Quatro horas depois de termos deixado Bissau, o condutor da velha carrinha Peugeot sinaliza-nos a beira de estrada mais próxima de Tabatô.
Saímos para um lugarejo percorrido por porcos, galinhas e cabras deambulantes.
Como é também habitual por estas partes, decoram-no sacas de carvão vegetal.
Mulheres em modo de cabeleireiro mutual indicam-nos o trilho certo. Seguimo-lo, em plena floresta de cajueiros, sustento principal de quase todas as aldeias da região.
Junta-se a nós um outro grupo. São moradoras de Tabatô. Dirigem-se para a sua tabanca.
Algumas equilibram cargas sobre a cabeça. Nem isso, nem o pouco português que falam nos impede de estabelecermos uma comunicação elementar.
Passado um campo pelado de futebol, damos com o casario do destino final.
Na ausência temporária de Demba, com quem tínhamos combinado a visita à tabanca, recebe-nos Fili, um outro dos irmãos Djabaté.
São músicos prodigiosos da aldeia, herdeiros do apelido comum que define os “djébatés”, “os construtores”, neste caso, dos balafons que a comunidade há muito aperfeiçoa e toca.
Fili mostra-nos uma divisão de uma das casas em que os guardam.
E, no exterior, onde queimavam e secavam a madeira que, sobre a base de cabaças, produz o som característico de xilofone africano.
O Cicerone Demba e um Périplo Inicial por Tabatô
Demba aparece. Assume o papel de anfitrião e a responsabilidade de nos apresentar aos anciãos e líderes da comunidade.
Encontramo-los à sombra de uma árvore, em frente à mesquita rosada da tabanca. As jilabas e kufis brancas que trajam confirmam a fé muçulmana da tabanca.
Demba instala-nos frente a frente. Assume-se tradutor.
Ajuda-nos a explicar o que fazíamos e como poderíamos ajudar a promover a arte secular de Tabatô. Vemo-nos aprovados.
Demba enceta um périplo pela aldeia. Começa pela casa das madrastas, as mulheres que dele tinham cuidado após a morte da mãe, quando ainda era criança.
Das suas madrastas, passamos aos outros irmãos, do mesmo pai Aladjer Imutar Djabaté (um dos líderes que nos havia validado) mas de mães diferentes.
A Grande Família Djabaté
De uma assentada, conhecemos Bubacar e Mutaro. Dos irmãos, vemos no jovem Mutaro, o mais parecido com o pai Aladjer. É ele quem nos hospeda.
Já em termos de geografia de vivência, Bubacar revela-se o mais familiar. Com o filho mais novo ao colo, fala-nos da sua outra existência, a de Lisboa. Da vida que leva por Arroios, Martim Moniz e a do Castelo de São Jorge, onde vende artesanato, e complementa o dinheiro dos seus espectáculos musicais.
Em Lisboa, mas não só, Bubacar Djabaté é apresentado com frequência como mestre do balafom. À imagem de outro nome famoso gerado pela tabanca e morador de Lisboa, o também cantor Kimi Djabaté.
Já Mutaro, nunca tinha ido a Portugal. Ainda assim, surpreende-nos com um português quase-perfeito que lhe elogiamos.
À hora do calor, o seu alpendre garante sombra ao convívio com os irmãos e outros nativos de Tabatô de distintas gerações, muitos deles, crianças curiosas.
Demba reaparece.
Entregamo-nos a um almoço tradicional muçulmano, uma grande dose de arroz com galinha, regada com molho de quiabo picante. Partilhamos o repasto com os irmãos e vários outros comensais.
Eles, de Tabatô, comem à mão. Nós, forasteiros, com colheres que, por respeito ao que estávamos habituados, nos permitem usar.
Finda a refeição, Demba convoca-nos para nova conferência com os anciãos. Confirmamos a nossa contribuição monetária para a visita e a exibição com que a tabanca nos prendaria.
Escolhemos o lugar que nos parecia indicado ao trabalho fotográfico e vídeo que íamos levar a cabo. Optamos pelo espaço entre a árvore mangueira e a mesquita, o mesmo da reunião inicial.
Com o essencial resolvido, os anciãos, Demba e os irmãos, convocam os djidius(músicos) da aldeia.
Num ápice, estendem um grande tapete vermelho pejado de motivos africanos.
Um biombo de vime estabelece um fundo à orquestra. Nesse espaço, organizam-se os balafonistas, os tocadores de tambores e jambés e até um de corá.
Iaia Djabaté, irmão de Aladjer Imutar, dita um derradeiro ajustamento. No mesmo ápice, os músicos afinam os instrumentos e dão por completo um breve ensaio.
A Actuação de Arrepiar da Tabanca em Peso
Demba, enuncia-nos que o que se segue é algo com que, para nosso contentamento, a tabanca nos prenda. Os djidius de Tabatô começam a tocar.
E, nós, a filmá-los.
No centro, ladeados de crianças que os imitam, Fili e Mutaro, os balafonistas destacados, geram ritmos e melodias acelerados que os tocadores de tambores e ferrinhos acompanham.
As mulheres juntam-lhes as suas vozes.
Queta e Fatou, fazem-nas propagar de megafones em riste, nos mesmos tons sinuosos a que as dançarinas e coros ondulam os seus corpos e os longos vestidos coloridos, seguidas pelo, agora batucador, Iaia Djabaté.
