São as águas frias do Pacífico e a localização extrema de São Francisco – uma língua de terra cercada de mar por três lados mas presa à superfície sobreaquecida da Califórnia – que definem a meteorologia única da cidade.
Acompanhamos vezes sem conta o desenrolar deslumbrante do seu mais famoso fenómeno: o nevoeiro a avançar lentamente do Pacífico e a invadir a baía e a metrópole.
No processo, a grandiosa Golden Gate Bridge é a primeira grande estrutura a ser coberta. Segue-se a famosa ilha-prisão de Alcatraz. Por norma, aos poucos, a névoa desvanece-se total ou parcialmente sobre os cenários.
Água gélida do Pacífico vs Interior da Califórnia Aquecido
Umas vezes por longos períodos, noutras, durante escassos minutos. Uma frase polemicamente atribuída a Mark Twain resume com sarcasmo a instabilidade do clima de Frisco: «O Inverno mais frio que já passei foi um Verão em São Francisco.»
Desde então, se alguma coisa mudou, foi o número de dias sem sol, que parece ter aumentado. Tarde após tarde, pouco depois de o nevoeiro se instalar, damos connosco a ansiar pela dose diária do famoso clam chowder, um caldo de amêijoas revigorante, servido dentro de um pão sourdough (feito com massa avinagrada) quase oco.
O frio do Pacífico forma, apesar de tudo, as condições ideais para uma comunidade muito peculiar de Frisco. Nas proximidades do Pier 39, o vento a favor prenda-nos com um estranho aroma.
Mais para diante, sobre plataformas flutuantes, damos com centenas de leões-marinhos conflituosos e barulhentos que disputam, à dentada, cada centímetro de espaço, indiferentes a uma multidão de espectadores entre o intrigado e o incrédulo.
Pier 39: de Doca Náutica a Pouso dos Leões-Marinhos
Os leões-marinhos colonizam a Baía de São Francisco desde há muito. Até 1989, aglomeravam-se num ilhéu baptizado de Seal Rock. Nesse mesmo ano, o terramoto de Loma Prieta abalou São Francisco. Os animais mudaram-se em peso – bastante peso, já agora – para o Pier 39.
A sua migração obrigou à remoção das embarcações que lá antes atracavam para outras docas. Gerou teorias que ligavam os dois acontecimentos. Os cépticos afirmaram ter-se tratado, sim, duma coincidência, de que, na realidade, os leões-marinhos ali se sentiam a salvo dos seus predadores, os tubarões brancos que patrulham as águas em redor.
Situado numa extremidade do Fisherman’s Wharf district, o Pier 39 conduz a um mar de outras atracções entre o feirante e showbiz e, para alívio daquele passeio dos alegres, já sem o revés da pestilência.
O Domínio Shopping e Encanta Turistas de Frisco
São lojas, restaurantes e carrosséis agrupados numa espécie de grande centro comercial ao ar livre. São actuações ao vivo, mais a dupla Marine Mammal Center e Aquarium of the Bay. Esta proliferação de encantos de rua mantém os passadiços a transbordar de gente e as caixas registadoras a tilintarem com o ingresso constante de greenbacks.
Para leste, tanto na direcção do Parque Aquático como no sentido contrário, a marginal é percorrida por trolleys coloridos. Passamos por cais com números ímpares. Essa marginal, conduz-nos a um sortido de marisqueiras históricas com nomes de famílias italianas, caso da reputada Alioto’s.
Logo ao lado, entramos em North Beach. Malgrado o nome, o bairro também é italiano. Abriga cafés e pizzarias sobrevoados por bandos de periquitos foragidos que lhe conferem uma aura desenquadrada de exotismo tropical.
North Beach. O Antro Hiper-Criativo da San Francisco Beat Generation
Esta era a zona da cidade preferida pelos escritores da Beat Generation como Allen Ginsberg, Jack Kerouac e Lawrence Ferlinghetti que, a meio dos anos cinquenta, se mudaram de Nova Iorque para reforçar o seu cerco cultural aos valores mais rígidos da sociedade norte-americana.
