A génese vulcânica e uma geomorfografia caprichosa moldaram a exuberância verde-árida de Santo Antão. Mas não só. Ditaram também uma inacessibilidade por ar e respectivo isolamento que só a irmandade de São Vicente, logo ali do lado contrário do canal homónimo, parece aliviar.
Não fosse São Vicente, Santo Antão viveria um outro nível de solidão atlântica.
São Vicente confirmou-se o nosso ponto de aterragem inaugural em Cabo Verde. Sem surpresa, foi do Mindelo, a sua capital, que zarpámos para o canal, rumo ao Porto Novo de Santo Antão.
Quase residentes no arquipélago, há meses que os ventos Alísios castigavam tanto uma ilha como a outra. De maneira tal que, quando visitamos as instalações das companhias de navegação no porto de São Vicente, estavam por confirmar as travessias seguintes.
Por fim, com a tarde a meio, a ventania dá de si. O suficiente para permitir a navegação, afectada por uma turbulência a que os comandantes e os passageiros estavam já habituados. Quando embarcamos no “Mar d’Canal”, uma das primeiras medidas da tripulação é dotar os passageiros de sacos de enjoo. Mesmo se se tratava de um procedimento padrão, o Atlântico não tardou dar-lhe sentido.
O “Mar d’Canal” deixa a baía do Porto Grande para trás. Desliza, com suavidade, na direcção do ilhéu dos Pássaros. À medida que víamos definir-se os recortes do cimo do Monte Cara, as vagas do canal formavam altos e baixos cada vez mais cavados. Agitavam o ferry e faziam-no adornar sem misericórdia. A espaços, de tal forma que, no convés superior em que seguíamos, qualquer esboço de deslocação se revelava uma aventura.
Prosseguimos neste embalo violento por uns bons quarenta minutos, à mercê do Atlântico azulão mas encrespado, salpicado de grandes cristas de espuma.
Aos poucos, Santo Antão usurpou o protagonismo de São Vicente. As vertentes imponentes, repletas de sulcos da costa sudeste da ilha ganharam volume, recorte e cor. Como ganhou o casario multicolor estendido entre a Ribeira do Tortolho e o porto do Porto Novo em que se encerrou a travessia.
À hora do desembarque, o sol já desaparecia para o oeste da ilha. Demos entrada no hotel. Pouco depois, voltamos a sair, esperançados de ainda resolvermos o eterno problema do cartão SIM e mais uma ou duas chatices essenciais ao périplo por Cabo Verde a que nos íamos dedicar.
Caminhamos pelas ruelas da cidade mais próximas do mar, entre casas e negócios enfiados em edifícios de tons pastel que, destacados do solo de asfalto ou de areia e poeira vulcânica, se disfarçavam de garridos.
Entretanto escurece. Se até os Alísios se rendiam a umas tréguas e repouso nocturno, quem éramos nós para destoar.
A Ascensão Vertiginosa de Porto Novo a Lombo da Figueira
Despertamos antes do vento. Regressamos à marginal de Porto Novo, apostados em arranjarmos um carro à altura da montanha-russa natural de Santo Antão. A primeira viatura que alugamos fica sem bateria pouco depois. Na segunda tentativa, fazemos finca-pé numa pick up, mais dispendiosa mas que sabíamos estar noutro nível de resistência e fiabilidade.
Com o transporte resolvido, confirmamos que a secção mais urbanizada e transitável da ilha se situava no seu terço superior. Só duas estradas permitiam viajar da maior cidade, Porto Novo, até aos polos urbanos da costa nordeste do Paul, Janela, Ribeira Grande e Ponta do Sol.
Uma dessas estradas avançava contra os ponteiros do relógio, pelo sopé das montanhas do norte. A outra, ascendia, sem grandes rodeios, mas por incontáveis meandros, a uma crista que coincidia com o limite da municipalidade do Porto Novo.
Ainda antes de partirmos, passeamos pela praia vulcânica em que desagua a Ribeira do Tortolho, entretidos com o contraste entre os grandes seixos negros e polidos de basalto e as cores vivas dos barcos de pesca. Apreciamo-los, alinhados no cimo do pedregal, em harmonia com o firmamento e com três ou quatro acácias verdejantes, como uma bem ponderada instalação piscatória.
Dali, voltamos a embrenhar-nos no casario do Porto Novo, até encontrarmos a perpendicular da cidade de que partia a Estrada da Corda.
Numa primeira secção, o empedrado ondulado da via leva-nos encosta acima, de forma gradual e pouco sinuosa, numa ascensão suave que a poderosa pick up vence sem esforço.
A determinada altura, a estrada chega a sectores da vertente bem mais íngremes. A Corda enrola-se em sucessivos ziguezagues murados, entre arbustos espinhosos e mais acácias.
Mais esse, menos esse, atingimos o Lombo da Figueira. E um entroncamento já sobre a fronteira das municipalidades de Porto Novo e de Paul.
A Deslumbrante Caldeira Agrícola de Cova do Paul
Para diante no caminho, ficava a intrigante Cova de Paul. Para leste, a via conduzia ao miradouro de Paul e ao Pico da Cruz, estes pontos, como a estrada em si, com algumas das melhores vistas sobre o sul de Santo Antão e o Atlântico abaixo.
Damos prioridade ao desvio. Detemo-nos no miradouro de Paul. Dali, fascinamo-nos com os avanços e recuos subtis da névoa, a afagar e irrigar a falda arborizada abaixo, uma das mais frondosas de toda a ilha, viríamos mais tarde a concluir. Passamos a capela da Nª Srª da Graça.
