Sucessivas ladeiras conduzem-nos da enseada abrigada pela vertente em que se situa a capital Torshavn até às terras altas entre os fiordes de Vagá e de Kaldbak.
Enquanto ascende, a estrada Oyggjarvegur sulca um prado imenso que o vento agita, a que o sol lateral reforça o verde. Três ou quatro picos afiados destacam-se acima de uma linha de cristas sombrias.
Submissos à frente de nuvens escuras que os sobrevoam a grande velocidade.
A Oyggjarvegur faz-nos mergulhar na penumbra. Uns poucos quilómetros para diante, voltamos a avistar Kaldbak, o seu fundo sinuoso, estendido até à entrada longínqua do fiorde.
De uma rara imponência geológica, o panorama a partir da meia-encosta da montanha de Sornfelli (749m) prova-se de arrepiar.
O Vale de Mjorkaladur e a Prisão de Todos os Sonhos
Mais que pela posição estratégica acima dos dois fiordes que pelos cenários, a Dinamarca instalou, ali, um edifício militar complementado com estação de radar também ao serviço da NATO. Com o tempo, a estrutura perdeu relevância. Em 2010, as chaves foram entregues à edilidade da capital faroesa.
Por essa altura, Torshavn abrigava o único estabelecimento prisional do arquipélago. As autoridades perceberam, todavia, que ganhava bolor em excesso. Apreensivos com a saúde dos detidos, resolveram desactivá-la. Em vez, passarem a usar o edifício vago do ex-ISCOMFAROES.
Com o tempo, os faroeses e até forasteiros de visita, aperceberam-se da localização privilegiada em que os reclusos cumpriam as penas. O estabelecimento conquistou a fama de prisão com melhor vista à face da Terra.
Encostamos ao lado. Mesmo sem conhecermos boa parte do planeta azul, inclinamo-nos a concordar. Compreendemos o quão especial era a tal pildra inesperada de Sornfelli, mais conhecida por Mjorkaladur, termo traduzível por Vale do Nevoeiro.
Não vemos uma única vedação, nem torres de vigia ou arame farpado. De acordo com a tradição histórica e arquitectónica das ilhas Faroé, os telhados são feitos de turfa, cobertos por uma relva ensopada pela humidade que lhes dá um visual de “Jardim das Delícias” hobbitiano.
O Lago dos Cisnes Territoriais de Mjáuvotn
Assim que conseguimos, libertamo-nos do deslumbre do lugar e prosseguimos. Entroncamos noutra estrada principal, a Frammi í Dal. Percorremo-la, em modo contemplativo quando uns bons metros abaixo do plano do asfalto, vislumbramos dois lagos próximos.
Salpicavam o primeiro vários cisnes brancos que a ondulação embalava ao sabor do vento. Aproximamo-nos da margem do Mjáuvotn. Os cisnes vêm investigar o que dali queremos.
Sabedores de como são aves territoriais e agressivas, ao primeiro esboço de investida, despachamos umas derradeiras fotos e batemos em retirada.
Num ápice, chegamos à beira do lago vizinho e bastante maior, o Leyna, cuja água alimenta o corpo do Mjáuvotn.
Passamos por Kvivik. Desta povoação, continuamos a ziguezaguear para norte, às tantas, já pela via Landsvegur Stykkid.
Tínhamos como primeiro objectivo do dia, Vestmanna, localidade e região famosa pelos seus penhascos abruptos e pelas colónias, de tempos a tempos, populosas de papagaios-do-mar que os habitam.
Os Penhascos de Vestmanna e os seus Papagaios-do-Mar Ausentes
Segue-se nova descida abrupta e sinuosa para outra das baías profundas de Streymoy. Damos entrada nas instalações da agência encarregada do tour, entusiasmados pela incursão que se seguia.
Ao caminharmos para o ponto de embarque, no entanto, uma piadola lançada por um dos passageiros do tour recém-chegado, deixa-nos de pé atrás: “preparem-se que vão ver imensos! “grita o homem de sorriso amarelo nos lábios. “Uns dez mil. Ou mais!” acrescenta.
Colocamos todos capacetes. O barco zarpa. O casario de Vestmanna fica para trás.
Avançamos rumo ao fiorde de Vágar, com passagem por viveiros de peixe, daqueles tanques anfíbios cada vez mais abundantes nas Faroé e restantes países nórdicos. Navegamos na companhia de ovelhas ensopadas, de distintas cores que pastavam sobre as margens íngremes.
Aproximamo-nos da boca do fiorde e do Atlântico Norte. A ondulação acentua-se. Obriga o timoneiro a navegar bem junto às falésias rugosas de Streymoy. Passamos sob arcos naturais.
Logo, entramos numa gruta na base de uma enorme agulha de pedra que rasgava a névoa acima.
Segundo apuramos, era naquele habitat extremo que os papagaios-do-mar se reuniam em grande número. Por estarmos fora de época, ou outra razão que a agência se furtou a informar, papagaios-do-mar ou outras aves dignas de registo, nem vê-los.
O tour tinha como terminologia “Vestmanna Birdcliffs” e um preço bem alto, como tem quase tudo nestas paragens remotas e nórdicas. Não obstante, revelou aos passageiros apenas e só o litoral abrupto batido pelo mar.
