Assim que deixa para trás o continente sul-americano, o elegante Twin Otter encontra um céu salpicado de pequenas nuvens.
Aqui e ali, perfura-as.
Seiscentos quilómetros depois, a nebulosidade intensifica-se e encobre o arquipélago de Juan Fernández. Deixa descobertas algumas arestas de terra que o piloto reconhece sem hesitações.
A pista surge apertada entre as nuvens e o topo dos penhascos de Robinson Crusoe. Apesar do vento forte, o piloto conduz o avião à terra batida com suavidade.
Onde detém o avião, uma bandeira esvoaçante desfaz qualquer dúvida que a distância e a estranheza do terreno pudessem levantar. Regressávamos a solo chileno.
O aeródromo fica num lado da ilha. San Juan Bautista, a povoação onde se concentram os seus quinhentos habitantes, fica noutro. A impossibilidade de cumprir o caminho por terra obriga a um translado pelo mar. Além de lento, complicado.
O velho jipe ferrugento que assegura a ligação ao barco recusa-se a pegar.
Quando pega, porque é o único veículo disponível, tem que cumprir várias viagens de ida e volta, cada uma mais arrastada que anterior.
Como se não bastasse, a ondulação é forte. Atira a embarcação em que devíamos prosseguir contra o molhe da Bahia del Padre.
A agitação gera sucessivas discussões entre a tripulação.
Em redor, dezenas de leões-marinhos nadam inquietos. Parecem analisar o frenesim.
Quando o barco por fim zarpa, seguem-no por algumas centenas de metros, como que a assegurar a integridade do seu território.
As desventuras ainda estavam por terminar. A apenas cinco minutos de atingir o destino, o barco imobiliza-se. A tripulação percebe que vem a perder combustível desde que embateu num dos pilares do molhe da Bahia del Padre.
Em Robinson Crusoe, tudo se resolve.
Em três tempos, do nada, aparece uma pequena embarcação que, a grande esforço, nos reboca.
A chegada à vila é atribulada mas apoteótica. Dezenas de ilhéus acenam ansiosos pelos reencontros com os familiares, ou tão só entusiasmados pelo renovar das gentes. Começamos, a desvendar uma peculiar forma de vida.
Sobre o molhe, os moradores pescam à linha e puxam da água, peixe atrás de peixe. Ao largo, embarcações diminutas descarregam caixotes de lagosta acabada de capturar.
Contribuem assim para a principal exportação da ilha.
Robinson Crusoe envia todos os anos, muitas toneladas destes crustáceos para o continente chileno.
As suas remessas tornaram-se de tal maneira importantes que a Lassa – a companhia aérea que opera os voos de e para Valparaíso e Santiago – lhes reserva metade do espaço dos seus aviões.
Quando escrevemos metade, referimo-nos a todo um dos lados da cabine.
Como pudemos testemunhar, nessas ocasiões, as cadeiras são removidas. E o espaço disponibilizado é preenchido por caixotes que tresandam a marisco.
O mar sempre se revelou generoso para os locais. Dá-lhes que fazer e alimenta-os. Anula as razões mais óbvias para se saturarem de vez do isolamento de Robinson Crusoe.
A 600 km do litoral da América do Sul, esta é uma separação que nem o passar dos séculos nem a modernização do Chile conseguiram ainda resolver.
Ilha Robinson Crusoe: dos Piratas ao Caçador de Tesouros
Assim que nos instalamos, damos início à exploração da ilha.
Acompanham-nos os guias e instrutores de mergulho Pedro Niada e Marco Araya Torres, um casal de franceses recém-chegado e Toni um barcelonense estudante ERASMUS de Biologia, há já algum tempo na ilha.
Saímos com o propósito de desbravar o litoral rude e de mergulhar com os leões-marinhos, uma das espécies endémicas locais, agora em plena recuperação da matança sistemática levada a cabo por caçadores de vários países até ao início do século XIX.
O percurso para as colónias dos “lobos” (como lhes chamam em Robinson Crusoe) revela o esplendor vulcânico dos cenários contrastantes que mudam consoante a orientação e a exposição aos ventos húmidos do Pacífico.
Temos também tempo para uma paragem estratégica na Baía do Inglês.