No lugarejo abaixo, confraternizamos com alguns santoantonenses encasacados para o fresco e húmido das alturas, que se abasteciam no depósito de água potável local.
Regressamos à Estrada da Corda. Contados uns poucos quilómetros, achamos a abertura na vegetação que concedia o Miradouro da Cova.
A Cova é uma das várias caldeiras que aprofundam o perfil vulcânico de Santo Antão. Quando a espreitamos da beira da estrada, em vez de um ar sulfúrico, paira sobre ela uma névoa inócua, uma espécie de extensão interior das nuvens que tínhamos avistado do miradouro do Paul.
Essa névoa é vital para a actividade agrícola minifundiária e pitoresca com que os santoantonenses preenchem a quase totalidade do quilómetro de diâmetro da caldeira. Com milho, cana-de-açúcar, mandioca e, claro está, feijão-pedra. Descemos. Cirandamos por ali, entre as sebes de cana-de-açúcar com que os camponeses salpicam a terra fértil.
Quando as nuvens a cobrem na íntegra, uma chuvinha molha-tolos encharca-nos. Regressamos à Corda.
Arlinda, Kelly e o Castigo do Feijão-Pedra
Já em pleno domínio de Paul, atravessamos a Fajã de Cima. À passagem, atrai-nos a visão de uma mãe e filha, sentadas, lado a lado, ao sol, a descascarem feijão-pedra de cestos de vime para pequenas latas.
Chamam-se Arlinda Neves, a mãe.
E Kelly Neves, a filha. “Tenho o meu irmão e a minha nora a morarem lá ao pé de Lisboa…onde é… ah é na Baixa da Banheira” informa-nos Kelly. “Só os vemos uma vez por ano. Este ano, ainda não é certo.” acrescenta e mostra-nos uma fotografia emoldurada do casal.
A conversa e o sol suave amornavam o convívio pelo que à conversa nos deixámos ficar. Isto, até que as interlocutoras terminam o afazer e percebemos que se queriam dedicar a outro.
Estrada da Corda Abaixo, com Passagem pela Corda
Voltamos uma vez mais à Estrada da Corda. Serpenteamos por uma floresta de pinheiros e cipreste volumosos. Contornamos uma caldeira secundária, bem mais pequena que a do Paul e entramos nos domínios da Ribeira Grande.
Daí em diante, ainda a uma cota de 1000 metros, até à Corda que lhe havia cedido o nome, a estrada desce aos poucos.
A 13km para o interior do ponto de partida de Porto Novo, mais que uma povoação, Corda mantem atadas diversas aldeolas e lugarejos de que se destacam Chã de Corda e Esponjeiro. Estabelece uma comunidade agrícola de altitude, acima de outra das crateras profundas de Santo Antão.
No entretanto, a estrada solta-se da Corda. Ganha embalo pelo alto do desfiladeiro da Ribeira Grande, a espaços, entre socalcos ora plantados ora ressequidos e colónias de agaves aguçados e exuberantes.
O Prodígio Rodoviário do Delgadinho
Por esta altura, em comunhão com tal flora intrépida, chegamos à entrada do Delgadinho, um ponto alto panorâmico da Estrada da Corda.
Umas espreitadelas para um lado e para o outro depois, confirmamos que se tratava de um dos lugares que melhor revelavam o esplendor geológico de Santo Antão.
Na prática, é o improvável Delgadinho que concede à Estrada da Corda a sua continuidade. Não fosse aquela crista morfológica modelada nas lavas de há milhões de anos, bem acima dos vales profundos da Ribeira da Torre e da Ribeira Grande, e o atalho da montanha entre Porto Novo e a cidade da Ribeira Grande teria sido impossível.
Paramos à sua entrada. Percorremo-lo a pé, indecisos sobre se nos haveríamos de deslumbrar primeiro com a escultura geológica de um lado ou do outro, incrédulos com ambas.
Até que, do nada, aparecem dois santoantonenses. De cima, surge um morador das redondezas, com um grande molho de pasto debaixo do braço. No sentido ascendente, um motociclista empurrava a sua motorizada emperrada.
Enfiado num fato de macaco e à sombra de um boné da Super Bock, José Cabral, um nativo de Corda, percebia que bastasse de mecânica. Bastaram uns minutos de cooperação para o duo dar a volta à mota. O motociclista agradece a ajuda, despede-se, some-se no castigo da ladeira.
Enquanto limpa o óleo das mãos a uma meda de erva improvisada, José Cabral explica-nos que trabalhou muitos anos em Portugal, na manutenção de barragens.
Gabamos-lhe a terra natal: a Corda, o Delgadinho. Santo Antão no seu todo abençoado. José Cabral retribui a gentileza. Aconselha-nos a continuarmos o percurso sempre em mudanças baixas.
A Descida Vertiginosa Rumo a Ribeira Grande
Nos 7km que nos separavam do destino final, de meandro para meandro, a pendente agravava-se. Só os nós e contra-nós da Estrada da Corda colaboravam com a pick up a refrear o ímpeto da gravidade.
Aos poucos, o leito de gravilha então seco da Ribeira Grande torna-se mais largo. Vislumbramos os primeiros núcleos habitacionais na sua base, já suficientemente próximos da costa para suavizar a dureza espartana do seu retiro.
Sem aviso, voltamos a avistar o Atlântico e no fundo do V que o parecia sustentar, edifícios mal-acabados, demasiado altos para pertencerem a uma aldeia. Estávamos na iminência da segunda cidade de Santo Antão.
Quase 40km depois, tínhamos chegado à outra ponta da Estrada da Corda e ao norte de Santo Antão.