Ditou um mero acaso que partíssemos na direcção das Furnas do desvio que surge após a Fábrica de Chá Gorreana, na imediação dos Barreiros.
De um momento para o outro, a estrada impõe-se à ladeira que nos apontava à crista de São Miguel. Damos de caras com uma manada de vacas frísias, embaladas pela descida. Na sua dianteira, um vaqueiro solitário vê-se aflito para controlar duas ou três cabeças em tresmalhe e, para fazer abrandar os carros.
Em vez de nos desesperar, aquele trânsito bovino a preto e branco lança-nos novo desafio. Encostamos o carro à berma, saímos de câmaras preparadas e enfrentamos as vacas.
Dezenas de disparos fotográficos depois, com o vaqueiro atónito pela velocidade da operação, vemos a cauda da manada entrar para um portão com acesso a um pasto.
Conformados, regressamos ao carro. Retomamos a condução.
Numa diagonal sinuosa, a EN2-1A aproxima-se do cimo da ilha, por ali, ora exposto ora semi-velado por sucessivas sebes densas. Uma delas, oculta um campo de golfe já antes anunciado e a indicação de um miradouro, o do Pico do Ferro.
O Deslumbre Inevitável Gerado pelo Vale das Furnas
Por essa altura, estávamos mais que cientes do valor acrescido que estes pontos de observação têm nos Açores. Desviamos sem hesitar. Avançamos por uma alameda sombria, húmida, quase ensopada da névoa nortenha que ali se condensava. Quando o arvoredo abre à claridade, damos connosco num limiar inverosímil.
Num ápice, por diante, sobretudo para baixo, revela-se todo um lado de lá de São Miguel. Próxima e insinuante, uma grande lagoa, ainda mais verde que o verde micaelense em redor.
Na sua extensão, para sudeste, uma manta de retalhos feita de pastos, matas, cabeços, velhas crateras cobertas de vegetação e uma povoação branca aconchegada na vastidão.
O céu de Estio, azulão, polvilhado de uns poucos novelos que se aventuravam à vertente desfavorável, permitia-nos ainda perceber uma orla florestada de caldeira que só não continha uma curta franja de Atlântico e o firmamento etéreo.
Em São Miguel, quem vem das Sete Cidades, sente-se tentado a pensar que tão cedo não verá igual.
Pois, apenas algumas dezenas de quilómetros para oriente da ilha, ali estava esse igual. Um cenário a que ninguém no seu perfeito juízo se atreveria a colocar defeitos.
Rendidos, apreciamo-lo e fotografamo-lo num silêncio quebrado por cliques, quase cerimonial.
Para não variar, com tanta contemplação, perdemos a noção do tempo.
Cozido das Furnas. Um Velho Ritual Geotermal
Se há hora sagrada no Vale das Furnas, é a de almoço. Não tanto pelo pitéu regional quase pronto em cada lar. Mais pelo que fumega e coze na cozinha ao ar livre entre as caldeiras e a Lagoa das Furnas.
Temos almoço marcado no Hotel Terra Nostra que serve o famoso cozido local. O plano mantinha-se, antes de o devorarmos, vemo-lo a sair da terra.
Ao nosso e a outros, também a serem enterrados, que a quantidade de encomendas, as de restaurantes e as privadas, e as cinco horas de cozedura subterrânea aconselhadas, obrigam a vários turnos. Tínhamos que voar baixinho.
Ora, o que nos faltava de caminho não era propriamente dado a pressas.
A estrada faz-se à orla da Caldeira. Um corrupio de meandros entretém-nos com novas perspectivas, menos panorâmicas à medida que nos acercávamos do fundo.
Logo, uma recta desafogada, ladeada de casinhas brancas com telha portuguesa clássica, aponta-nos ao casario predominante.
Por fim, dávamos entrada nas Furnas. Navegamos o trajecto de um lado ao outro da povoação e disparamos para a lagoa.
Quando estacionamos junto às fumarolas, dois funcionários da Povoação, Rui Pareço e Eduardo Bettencourt, já davam às enxadas.
Receosos de aquelas panelas fossem as últimas do dia, corremos na sua direcção.
“Calma, calma ainda têm bastante que ver, não é preciso essa aflição toda!” sossega-nos Rui Pareço que, logo nos autoriza a seguir-lhes os passos.
Aos poucos, os dois colegas removem mais e mais panelas com o conteúdo já fervente dos buracos. Passam-nas para a caixa da carrinha que conduziam.
Num ápice, voltam a ocupar os buracos vagados com refeições por cozinhar e a cobrir as tampas de madeira com o solo vulcânico abençoado da Terra.
O Vulcanismo Potencialmente Destrutivo do Vale das Furnas
Enquanto os cozidos fervilhavam, percorremos os passadiços que revelavam as caldeiras e fumarolas ali ao lado, mais fumegantes e sulfurosas que qualquer panela destapada.
Não obstante a sua aparência idílica, o Vale das Furnas é vulcânico a sério.
