Inesperado, o casario é o que mais se destaca no panorama desvendado pelas alturas ventosas da Serra da Malagueta (1063 m).
Espraia-se no fundo de uma planura quase nivelada com o mar que há muito não encontrávamos, em Santiago, a maior ilha de Cabo Verde.
Surge no fim de uma longa recta, ajustado a uma angra que um promontório protege do embalo do Atlântico. O promontório é conhecido por Ponta Preta.
Sob um feixe intermitente de luz, vemo-lo mais ocre que escuro, sobranceiro face à alvura da povoação.
Descemos, por sucessivos ziguezagues, na direcção do Contador, para a gentileza geológica do Chão Bom em que um dos vários sulcos fluviais vindos das alturas faz brotar vegetação.
A mesma recta que avistámos à distância, revela-nos os muros e vedações da antiga Colónia Penal do Tarrafal. Haveríamos de lá voltar. Antes disso, prosseguimos rumo à vila piscatória que lhe emprestou o nome.
Passamos a estrada perpendicular de Colonato. O domínio prisional dá lugar a uma grelha com perfil suburbano, já parte do concelho do Tarrafal, o mais setentrional de Santiago, onde habitam quase dezoito mil cabo-verdianos. A maioria deles concentra-se em Chão Bom.
Na vila do Tarrafal, contam-se menos de sete mil.
O Povoamento Colonial da Zona do Tarrafal
Estima-se que o assentamento neste norte inóspito de Santiago date do século XVII, pelo menos dois séculos depois do da Ribeira Grande, a actual Cidade Velha.
Em 1747, já um pequeno povoado surgia nos mapas de navegadores e exploradores, até estrangeiros, como foi o caso do criado pelo geógrafo francês Jacques-Nicolas Bellin que o marcou como Terrafal.
Se bem que, ao longo dos tempos, o lugar se confundiu com a Vila de Mangue, ainda hoje, o baptismo de um dos bairros históricos do Tarrafal e o nome mais popular do estádio de futebol do concelho, vizinho do campo penal.
Por fim, a grande recta dá de si. Desemboca numa tal Rua Macaco e na Praça Tarrafal, o âmago administrativo e religioso da povoação.
O Âmago Urbano do Tarrafal
Como esperado, benze-o uma igreja, a de Santo Amaro, lateralizado face a um rectângulo ajardinado e dotado de coreto.
Também a edilidade por ali se afirma.
O seu relógio redondo estacionou no meio-dia ou na meia-noite, como se queira. Aponta umas também fixas “Boas Festas” que coroam o frontão do edifício turquesa.
Estacionamos. Deambulamos sobre o empedrado da praça. Como sempre acontece em Cabo Verde, damos de imediato com expressões da portugalidade.
Um quiosque identificado como “Super Bar” exibe a imagem de uma das grandes cervejeiras lusas.
Logo ao lado, dois tarrafalenses defrontam-se em sucessivas partidas de uril. Um deles, homem de meia-idade, traja uma camisola do Benfica. Joga contra uma senhora da sua geração, equipada de bata, lenço e chinelos listados.
Assiste ao duelo um único espectador, composto numa calça de ganga escura e num polo, quase do mesmo azul da fachada da câmara municipal.
Aproximamo-nos. Mesmo sabendo que lhes prejudicaríamos a concentração, interpelamo-los. O jogo disputava-se, no entanto, a feijões.
Nem um nem outro se parecem importunar. Indagamos o jogador masculino sobre o seu grau de benfiquismo, partilhado por muitos dos moradores da vila, de tal maneira que um dos “bebedouros” de Strela, de grogue e de outras bebidas, preferidos do Tarrafal, se denomina “Bar Benfica”.
Quando damos por ela, estamos a falar da influência de Renato Sanches na equipa e da sua génese cabo-verdiana. “A família dele é daqui do Tarrafal, sabiam?”
Não fazíamos ideia. A revelação apanha-nos desprevenidos. E comove-nos.
Pedimos desculpa à parceira de jogo pela interrupção. Quando o fazemos, reparamos na cor dos seus olhos. São de um verde-azeitona translúcido que, em redor da pupila, se amarelava.
Voltamos a surpreender-nos. Elogiamo-los e à beleza crioula da senhora.
Voltam a assaltar-nos os remorsos por estarmos a interromper a partida pelo que agradecemos a simpatia e nos despedimos. Retomamos a deambulação em que andávamos.
Rumo à Baía e Porto do Tarrafal
Passamos junto a um tal de salão DilmaKelly, pintado a condizer com a edilidade.
Diante da Igreja Evangélica do Nazareno, uma área por urbanizar concede-nos um vislumbre da baía e porto do Tarrafal, anunciada pelo areal dourado da Praia do Mangue que, na realidade, uma pequena saliência rochosa divide em angras distintas.
