Um passeio demorado em redor da Vila Boa de Goiás revela a beleza pitoresca de certas bolsas de floresta e das roças.
As plantações de cana-de-açúcar alongam-se sem fim. A boiada pasta na vastidão das planícies gramadas e infestadas de cupinzeiros.
Os ipês brancos e rosados destacam-se dos prados, na proximidade de chácaras e sítios centenários a que descendentes de emigrantes europeus perdidos no tempo, há muito entregam o seu suor.
Numa delas, cruzamo-nos com um grupo de caipiras.
Seguem uma longa caravana de juntas de bois que, para nos darem passagem, se veem obrigados a desviar do caminho.
Um dos caipiras, ancião, abriga-se do sol tropical sob um chapéu de couro negro, de abas largas que condiz com as calças escuras.
Malgrado a protecção, tem a pele avermelhada e os olhos verdes embaciados pelos raios solares, como que esvaziados de emoção.
Mostra-se tão intimidado pelos forasteiros que prefere não interromper o corte de cana a que se dedicava.
Saúda-nos de volta, de forma fugidia. Permite que tiremos um retrato. Logo, regressa ao aconchego do afazer rural.
Cerrado de Goiás e a Complexidade dos seus Ecossistemas
Por ali, como por toda a vastidão do Planalto Central, os “oásis” de buritis assinalam os rios e lençóis de água subterrâneos, prolíficos neste Centro-Oeste retirado de Brasília e do Brasil.
Os fazendeiros sabem-no. Expandem e alinham as suas propriedades de acordo com os sagrados buritizais, quanto mais densos e extensos, melhor. O que não quer, todavia, dizer que a água doce seja escassa.
O Cerrado brasileiro é conhecido pelos cientistas como o “berço das águas” ou a caixa d’água do país. Renova-se sobre três grandes aquíferos, essenciais ao Brasil. O maior, o Guarani, situa-se no sul e sudoeste. Tem continuação sobre terras argentinas. Bastante menores, o Urucuia e o Bambui estão mais para leste.
Em qualquer dos casos, retêm-nos as raízes profundas da vegetação do Cerrado, no caso do da Serra Dourada, prolífica, diversificada e com nomes que, com frequência, ainda são os usados pelos indígenas da zona, ou deles derivam.
Dependendo das combinações da sua flora, a Serra Dourada pode abarcar distintos sub-Cerrados. O típico, o Cerradão ou as Veredas.
Estas, escondem água suficiente para irrigar as fantasmagóricas árvores de pau-papel e as distintas palmeiras que, a espaços, nos voltam a encantar.
Além dos buritis, proliferam as babaçus, bacuris, guarirobas, jussaras e outras, em espaços percorridos por onças, por tamanduás-bandeira, tatus ou até lobos-guarás, entre tantos outros.
À distância pode não parecer, mas, o bioma do cerrado está também pejado de árvores de fruta mais baixas e lenhosas com nomes também eles algo surreais, os araticuns, diversos araçás, jabuticabas, goiabas e marmelinhos, mangabas, cajás, gravatás entre tantas, tantas outras.
Encontramos e saboreamos parte delas nas casas de sucos e batidos da Vila Boa. Deliciamo-nos também com o pequi, ingrediente do arroz com pequi de Goiás, uma das especialidades da região.
Orlei, um dos guias de serviço aos visitantes da Vila Boa e do município de Mossâmedes, é filho de Goiás. Conhece um pouco de tudo, incluindo os recantos mais improváveis da Serra Dourada.
Com ele como cicerone, a bordo seu buggy amarelo condizente, deambulamos pela serrania.
A Cidade de Pedra da Serra Dourada
Metemo-nos no labirinto cinzento da Cidade de Pedra, uma de várias que coexistem neste centro-oeste e noutras áreas mais ou menos distantes do Brasil, como é o caso da dos Pireneus, arredores da vizinha cidade de Pirenópolis.
Lá desvendamos um reduto em que uma base de rocha foi erodida e esculpida pelos agentes naturais com tal critério que legou uma urbe de colunas recortadas, arcos e outras formações caprichosas.
Algumas, menos altas, assemelham-se a vultos.
A Sabotagem Tresloucada da Famosa Pedra Goiana
Outras ainda, colapsaram mas preservam um lugar de destaque no passado de Goiás. É o caso da Pedra Goiana.
Até 11 de Julho de 1965, um enorme monólito áspero, com peso estimado entre as 25 e as 50 toneladas, mantinha-se num equilíbrio natural prodigioso, sobre dois pés diminutos e a 1050 metros de altitude, com acesso complicado, algures entre Goiás e Mossâmedes.
Séria desafiadora da gravidade, a pedra atraía um bom número de visitantes, ávidos por a admirarem e, amiúde, se fazerem fotografar na sua base ou, em pose conquistadora, sobre o topo.
Este outro produto da erosão, único na Serra Dourada resistiu aos sucessivos milénios. Sem que alguém se atrevesse a prevê-lo aniquilou-o a estupidez de jovens de Goiás.
A escritora Ercília Macedo-Eckel era uma séria admiradora da “Pedra que Caiu do Céu”.