Já na City by the Bay, tornaram as ruas e mesas de café da zona uma base de lançamento de novos direitos civis e liberdade de expressão. A sua conquista começou a tornar-se realidade quando, em 1957, Ferlinghetti e a livraria City Lights venceram um apelo legal contra a censura da colecção incendiária de poemas “Howl”, de Ginsberg.
Os escritores da Beat Generation depressa fizeram amigos entre as principais figuras da San Francisco Renaissance, o movimento cultural vanguardista da cidade que viriam a enriquecer.
Entre drogas, formas alternativas de sexualidade e um interesse espontâneo na espiritualidade oriental, obras libertadoras como a autobiografia “On The Road” [Pela Estrada Fora] de Kerouac conquistaram, então, uma influência irreversível na juventude norte-americana.
Com a chegada da década seguinte, a já desgastada Beat Generation abriu alas à Sixties Counterculture. Em 1967, ao som do hino “San Francisco (Be Sure To Wear Flowers In Your Hair)” cantado por Scott McKenzie, despontou na cidade o Summer of Love, a expressão local da cultura hippie que varria os Estados Unidos e o mundo.
A Sixties Counterculture Flower Children de Haight
Milhares de jovens seguiram a letra da canção e afluíram dos quatro cantos do país adornados com flores que também distribuíam pelas ruas. Ficaram conhecidos como os Flower Children.
Movimento após movimento, corrente atrás de corrente, São Francisco afeiçoou-se ao seu jeito inquieto de contestar e desbloquear a mudança. Alguns dos seus bairros mais criativos de hoje foram fulcrais nas revoluções culturais passadas. Haight ficou conhecido como o G-Spot do Summer of Love e parte dos seus velhos hábitos – como o de gerar ideais – mantêm-se inalterados.
Além de entidades de nomes enigmáticos como a Anarchist Book Collective, a cooperativa Red Vic Movie House e o Haight Asbury Food Program, abundam bares, lojas e ateliers com decorações possivelmente inspiradas na muita marijuana que circula, alegadamente «para fins medicinais».
A norte da Divisadero Street, a zona superior do bairro acrescenta ao panorama uma concorrida proliferação de cabeleireiros, lojas de discos e dedicadas a skaters, para não falar das de material de jardinagem.
«É a terceira vez que aqui passam, agora têm mesmo que pagar portagem!», avisa-nos um membro mais extrovertido de um grupo de anarquistas pedintes.
Não há como nem porquê evitar contactos deste género. Onde quer que se vá em Haight e na vizinha Ashbury, as ruas ostentam graffitis surrealistas. São obras de punks anacrónicos, de artistas excêntricos e pseudo-desenquadrados da sociedade que chamam casa aos passeios e a combies psicadélicas estacionadas ao largo.
Os Antípodas Sociais do Financial District
No absoluto oposto civilizacional, paira o Financial District onde a compostura corporativa tem a cotação sempre em alta.
No início do século XX, os proveitos da Febre do Ouro da Califórnia tornaram São Francisco no principal centro financeiro do Pacífico.
Desde então, a Montgomery Street, ficou conhecida como «Wall Street da Costa Oeste» acolhe algumas das empresas bancárias mais poderosas do país.
Hoje, para cima de 30 instituições financeiras – várias delas presentes no índice Fortune 500 – têm escritórios nas suas ruas, com destaque para o Wells Fargo e para o Bank of America, proprietário do arranha-céus 555 que se destaca da California Street.
São Francisco e o Silicon Valley: Motores Financeiros da Califórnia e dos E.U.A.
Em termos de produto interno bruto, São Francisco é a 18.ª cidade do mundo e a nona dos Estados Unidos. Na década de 90 do século passado, os seus lucros astronómicos ficaram intimamente ligados à revolução dot com que eclodiu em Silicon Valley, o domínio empresarial situado na zona baixa da vizinha San José.
