A bandeira da Arménia é formada por três listas de distintas cores. O vermelho no topo evoca o sangue dos mais de um milhão de arménios mortos no genocídio de 1915-17.
O laranja no fundo significa a coragem dos arménios, diz-se que também a fertilidade do solo do país. No meio, o azul traduz o visual mais comum do firmamento acima da nação.
Os dias sucediam-se. Todos eles de céu azulão de fio a pavio, tão solarengos quanto se possa imaginar mas frígidos a condizer com o início do Inverno em que por lá nos encontrávamos.
Deixamos a capital Erevan por volta das 8h30 da manhã apontados a nordeste. Depois de uma passagem estratégica por Dilijan e de uma visita incontornável ao velho mosteiro de Goshavank, flectimos para sul.
Pouco depois de cruzarmos o limiar invisível que separa as províncias de Tavush e de Gegharkunik, passamos por Tsovagyugh e atingimos o recanto setentrional e mais estreito de Sevana lich, o lago supremo do Cáucaso.
Os Pescadores e Peixeiros Empreendedores de Sevan
De um lado e do outro da estrada sucedem-se bancas que vendem a pesca do dia. Várias delas têm os donos ou empregados à porta a exibirem exemplares de grande porte de trutas pescadas no lago com destaque para a truta de Sevan (as ishkhan), uma espécie endémica.
Só que o vento sopra forte. Fartos da inclemência gélida do vendaval, certos peixeiros decidiram colocar manequins no seu lugar. Alguns dos bonecos trajam fatos. Outros, mantêm os braços abertos a segurar peixes. Quando o Natal se aproxima, surgem uns tantos com a indumentária escarlate de Pai Natal.
Há muito que os pescadores da zona aproveitam a abundância de peixe no lago e de condutores de passagem nas estradas M4 e M10 para ganharem a vida.
Com frequência, sobrepescam. O governo arménio detecta-o e impõe períodos de proibição. Os pescadores protestam e fazem de tudo para furar os banimentos. Nos últimos tempos, também desejam que as autoridades arménias tivessem prevenido distintos danos causados ao lago.
O Olho Azul e a Falta de Visão das Autoridades Soviéticas e Arménias
No tempo da Grande Arménia, quando boa parte da actual Turquia oriental era território arménio, o “mar arménio” era considerado um dos olhos azuis da nação. O outro era o Lago Van. Máximo Gorki descreveu-o como “um pedaço de céu caído sobre a Terra entre montanhas”.
Ao perder a maior parte do seu território para os turcos – Monte Ararat incluído – a Arménia viu-se sem o vasto litoral do Mar Negro e sem acesso ao mar. A importância de Sevan aumentou sobremaneira, como se intensificou o abuso do lago.
Durante o período Soviético, à imagem do que sucedeu com o mar hoje uzbeque de Aral, o governo de Estaline aprovou um projecto megalómano da autoria de um engenheiro arménio de nome Sukias Manasserian.
Manasserian propôs drenar o lago em 50 dos 90 metros da sua profundidade e o emprego dessa imensidão aquática na irrigação agrícola da planície de Ararat e na geração de energia hidroeléctrica, contando com a retenção do rio Hrazdan que procede dos fundos norte do rio por onde andávamos, em seis distintas barragens.
Fonte Inesgotável de Rega e a Praia da Nação Arménia
Por essa altura, além do ganha-pão, Sevan era também o polo recreio-balnear da nação. Durante o estio, as temperaturas máximas na Arménia mantêm-se meses a fio bem acima dos 30º.
O lago atraía uma multidão de veraneantes pouco ou nada conscientes das consequências dos projectos de Manasserian e ansiosos de descomprimirem nas margens e águas de Sevan. Foram erguidos mais e mais complexos hoteleiros. A fama do lago não tardou a atrair visitantes dos países vizinhos compatíveis com a Arménia.
A partir de 1949, os inevitáveis malefícios da engenharia soviética fizeram-se sentir. A redução da água e a acção humana em geral provocaram uma progressiva eutrofização do lago e uma drástica diminuição da diversidade biológica.
Em 1964, as autoridades soviéticas aperceberam-se de que, mantendo aquele rumo, Sevan terminaria como o Mar de Aral.
Resoluções Algo Tardias e Titubeantes
Até 1981, foi decidido o desvio do curso de dois rios adicionais para o lago, mesmo se já eram quase trinta os rios e riachos que o abasteciam.
Devido ao conflito arménio-azeri por Nagorno-Karabakh e ao tremor de terra destrutivo de 1988, o último dos túneis que assegurariam o desvio do rio Vorotan só foi terminado em 2004. Daí em diante, o nível do lago voltou a subir mas não da forma consistente que estava prevista.
Outros problemas ecológicos estavam já na calha mas Sevan preservou sempre parte da sua monumentalidade natural: 1900 metros acima do nível do mar, 5000 km2, o equivalente a 1/6 da Arménia dos nossos dias. Continuámos a explorar o que nos foi possível.
A Estátua e a Velha Lenda de Akhtamar
Com Tsovagyugh já para trás, damos de caras com um monumento insólito ao orgulho e à nacionalidade arménia: a estátua de Akhtamar, evocativa de Tamar, uma princesa arménia que vivia na ilha de Akhtamar do lago Van.
Reza a lenda nacional arménia que Tamar se apaixonou por um camponês que, por ela atraído, nadava todas as noites até à ilha, orientado por uma luz que a princesa lhe acendia.
Numa determinada noite, no entanto, o pai de Tamar descobriu o namorico e decidiu terminar com a relação de ambos.