Ali, Pedro Niada introduz-nos a história de George Anson, o marinheiro que baptizou a baía onde se formou o povoado pirata de Cumberland e deu ao vale contíguo o seu nome.
Explica-nos que Anson escondeu na baía um tesouro de valor incalculável e que já foram muitos os que o tentaram desenterrar. Em vão.
Adianta-nos ainda que Bernard Keiser, um milionário norte-americano, continua a tentar. Niada tinha acompanhado Bernard Keiser em várias das suas épocas de trabalho.
Com paciência e eloquência, à laia de documentário, o guia chileno percorre a enseada e elucida-nos sobre cada marca na rocha, cada medida e pista deixada pelos piratas com referência a pedras com formas curiosas, riachos ou árvores.
A narração deixa-nos ainda mais fascinados pela ilha. E algo desiludidos por estarmos em pleno semestre de restrição às escavações de Kaiser, uma restrição imposta pelo governo chileno.
O Arquipélago Exuberante de Juan Fernández
Deixamos a Baía do Inglês. Seguimos ao longo de uma costa batida pelo mar agitado que só acalma quando nos deparamos com a enseada dos leões-marinhos.
Detectado um recanto suficientemente tranquilo para o mergulho, equipamo-nos. Logo, saltamos para a água.
Em três tempos, vêmo-nos cercados por crias e adultos frenéticos que não resistem à curiosidade, nos desafiam e chegam a morder-nos as barbatanas como que a tentar perceber de que espécie somos.
Por questões de calendário relacionadas com os voos e com as limitações impostas pelo transporte de lagosta, não temos o tempo que queríamos para descobrir a ilha. De acordo, após algumas viagens pelo litoral, decidimos passar a explorá-la para o interior, por trilhos quase sempre íngremes.
Quando caminhamos pelo âmago recortado de Robinson Crusoe, deslumbra-nos a sua flora fascinante, enriquecida por espécies endémicas. Só por si, as paisagens despertam um enorme fascínio. Mas o interesse de Robinson Crusoe e das suas irmãs vai muito além dos panoramas.
A quantidade de espécies animais e vegetais autóctones e a geologia dramática na base dos seus ecossistemas, atraem, há muito, ao arquipélago inúmeros cientistas.
Como causa e consequência, em 1977, a UNESCO declarou-a uma Reserva Mundial da Biosfera, representativa da Região Oceânica da Polinésia do Sudeste.
O Verdadeiro Robinson Crusoe
A personagem chave da ilha Robinson Crusoe chegou muito antes. Estava pouco interessado na fauna e na flora. Sem quase ter tido tempo de perceber como ou porquê, passou a delas depender. A peripécia ficou para a posteridade como um dos momentos mais excêntricos da navegação corsária britânica.
À imagem das ilhas próximas – Alexander Selkirk e Santa Clara – Robinson Crusoe foi descoberta em 1574, por Juan Fernández, um navegador castelhano de família portuguesa.
Pouco depois, o arquipélago a que Fernández deu nome transformou-se num porto de abrigo preferido dos piratas que atacavam os galeões carregados de ouro e pedras preciosas destinados a Cartagena das Índias e a outras paragens do vasto império hispânico.
Em 1704, fundeou na baía de Cumberland, o “Cinque Ports“, um navio corsário inglês.
Tinha como capitão William Dampier, um criador de mapas admirado mas considerado inapto para liderar embarcações repletas de homens rudes e conflituosos nos mares mais perigosos até então conhecidos.
A Obsessão Tresloucada de William Dampier
Obcecado por saquear os navios espanhóis e portugueses que contornavam a costa oeste da América do Sul, Dampier insistiu, contra o bom senso e a vontade dos seus marinheiros, em contornar o temido Cabo Horn durante o Inverno Austral, a época do anos em que as tempestades ali são mais frequentes e ameaçadoras.
Por três vezes tentou o feito. Em todas, o navio foi afastado para longe da rota e sofreu danos avultados. Quando a tripulação que já padecia de escorbuto, ameaçou revoltar-se, o contramestre, o escocês Alexander Selkirk alertou Dampier.
Este, recusou-se a dar ouvidos. Em vez, manobrou o “Cinque Ports” uma vez mais para sul do Cabo Horn, sempre à mercê de um mar traiçoeiro.