Quando dizemos sério, referimo-nos a eruptivo, a potencialmente disruptivo e catastrófico, tendo em conta que vivem quase duas mil pessoas nos 7km de diâmetro da caldeira.
São as próprias autoridades que classificam o estratovulcão das Furnas, (situado a oeste do vulcão da Povoação) como um dos três potencialmente mais activos da ilha de São Miguel.
A descoberta de São Miguel deu-se entre 1426 e 1439. A ilha começou a ser povoada em redor de 1444. Estima-se que, apenas quatro anos antes, se verificou uma erupção significativa, a partir de um tal de Pico do Gaspar.
Há ainda a certeza de que, em 1630, ocorreu uma outra ainda mais danosa, com centro eruptivo no sul da grande caldeira, a caldeira, por sua vez, gerada por um evento vulcânico massivo de há cerca de trinta mil anos.
A erupção de 1630 foi condignamente descrita. Por eremitas que se tinham estabelecido no Vale das Furnas, primeiro num quarto cedido pelo donatário Manuel da Câmara.
Mais tarde, em cabanas de taipa improvisadas junto a uma ermida que fundaram, a de Nª Srª da Consolação. E, entretanto, num verdadeiro convento.
Pois, a erupção de 1630 arrasou tudo o que os eremitas haviam edificado.
Essa inesperada destruição forçou-os a instalarem-se noutras paragens, enquanto os povoadores do leste de São Miguel cultivavam um receio místico do vale.
Nem mesmo os pastores lá queriam voltar com o seu gado.
Com o passar dos anos e o solo re-fertilizado pela erupção, a vegetação recuperava a um ritmo inédito. Sem notarem nova actividade vulcânica, os religiosos regressaram.
Do Abandono à Povoação Ininterrupta e Prolífica das Furnas
Abençoaram, assim, a povoação definitiva das Furnas, como o constatámos do alto do Pico do Ferro, ainda hoje espiritualmente validada por uma igreja de duas torres, a de Nª Srª da Alegria.
Aos poucos, chegaram moradores da Ponta Garça, da Maia, de Povoação, de Vila Franca e de outros lugares.
Por mais que o adiássemos, estava na hora de lhe seguirmos o exemplo.
Inspeccionamos mais uma fumarola dissimulada na beira da lagoa, junto a uma roulotte de comes e bebes que encontrámos cercada por um exército de patos que disputavam ofertas de pão.
Capela de Nossa Senhora das Vitórias. Um Tributo à Fé
Ainda damos uma volta à lagoa de maneira a admirarmos a capela de Nª Srª das Vitórias, mandada erguer em estilo neo-gótico por José do Canto (1820-1898), um grande proprietário e intelectual micaelense, como voto por o ter afligido uma doença grave da esposa.
A capela destaca-se da margem da lagoa e da vegetação acima. Tem a companhia da casa de férias de José do Canto onde o casal se encontra sepultado.
Formam um duo arquitectónico improvável que, sobretudo em dias de nevoeiro, reforça a aura de mistério da lagoa e do vale das Furnas.
Por fim, invertemos rumo para o âmago da vila.
Aterramos, descansados, na sala de refeições do hotel Terra Nostra desejosos de saborearmos o cozido que tínhamos visto enterrar e feito por merecer, um cozido distinto dos do Continente sobretudo pelo ligeiro sabor a enxofre e pela presença de dois ingredientes açorianos: a batata doce e o inhame.
Parque Terra Nostra: Exuberância Botânica e Arquitectónica nas Já Exuberantes Furnas
O hotel Terra Nostra que nos acolhia integra o parque histórico homónimo das Furnas, um reduto luxuriante, em certos trechos, de visual mais tropical que temperado.
Com tempo até ao fim da tarde, caminhamos entre a sua floresta ajardinada, florescida da paixão de um comerciante endinheirado de Boston, Thomas Hicking, pelas Furnas.
Inteirado da beleza e valor terapêutico da hidrópole do vale, em 1755, Hicking mandou erguer uma casa dotada de um enorme tanque de água com um ilhéu no centro e cercada de árvores.
Baptizou-a de Yankee Hall. Setenta e três anos depois, o influente Visconde da Praia, ilha Terceira, adquiriu a propriedade e ergueu a actual mansão no lugar da Yankee Hall.
A sua esposa, a viscondessa, era adepta de jardinagem. De acordo, o Visconde adicionou dois hectares à propriedade.
Ele próprio e os seus descendentes mandaram-nos preencher com o jardim viçoso e garboso que enche o ar das Furnas de clorofila, um dos jardins mais exuberante dos Açores e, atrevemo-nos a dizê-lo, das ilhas atlânticas.
Nos dias que correm, o tanque de Hicking é a grande atracção do Parque Terra Nostra.
Está cheio de uma água termal morna tão ferrosa que, em vez de translúcida é ocre, quando batida pelo sol, quase açafrão.
Atrai uma multidão de visitantes que nele chapinham e nadam em absoluto deleite. O nosso dia de exploração de São Miguel aproximava-se do ocaso.
Estava na hora de nos banharmos na afabilidade geotermal do Vale das Furnas.