Esperou que a filha acendesse a luz e apagou-a. Sem a referência, o rapaz nadou à toa até à morte, antecedida por um grito de Akh Tamar (Oh Tamar!).
Após os turcos se terem apoderado do lago Van e da ilha de Tamar, os Arménios, decidiram erguer uma estátua em honra da lenda. E fizeram-no à beira do lago que ainda preservam. Encontramo-la destacada no cimo de um pedestal de rocha, como seria de esperar, a figura da princesa segura a luz que orientava o seu amado.
O Recanto Ribeirinho e Religioso de Sevanavank
Passam-se mais alguns minutos. Chegamos à península de Sevanavank, famosa por acolher um dos incontáveis mosteiros seculares arménios, também ele à mercê das megalómanas empreitadas soviéticas.
Na origem, o duo de igrejas Surp Arakelots e Surp Astvatsatsin que o compõem o mosteiro foi erguido na margem do que era uma pequena ilha.
Com a drenagem artificial do lago em cerca de 20 metros, essa ilha transformou-se na península que então partilhámos com dezenas de crentes arménios comovidos por aquela interação lacustre com Deus.
No exterior das igrejas, tem lugar uma mini-feira de artigos religiosos e recordações.
Uma senhora enrolada num casaco volumoso de malha cinzenta e branca impinge terços. Ali por perto, dois outros arménios empreendedores, mantêm quatro ou cinco pombas brancas numa gaiola e ganham alguns drams providenciais a fotografarem visitantes do lago com o adorno pacificador das aves.
Damos mais uma volta, sempre batidos por rajadas de vento que agitam a atmosfera local, entre o azul quase petróleo do lago e o celeste acima.
Do Repasto Arménio à Longínqua Noratus
No regresso, instalamo-nos no restaurante de um hotel da zona e sujeitamo-nos às sucessivas delícias da gastronomia arménia. Temos a companhia de várias famílias de iranianos que cruzam com frequência a fronteira de Agarak – Norduz à descoberta do vizinho cristão a norte.
Findo o repasto, regressamos à carrinha em que viajávamos conduzidos por Vladimir, guiados por Cristina Kyureghyan. Vladimir prossegue pela costa sudoeste do lago, por uma sucessão de meandros uns mais afastados que outros da água doce.
Passamos por casas de férias, por infraestruturas hoteleiras encerradas para a época baixa e por outras que subsistem como fantasmas arquitectónicos entregues ao abandono e à erosão.
Cinquenta e cinco quilómetros depois, vislumbramos um mar de casas amareladas quase todas com telhados de zinco azul.
Estávamos à entrada de Noratus, uma povoação em que vivem quase sete mil almas mas mais conhecida pela excentricidade em que jazem os seus mortos.
Serpenteamos pelas ruelas da grande aldeia com o destino já marcado. Vladimir e Cristina tinham visitado Noratus por inúmeras vezes. O motivo era sempre o mesmo: o velho cemitério arménio da povoação.
O Cemitério Majestoso de Noratus
Entramos no precinto com a tarde a caminhar para o fim. O sol, não tarda poente, alaranjava uma imensidão de campas e túmulos esculpidos segundo os desejos prévios dos defuntos ou das famílias e de khachkares, pedras-cruz fúnebres talhadas com incrível minúcia e arte com rosetas, entrelaçados e motivos botânicos.
O cemitério medieval de Noratus abriga, hoje, o maior agrupamento actual de khachkares de toda a Arménia. Nem sempre assim foi. Os arménios reclamam que tal se deve aos seus arqui-inimigos azeris terem destruído centenas deles em Old Julfa, na província de Nakhichevan.
Alguns dos túmulos de Noratus foram coroados por bustos fidedignos dos falecidos e sepultados. Outros, são familiares, preservam um óbvio perfil soviético. Agregam as imagens de pais, maridos e filhos – vários deles perecidos durante a 2ª Guerra Mundial – impressas a preto e branco em grandes lápides-ardósia.
Mais depressa do que contávamos, o término do ocaso anunciou a noite e levou-nos a abandonar o cemitério. Invertemos o caminho à beira-lago e apontamos de volta à capital Erevan com o último estertor do poente a dourar as mesmas praias de cascalho e os resorts nado-mortos por que tínhamos passado horas antes.
A Ascendência Balnear de Batumi e Sochi
Durante a era Soviética, Sevan era um dos destinos balneares favoritos não só dos arménios, também dos georgianos e até dos Russos mais abastados.
Nos últimos tempos, a estância de Batumi, no litoral georgiano do Mar Negro e Sochi, esta situada umas centenas de quilómetros para norte, no Krai russo de Krasnodar têm-se provado rivais de uma outra classe.
O nível da água do lago Sevan até pode regressar aos poucos ao original. A sua qualidade, deixa muito a desejar.
Em Junho de 2019, a BBC revelou ao mundo que uma maré de algas verdes alimentadas por uma combinação de nitrogénio e fósforo com origem em fertilizantes, em áreas queimadas pelos incêndios de Verão e em efluentes domiciliares tomava conta do lago. As algas consumiam o oxigénio minguante. E disseminavam toxinas que tornavam o lago não só estéril como nocivo.
Organizações ambientais arménias reclamam que, tal como aconteceu com o mar de Aral e o lago Baikal, as NGOs, agências das Nações Unidas e até doadores particulares devem intensificar esforços para forçar Erevan a tomar medidas drásticas.
A Arménia saiu há apenas alguns meses e de forma exemplar de um conflito político que podia ter descambado em guerra civil. Resta saber se a relativa estabilidade democrática em que agora navega lhe permitirá salvar o último dos seus “olhos azuis”.