A sorte estava do lado do capitão. Mesmo danificado, o navio lá conseguiu passar do Atlântico para o Pacífico. Então, Dampier conduziu-o a Masatierra (a actual Robinson Crusoe) para que os seus homens pudessem recuperar da travessia.
O Abandono Auto-Ditado de Alexander Selkirk
Selkirk esperava que Dampier ordenasse uma reparação geral do “Cinque Ports“. Dampier continuava ansioso e queria zarpar o quanto antes. Convencido de que o navio não iria aguentar mais tempestades, o contramestre Selkirk exigiu ser deixado na ilha. Farto das suas confrontações. Dampier fez-lhe a vontade.
Selkirk voltou uma derradeira vez ao barco. Levou para terra o seu colchão, uma espingarda, pólvora e balas, tabaco, um machado e uma faca, uma bíblia, instrumentos de navegação e alguns livros. Pensou estaria bem preparado para o que estimava ser uma curta espera.
No momento decisivo, à medida que o barco a remos se afastava da costa de Masatierra, Selkirk ainda foi assolado pela dúvida e correu para a borda da água para chamar de volta os companheiros.
Forçados pelo capitão a ignorá-lo, os remadores continuaram em direcção ao “Cinque Ports”. Selkirk ficou a ver o navio desaparecer no horizonte.
A sua solidão duraria quatro anos e quatro meses.
A Sobrevivência Desesperante de Alexander Selkirk
Nesse tempo, alimentou-se de cabras que tinham escapado de outros barcos e colonizado a ilha. Bem como do seu leite, de frutas e de vegetais que os espanhóis tinham plantado anos antes.
A paisagem circundante era, à sua maneira, paradisíaca e proliferavam nascentes de água doce.
Apesar de beneficiar de um relativo bem-estar sobrevivente, Selkirk ansiou, desde o primeiro minuto, pela chegada de uma embarcação que o salvasse. Subia, várias vezes por dia, aos pontos mais altos da ilha onde ficava a perscrutar o horizonte.
Passaram-se meses sem que o Pacífico lhe trouxesse novidades.
Tratou, então, de se instalar com mais condições. Construiu uma cabana com troncos que forrou com peles de cabra. Mais tarde, mudou-se para o interior de uma gruta.
Onde quer que estivesse, Selkirk mantinha uma fogueira acesa no exterior, esperançado de que alguém avistasse o fumo.
A sua longa solidão só terminou no início de 1709 quando avistou o “Duque”, o navio que o levaria de volta à Grã-Bretanha.
O piloto deste navio era William Dampier, o ex-capitão do “Cinque Ports” que o havia votado àquele longo e cruel abandono.
Cumprido o regresso, a aventura de Alexander Selkirk correu as docas, tabernas e estalagens da velha Albion. Incluía trechos tão mágicos como danças e cantorias com cabras amestradas sob a luz da lua.
Tornou-se de tal forma famosa que inspirou Daniel Dafoe a escrever “As Incríveis e Surpreendentes Aventuras de Robinson Crusoe” com base numa personagem fictícia e passado nas Caraíbas.
Nos Passos do Marinheiro Abandonado
Ao jeito de homenagem, de maneira aproveitar o potencial turístico da relação entre Alexander Selkirk e Robinson Crusoe, este último seria adaptado como o nome actual da ilha. Foi o escolhido pelos habitantes para substituir Masatierra, usado, até então, por a ilha ser a mais próxima do continente sul-americano.
Deixamos para o fim o percurso doloroso que conduzia ao Miradouro de Selkirk.
Após dois quilómetros de curvas e contracurvas sempre íngremes, o caminho avança sob autênticos túneis de vegetação densa.
Logo depois, revela-nos o posto de vigia de Selkirk, celebrado na aresta elevada da montanha por uma placa de bronze explicativa.
Dali, cansados e fustigados pelo vento, observamos, deliciados, a beleza fascinante de Robinson Crusoe, reforçada pelas vertentes verdejantes dos montes em redor e pela língua de terra inóspita que se prolonga para sul das Tres Puntas.
No que a terra diz respeito, a vista terminava na distante Isla de Santa Clara, a menor das ilhas de Juan Fernández.
Santa Clara é a ilha “vizinha” que Alexander Selkirk se habituou a contemplar dia após dia.
Até à passagem do “Duke” a embarcação que o resgatou, mas que nunca resgatou Robinson Crusoe.