Reconhecia-lhe os poderes extraterrestres, imunes “às leis da mudança, da decrepitude e da morte”. Via nela um dos mais sérios simbolismos do deus indígena Goyá, que habitaria as vizinhanças da Serra Dourada.
E como assim homenageou a Pedra Goiana, também se dignou a pôr o dedo na ferida e a apontar a autoria de “uma gangue composta de nove playboys da cidade de Goiás:
Aluizio de Alencastro (Luz da Lua), Joel de Alencastro Veiga (Vequinho), José Alves (Zé Sancha), Sebastião Alves (Tião Sancha), Ailton da Silva Oliveira (“Dentista”), Sebastião Bento de Morais (Bentinho), Nelson Curado Filho (Curê). Luiz Nascimento (Lulu) e Eugênio Brito Jardim (Tatá).
Apesar da abertura, à data, “de um inquérito rigoroso”, a maior parte do grupo tinha familiares ou amigos influentes na cidade. Nenhum deles sofreu punição pelo crime.
Vários tiveram, mais tarde, profissões e cargos de relevo na comunidade de Goiás. Um, foi professor universitário, director de faculdade e de fundação. Um outro, foi servidor da Assembleia Legislativa de Tocantins.
Malgrado as várias posteriores teorizações, a sua atrocidade foi resultado de um desejo de grupo, idiota e possivelmente acachaçado, de protagonismo e notoriedade.
E a Narrativa de Incredulidade da Escritora Ercília Macedo-Eckel
Ercília Macedo-Eckel vai ao ponto de narrar um aviso desafiador que o grupo fez à passagem por um militar: “ Olhe, soldado Miguel, não vá dizer que não avisamos. Estamos indo destronar a Pedra Goiana, de aproximadamente 30 toneladas.
Queremos entrar na História de Goiás, através desse feito original e inimaginável. A ex-capital já não aguenta mais os quebra-quebras promovidos por nós, sob efeito de cachaça ou não…
“Brevemente seremos manchete em Goiás e no Brasil.” “ O Soldado Miguel nem ligou, achou um disparate, conversa de doidos, de bêbados quebradores de baile.”
E, no entanto, o grupo subiu a bordo da pick-up de Alaor Barros Curado, munido de um macaco hidráulico, talvez também de dinamite.
Tal como haviam prometido, em breves instantes, fizeram rolar encosta abaixo e danificaram o monólito que a Natureza tinha demorado mais de 700 milhões de anos a esculpir.
Insatisfeitos com a réplica que ergueram em Goiânia, elementos da Universidade Federal de Goiás e o governo do Estado uniram recentemente esforços para reporem a pedra original de volta no seu lugar.
Até agora, sem resultados.
A Imensidão do Cerrado da Serra Dourada
Sem a podermos admirar, entregamo-nos, de mãos dadas com o mistério, ao restante cenário inverosímil, selvagem e agreste.
Uns nenhures rochosos em que, malgrado o imaginário citadino, qualquer forasteiro incauto se perde em três tempos e se vê em apuros.
Numa primeira impressão imperceptíveis, refrescam-no riachos e lagoas cristalinas que, durante a longa época das chuvas, de Outubro a Março, geram quedas d’água curtas.
Ainda e sempre a bordo do buggy poderoso de Orlei, subimos ao miradouro Urubu-Rei.
Ao entardecer, do cimo panorâmico, percebemos o quão óbvio se torna o nome da serra, com os seus retalhos verdes, amarelados e áureos dispostos como uma manta de retalhos.
Do miradouro do Urubu-Rei serpenteamos, aos solavancos, rumo ao Vale da Areia, um domínio de solo alvo e granulado escondido no meio do planalto.
Na sua iminência, Orlei esclarece-nos com indisfarçável orgulho: “São estas areias e pedras que a Goiandira usava nas pinturas dela.” conta-nos enquanto recolhe amostras do solo. (…)
“Ela vinha de vez em quando à serra procurá-las, nos mesmos locais onde os bandeirantes prospectavam o ouro, como fizeram também em Pirenópolis e tantas outras partes.” (…) “Permanece no seu atelier uma colecção de mais de 500 tons de areia e pigmentos da Serra Dourada.”
Goiandira Ayres do Couto (1915-2011) foi uma artista plástica conterrânea, prima da também já falecida poetisa Cora Coralina.
Mesmo após os seus 90 anos, ainda com muita vitalidade, Goiandira continuou a retratar os casarões e paisagens vilaboenses.
Para tal, criou uma técnica de pintura própria que patenteou no Rio de Janeiro e que lhe granjeou o reconhecimento internacional: riscava o desenho na tela, aplicava cola e salpicava areia nos dedos.
Quadros da sua autoria decoram a sede da ONU. Estão patentes em museus e integram colecções de grandes personalidades brasileiras e estrangeiras de dezenas de países.
Para desgosto de Orlei, boa parte dessas personalidades – como tantos outros possíveis visitantes da região – ainda desconhecem os motivos retratados pela autora.
O reconhecimento adiado é algo que não perturba demasiado a região.
Como o tempo se esqueceu de Goiás e da Serra Dourada, a Goiás e à Serra Dourada já não custa esperar.