Por essa altura, os cyberpunks engenhosos da cidade iniciaram ali um núcleo de gestação tecnológica que daria origem a milhares de novas companhias. Muitos mais programadores, engenheiros informáticos e designers juntaram-se ao influxo que envolveu ainda quadros de marketing, de vendas e de outras áreas relacionadas.
De cada vez que, nós, o leitor e o mundo compravam um novo computador ou programa, ou clicávamos num touchpad ou determinadas teclas de portáteis, tablets e smartphones, gigantes como a Intel, a Apple – Steve Jobs, o seu ex-presidente nascido em São Francisco – a Google, a Yahoo ou a Adobe, entre tantas outras, ficavam mais ricas.
Apesar do rebentar da bolha tech de 2001, que levou à falência inúmeras start ups, a enorme aposta na inovação gerou marcas tão ou mais poderosas de que só escrevemos o nome por descargo por consciência: Facebook, Instagram (e ficamo-nos por aqui).
Sem surpresa, Frisco reforçou-se também noutras áreas como a investigação biotecnológica e biomédica.
O Reflexo Imobiliário e Social do Contínuo Sucesso
O lucro e as oportunidades gerados pelo boom da Internet transformaram o cenário social da cidade. Enquanto o valor das propriedades e os salários escalaram para níveis entre os mais elevados do país, o custo de vida tornou-se demasiado alto para muitas famílias da classe média.
De um momento para o outro, viram-se forçadas a cederam os seus lugares a investidores e especuladores, a sócios de empresas bem sucedidas e aos seus hiper-formados quadros superiores.
No centro da metrópole, o refinamento social permitiu a continuação do upgrade com reflexo nas recuperações milagrosas do Embarcadero (zona de docas) e dos distritos de South Beach, Mission Bay, Cow Hollow, Noe Valley e as Union e 24th Streets, entre outros, agora dotados de restaurantes, boutiques e lojas com preços exorbitantes.
Chinatown de São Francisco. A Maior da América do Norte
Mas nem tudo mudou. Diz-se que, em São Francisco, o Oriente se encontra com o Ocidente. E lá encontramos a maior Chinatown da América do Norte e uma das mais numerosas comunidades chinesas fora da Ásia, espalhada por 22 quarteirões adornados por candeeiros de rua em forma de dragão e telhados de pagode.
A City by the Bay continua também a ser o ex-libris do liberalismo norte-americano. Nela vive a maior percentagem de gays e lésbicas das grandes cidades dos Estados Unidos. E lá se encontra o maior número de lares habitados por casais do mesmo sexo.
Todos os bairros de Frisco são vividos pela população gay mas The Castro foi promovido a quartel-general.
Foi ali que a defesa dos seus direitos e a contestação contra a discriminação se organizaram e ganharam força, sustentadas por instituições como a San Francisco Lesbian, Gay, Bisexual, Transgender Community Center, por noites de poesia ao microfone, pelo Stich’n’Bitch – quando tricotavam em bares e cafés – e por paradas e protestos vários.
The Castro foi também o território político do badalado Harvey Milk, político local e activista gay, a partir de 1973, cinco anos antes de ser assassinado.
Todos os anos, os esforços e convicções gays conquistam expressão acrescida num dos últimos Domingos de Junho. É por essa altura que tem lugar a famosa Pride Parade.
Das dez da manhã às quatro da tarde, grupos de manifestantes exibem, com orgulho, a sua sexualidade. São os casos das Dykes on Bikes, das Drag Queens, dos PFLAG (Parents, Families and Friends of Lesbians and Gays) ou do Leather Contingent (equipados de cabedal e fãs de BDSM – Bondage, Domination and Sado-Masoquism). São Francisco rejubila. Como vive, há muito, debaixo do nevoeiro, há muito que não sente vergonha.