Ainda nos arrepiamos com a genuinidade e intensidade da actuação quando Baidi, o mais exuberante dos tocadores de jambé, de traje amarelo e apito na boca, assume um protagonismo frenético e enriquece a já incrível diversidade de sons e de visuais.
Nesse êxtase, completam-se quatro temas.
Bubacar, que participara como tocador de tambor, traduz as palavras de cerimónia de Imutar Djabaté.
Encerrada a actuação, aos poucos, os djidius voltam aos seus lares e os trajes do dia.
Demba, recupera o périplo incompleto.
Passamos pela bomba de água, em que diversas raparigas da tabanca enchem alguidares e convivem.
Também pelo campo de futebol, onde homens e rapazes disputam uma partida poeirenta.
Em jeito de dever protocolar, Demba apresenta-nos ainda ao chefe fula de Tabatô e o sector fula da tabanca, em termos políticos, o predominante.
A Migração dos Mandingas Djidius
É algo que só o contexto histórico destas partes da África Ocidental explica.
Recuemos a 1866.
Uma vaga de coligação e imposição de estados islâmicos fula fez derrocar o Império de Kaabu (Gabu) de etnia mandinga.
Entre outras, essa coligação tomou a região de Boké, a sul da Guiné Bissau (hoje, parte da Guiné Conacri).
Ora, até então, aí estabilizados e prolíficos, o subgrupo mandinga djidiu viu-se forçado a encontrar novas paragens.
Viajaram para norte. Diz-se que se detiveram em Koiada, em Sintchan Ocko, sobre a fronteira actual entre as Guinés. E em Gabu, já na Guiné Bissau, destinados a Geba, a oeste da Bafatá natal de Amílcar Cabral.
Tal como nos explica Demba, “durante esse seu percurso, o régulo fula local (Mamadu Alfa) reconheceu o valor da presença dos djidius. Concedeu-lhes a terra de que precisavam para assentarem na actual Tabatô”.
Com os djidius de Boké, chegou o balafom, o instrumento que tocavam a mando de quem requeria a sua animação e que lhes servia de sustento.
Uma Arte que os Tempos e a Guiné Bissau tornaram menos Rentável
Faziam-no, amiúde, em matrimónios de gente abastada e poderosa, em que cantavam e contavam a sua história, em que acompanhavam os noivos até à sua casa de casados.
Essas actuações rendiam-lhes um bom proveito, uma, duas vacas do régulo e contribuições adicionais das famílias e participantes.
Mais tarde, foram vários os djabatés que difundiram a arte de Tabatô em redor do Mundo.
Em 1940, Bunun Ka Djabaté exibiu os seus dotes de balafonista na Exposição Colonial de Lisboa. Tcherno Djabaté, na sempre artística China e na Coreia.
Com o passar dos anos, exponenciado pelo caos pós-colonial da Guiné Bissau, as oportunidades e recompensas dos djidius diminuíram.
Noutra era, músicos prodigiosos a tempo inteiro, os mandingas de Tabatô têm agora que assegurar cultivos e que criar gado.
Essa noção, ajuda-nos a compreender a importância da contribuição financeira que deixamos.
Convívio sob o Céu Estrelado da Guiné Bissau
Cai a noite.
Jantamos na mesma modalidade partilhada.
Logo, recuperamos o convívio no alpendre de Mutaro, com os mesmos irmãos, com Fanta e Satan, as filhas gémeas de Bubacar, com outros adolescentes e crianças, cada vez mais à vontade connosco e divertidos.
Sob o firmamento salpicado de outras estrelas, Mutaro, Bubacar e Demba tocam guitarra e cantam.
As crianças acompanham-nos, afinadas, numa exibição deslumbrante de harmonia intergeracional que, na manhã seguinte, de volta à casa de Fili, vemos replicada.
Os Super Kamarimba e Participações Internacionais Memoráveis
Ali, Demba, Mutaro, Fili, Baidi, outros Djabatés da mesma geração e seus descendentes tocam, cantam e dançam sob outro dos nomes musicais de Tabatô, a banda familiar Super Kamarimba.
Aplaudimo-los e agradecemos o empenho que nos dedicavam, sendo, como éramos, tão ínfima assistência.
Chega a hora de nos despedirmos. Demba leva-nos à casa do pai Aladjer Imutar. Este, senta-se num sofá cor-de-rosa volumoso. Passamos-lhe o pagamento estipulado.
O ancião elogia o modo como tínhamos aparecido, sozinhos, a caminharmos aldeia adentro, em vez de guiados, como é usual. Relembra o quanto a recuperação da importância de Tabatô dependia de visitas como a nossa.
Nessa mesma lógica, narra-nos glórias de outros tempos.
O ano de 1982 em que o falecido presidente Nino Vieira convidou a tabanca a representar a Guiné Bissau num festival internacional na Coreia do Sul. “Ficámos em segundo lugar, atrás da Tanzânia. E só levámos cinco elementos, sublinha.”
“Estamos certos de que, se se tivessem exibido com mais músicos e dançarinas, com a beleza a que tínhamos assistido e filmado, que teriam ganho.” respondemos-lhe.
Como nós, o líder dos músicos sabia ser essa a verdade.
E que a sua talentosa Tabatô merecia todo apoio que, na vulnerável e instável Guiné Bissau, lhe tem faltado.
COMO IR:
Voe com a Euroatlantic , Lisboa-Bissau e Bissau-Lisboa, às sextas-feiras.
Contacto para Visitas a Tabatô
Demba Djabaté: Telm. e Whats App: +245 6825243