infante Dom Henrique.
Ao longo do tempo, foi referido em documentos e até em letras do cancioneiro popular cabo-verdiano. Nuns, surge como de António. Noutros, no feminino.
Algures no decorrer da história de Santiago e do respectivo tratamento vernacular, o povo terá mudado o género do seu descobridor. Rodeados de mulheres santiaguenses, anuímos.
Gilda, uma delas, está atrasada, a mais de uma hora e meia a pé de São Jorge dos Órgãos, a vila a que nos convinha regressar. Damos-lhe boleia, descemos a montanha à conversa e entregamo-la à sua vida.
Logo, subimos a um tal de Miradouro de Tancon. Debruçados sobre o seu parapeito generoso, voltamos a admirar o Pico de António e os vizinhos, agora, de oeste para leste, frontais e, como tal, mais definidos e destacados.
Com o deslumbre renovado, retomamos o caminho. Chã de Vaca fica para trás. Alternamos entre os municípios de São Lourenço dos Órgãos e o contíguo de São Salvador do Mundo quando um monumento natural de Santiago reclama um desvio às profundezas de Leitãozinho.
Pé di Polón: em Busca da Maior Árvore de Santiago
Descemos a vertente imediata. Sobre a oposta, encontramos o colosso vegetal que buscávamos, o Pé de Polião, em crioulo, Pé di Polón, um embondeiro ou sumaúma (Ceiba pentandra) endémico celebrado como a árvore suprema de Cabo Verde e uma das mais antigas.
Nessa altura, já com alguma folhagem, a árvore-da-lã pendia sobre o talvegue. Sustinham-na raízes colossais que ondulavam vertente abaixo, sedentas dos lençóis freáticos que a curta época das chuvas de Santiago desdobrava.
Ermo à chegada, o lugar depressa nos revela a sua vida.
Dois jovens da zona percorrem um trilho no sopé da árvore, carregados com sacas a transbordar de um qualquer grão, como se não bastasse, um deles a puxar por um grande bode preso a uma corda.
Instantes depois, sucede-os um casal a caminho das suas terras, também eles a passearem um par de cabras negras ansiosas por pasto.
Centenas de fotografias depois, soltamo-nos para uma passeata que estimávamos curta pelo entorno cultivado. Demoramo-nos mais do que contávamos.
A Cana-de-Açúcar e a Produção de Grogue da Região
Uns metros acima, entre um coqueiro solitário e bananeiras rasas, cruzamo-nos com um camponês.
Quando nos vê, em vez de nos saudar de volta, exibe-nos uma dança extasiada, descomplexada e, assim nos vemos forçados a concluir, embriagada.
Elogiamo-lo e à sua plantação com a diplomacia que nos vem à mente. De regresso ao cimo da povoação, detectamos o motivo mais provável da sua animação.
Damos com moradores das redondezas reunidos junto ao trapiche local, em redor de um poço de caldo de cana-de-açúcar em que borbulha uma fervença amarela e vaporosa.
Um trabalhador de boina mexe o líquido com uma pá longa.
De tempos a tempos, retira uma amostra para um prato e examina a espessura e aspecto do composto.
Dona Teresa e Sr. Zé Maria, donos ou, pelo menos, encarregados do trapiche reconhecem o empenho fotográfico que colocamos na operação. Chamam-nos à parte.
Prendam-nos com uma meia casca de coco, cheia de melaço alcoolizado. Sabe-nos que nem ginjas. Bastante melhor que ginja, devemos assumi-lo.
Conscientes do perfil orográfico extremo do que nos faltava conduzir, rejeitamos uma terceira dose.
Em vez, acompanhamos a montagem do alambique, um processo que se prova demasiado complexo e arrastado para o tempo de que dispúnhamos.
Ilha de Santiago Acima: por Achada Igreja e Assomada
Despedimo-nos, agradecidos pela paciência e pelo acolhimento dos anfitriões. Desbloqueamos um monte de grandes pedras recém-mal-descarregadas.
Uma vez desimpedido o cimo da ladeira, retomamos o asfalto e o rumo do norte Santiaguense.
Passamos por Achada Igreja (Picos), povoação instalada sobre uma crista, coroada pela igreja de São Salvador do Mundo.
E, proeminente, por um enorme e excêntrico rochedo. A gente destas partes trata-o por Monte Gulilância.
Vê nele um homem montado a cavalo, com tal simbolismo para o município que chega a ser comparado com a estátua do Marquês de Pombal.
Segue-se Assomada, a cidade das cidades do interior de Santiago, peculiar a condizer, com o seu casario dividido por dois níveis, um principal e superior, no cimo de uma meseta de que parece despontar o cume serrado do Monte Brianda.
Um outro, simbiótico, alojado no fundo da mesa.
Assomada abriga o mercado mais bem abastecido e activo de Santiago, ao que não é alheio o facto de o concelho de Santa Catarina em redor ser ter tornado o celeiro indisputado da ilha.
Os Montes dos Vendavais da Serra da Malagueta
Continuamos por Boa Entrada e por Fundura. Não tarda, pela Serra da Malagueta acima, às tantas, expostos a uns ventos Alísios tão poderosos que receamos que nos virem o carro.
Desses mesmos montes dos vendavais santiaguenses, ainda a boa distância, admiramos as terras mais planas que acolheram Chão Bom, a cidade de Tarrafal.
E, entre ambas, o infame campo prisional da Morte Lenta mandado erguer, em 1936, pelo governo do Estado Novo português.
Eram paragens a que tínhamos decidido dedicar o seu próprio artigo. De acordo, viramos o olhar para poente.
Admiramos o consolidar da silhueta triangular do vulcão Fogo a ornar a ilha homónima e vizinha, sobranceiro e muito face às linhas mais altas de Santiago.