Uma chuva árctica geradora de arco-íris ensopa o regresso e enregela-nos. Por fim, desembarcados, recuperamos o equilíbrio levado pela ondulação, compramos chocolate quente e retomamos o périplo de Streymoy.
Fiorde Acima sempre com Eysturoy à Vista
O relevo intransponível a leste obriga-nos a retroceder para junto das margens do lago dos cisnes que tínhamos visitado. Dali, cruzamos para sua costa oriental, a virada para outra ilha vizinha. Já não Vágar, agora, Eysturoy.
De baixo para cima, no mapa, sucedem-se povoados com nomes terminados em vík: Hósvík, Hvalvík, Nesvík, Haldarsvík e Tjornuvík.
Vík significa, em faroês, islandês e dialectos escandinavos, enseada. Ora, as enseadas, abrigadas do vento e das tempestades marinhas sempre se provaram os lugares propícios à vida no arquipélago.
Das várias povoações listadas, tínhamos guardado tempo sobretudo para as duas últimas, as mais setentrionais. Algumas dezenas quilómetros depois, damos connosco à entrada de Haldarsvík.
Haldarsvik e a sua Igreja Octogonal
Achamos a sua igreja branca, a única octogonal das Faroé, erguida em 1856 e com um dos altares mais peculiares do arquipélago e redondezas, dotado de uma Última Ceia, em que as faces dos apóstolos surgem substituídas pelas de figuras públicas da nação.
Subimos uma escadaria. Do topo, desvendamos uma vista sobre a igreja, o casario multicolor dos cento e setenta habitantes, ajustado ao fundo de U da enseada em que uma queda d’água volumosa se precipitava sem cerimónias.
E o porto, parcialmente protegido por um pontão que a erva estival forrava de verde. Junta-se a nós um casal. Enquanto perscrutam a vista, analisamos um enigmático monumento metálico.
Os vários nomes inscritos sobre placas incrustadas na erva, ajudam-nos a concluir que se tratava de um memorial aos pescadores e marinheiros da povoação perdidos no mar ao largo.
Tendo em conta a população diminuta de Haldarsvík, formavam um número impressionante de vítimas que nos elucida como, ao longo da sua história, os faroeses sempre se viram forçados a aventurar-se no oceano para sobreviverem.
E a frequência com que o Atlântico do Norte traiçoeiro colheu as suas vidas.
Nesse momento, outra embarcação deixava o porto, primeiro para o fiorde que separava Streymoy de Eysturoy. Logo, apontada a norte, na direcção da baía ainda mais cavada de Tjornuvík.
Ainda que por terra, ao longo da Bakkavegur, seguimos-lhe o rumo. A via conduz-nos a um beco geológico sem aparente saída.
À enseada mais profunda e encerrada por encostas que até então tínhamos visto, com um casario aconchegado a um recanto da praia, sobrevoado por faixas de névoa intrusa.
Tjornuvik e a sua Deslumbrante Enseada Profunda
Admiramos o lugar como se fosse o primeiro que víamos nas Faroé. Quando, por fim, recuperamos do encanto, encetamos a descida que ao povoado conduzia.
Entregues à ladeira, apercebemo-nos da presença de várias ovelhas, tão felpudas que mais pareciam bolas ovinas, a pastarem num equilíbrio desafiante sobre a ravina ervada. Detemos o carro.
Empoleiramo-nos no rail de ferro e, para inquietude dos animais, fotografamo-los de pouca distância. Estamos neste entretém quando um morador de Tjornuvík por nós passa, numa desaprovação contida.
Nos dias que dedicámos a viajar pelas Faroé, fomos alertados por mais que uma vez, sobre o quanto desagradava aos criadores de gado que os forasteiros incomodassem os seus animais.
Não este faroes, mas outro, queixou-se da indesejada intrusão do turismo: “São vocês. E mais umas centenas durante o Verão todo! Vocês têm, por acaso, a ideia da quantidade de erva que as ovelhas deixam de comer e quanto peso perdem por as andarem sempre a chatear?
Pois. Não sabem. Mas nós sabemos. O prejuízo sai-nos do bolso.”
Completamos o que faltava do trajecto. Já entre o casario, procuramos o início de um trilho que conduzia a uma queda d’água que víamos fluir desde a entrada na enseada.
Os Vultos Vulcânicos do Gigante e da Bruxa
Conquistada a nova meia-encosta, admiramos o castro de telhados em A, preparados para os nevões do longo inverno, por aquela altura, perdidos num fojo ervado que o mar, ali, liso, na iminência da maré-vazia, banhava em câmara lenta.
Sobre o areal negro, um casal enfiava-se em fatos de mergulho completos. Preparavam-se para se banhar como a frigidez do Árctico lhes permitia.
Observamo-los caminharem mar raso adentro, com as crianças ao colo.
Vemo-los deterem-se a olharem, como se hipnotizados, para dois rochedos negros que se destacavam do horizonte, sob o feitiço da Bruxa e do Gigante, um duo petrificado aos pés de Eysturoy.
Essa é já outra ilha que não Streymoy. E outra estória.