A norte, o sopé do Monte Graciosa (642m) surge pejado de vegetação. Parte dela, poderia até ser de tarrafes, os arbustos tamarix senegalensis que por ali abundam e inspiraram o baptismo da povoação.
Quando percorremos o pontão que quebra a baía, vemo-la arredondada como nunca.
A água tom de esmeralda e cristalina do Atlântico afaga o areal com gentileza, o suficiente para agitar uma íris de areia vulcânica, mais escura.
Detemo-nos numa espécie de praceta-miradouro, elevada face à baía e ao molhe.
Ali, um mini-quiosque branco e vermelho abriga-se na sombra esparsa de duas acácias irmanadas.
Serve bebidas, mas, sobretudo, essa mesma sombra, a vista e o convívio descontraído que um grupo de moradores conhecidos da empregada aproveitam, divididos, por géneros, em mesas opostas, com vistas irrepreensíveis.
Saudamo-los. Debruçamo-nos sobre os bancos anichados no muro.
Pescadores em Tempo de Descanso e Conversa em Dia
E dali, continuamos a apreciar a enseada privilegiada do Tarrafal.
Admiramos barcos de pesca de todas as cores, lado a lado, no quase cimo do areal. Permanecem em doca seca, a salvo da subida da maré e das vagas.
Fazem de pouso e de encosto a um núcleo de pescadores, entregues a uma conversa tão acesa que chega a soar a discussão.
Sem aviso, uma jovem mulher aparece do meio dos barcos. Passa diante deles a exibir, sem complexos, as formas voluptuosas que Deus lhe concedeu.
Num ápice, os homens dão tréguas à questão. Viram as cabeças para norte e acompanham-lhe os passos elegantes, como se nada mais valesse a pena.
Como nela se inspiraram o(s) autor(es), um mural tríptico pintado no muro do pontão, pouco acima do Mar di Baxu, define a cisão de género do Tarrafal.
Uma das suas secções, revela um homem a suster um peixe, junto a uma embarcação.
Na oposta, várias mulheres seguram alguidares com cocos. No meio, um duo de músicos canta.
A pintura que os retrata, em particular, anuncia com “Nós é” as duas restantes “omis di mar” e “mudjeris di côco”.
Os Futebolistas e os Forasteiros Encantados do Tarrafal
Entre os barcos e o mar, a aproveitarem a descida da maré, jovens tarrafalenses em boa forma disputam uma pelada sobre a areia molhada.
A partida prova-se de tal maneira aguerrida que nem a passagem da donzela os demove da bola cor-de-laranja.
O primor técnico e a entrega ao jogo dos santiaguenses produzem, há muito, craques incontornáveis.
Mesmo já nascido em Portugal, Renato Sanches revelou-se apenas um de muitos herdeiros da aptidão e paixão cabo-verdiana pelo futebol.
Malgrado o aparente predomínio de tarrafalenses, a Baía do Tarrafal atrai cada vez mais forasteiros.
Cruzamo-nos com franceses, italianos e alemães, branquelas de peles frágeis que o sol tropical castiga sem misericórdia.
Alguns, entregam-se a snorkelings entre as traineiras ancoradas ao largo.
Outros, a partidas de vólei de praia, na iminência da floresta de coqueiros abaixo do tarrafal vegetal da encosta.
A Subsistência Desafiante das Gentes do Tarrafal
Nos últimos tempos, estes visitantes têm garantido rendimentos complementares às remessas da diáspora cabo-verdiana e aos da agropecuária.
Bem mais fáceis que os da pesca, sobretudo nos meses de Inverno, Dezembro, Janeiro, quando os ventos alísios sopram vigorosos e tornam o Atlântico ao largo tempestuoso a dobrar.
Mesmo árdua, a pesca é fiável. Já a agropecuária, debate-se, há muito, com o clima árido do norte da ilha e com a crescente escassez de água.
Esta mesma aridez moldou a fama oscilante, durante muito tempo duvidosa, do norte de Santiago.
Como o viam as gentes de outras partes da ilha, o Tarrafal ficava nuns confins de terra seca e espinhosa, difícil de cultivar e ainda mais de colonizar.
Como se não bastasse, o estabelecimento, em 1936, do Campo de Concentração, tratado por Campo da Morta Lenta, só veio dramatizar o imaginário associado ao lugar, amaldiçoado pela imposição colonial do regime de Salazar.
Lugar de tortura, de abandono e de morte. Terá sido essa a realidade da colónia prisional a que em breve dedicaremos o seu próprio artigo.
O verdadeiro Tarrafal, o das enseadas no sopé do Monte Graciosa não só tem pouco que ver como o retemos na memória como um abrigo cabo-verdiano e macaronésio abençoado.