Saímos uns meros minutos depois do sol detrás do horizonte.
Avançávamos pela crista do triângulo imperfeito de Tenerife acima. Deixadas para trás La Esperanza e Lomo Pesado, a estrada enfia-se no pinhal vasto que há muito domina as encostas intermédias da ilha.
Por um bom tempo, pouco mais vemos que os troncos seculares, os galhos e a folhagem acicular dos pinus canariensis.
A atmosfera extra-purificada, lúgubre e misteriosa suscita-nos uma inevitável curiosidade matinal. Ao volante, Juan Miguel Delporte ilumina-nos sobre todo um sortido de eras e temas, dos tempos coloniais em que os conquistadores se confrontaram com os indígenas guanchinet, aos contemporâneos em que as equipas multimilionárias do ciclismo internacional se mudam de bicicletas e bagagens para Tenerife.
Os tempos em que lá levam a cabo treinos em altitude cruciais para a ambição disputada de triunfarem nas etapas pirenaicas, alpinas e apeninas da Volta à França, da Volta à Itália e da Volta à Espanha, para mencionar apenas as principais.
De ambos os lados do asfalto, sucessivas veias aquíferas ganham volume vertentes norte e sul abaixo. Numa direcção e na outra, o seu destino final é um mesmo, o grande Atlântico, ainda sub-tropical mas de águas bem mais cálidas que as que banham a Ibéria.
Estávamos em pleno Estio. Fazia um bom tempo que uma chuva digna desse nome não reabastecia o reservatório natural de Tenerife.
O Avistamento Inagurual do Colosso Teide
Uns quilómetros para diante, a Carretera de la Esperanza e Juan Miguel revelam-nos o primeiro de vários pontos privilegiados de observação do grande pico El Teide (3718m).
Subimos um pequeno morro. Livramo-nos da ditadura do pinhal. Por diante, para sudoeste, descobrimos o cone do vulcão destacado sobre uma base verde, com o seu castanho ferroso a destoar da vastidão azul-celeste.
Na metade inferior da vertente aquém da montanha, gerada por deslizamento gravitacional, um casario alvo adensava-se com a proximidade do azul mais escuro do mar.
Juan Miguel já antes nos tinha avisado. “Isto mudou e para vocês não é nada bom. O dia não está límpido como ontem. Durante a noite a calima voltou entrar.” O fenómeno vem com o Verão particular das Canárias.
Às vezes, acontece bem fora do estio. A meteorologia seca e tórrida do sul ganha supremacia. Invade as ilhas mais próximas de África, sobretudo de Lanzarote a Tenerife. Menos as setentrionais, como La Palma. Apodera-se de boa parte do arquipélago, carregada de poeira e areias finas arrancadas do Sara.
Como o víamos, por norma, de Julho em diante, deixa de fazer sentido o nome da ilha usado pelos Romanos, Nivaria, de acordo com a cobertura de neve que se habituaram a ver na secção superior da montanha, nos dias mais límpidos do ano, até mesmo a partir da costa africana, com o seu vislumbre se deslumbravam também os cartagineses, os Numídios, os navegadores fenícios.
Os Romanos não foram os primeiros a nela se inspiraram. Malgrado o domínio de Roma e a expansão do império aos confins ocidentais do Velho Mundo, o baptismo que prevaleceu tem uma origem indígena.
A Enigmática Exclusividade Guanche de Tenerife e das Canárias
Os guanches tratavam-na por Tene (montanha) ife (branca). Diz-se que foram os colonos castelhanos que, mais tarde, de maneira a facilitarem a sua pronúncia, acrescentaram o erre entre os dois termos.
Como nos elucida Juan Miguel, o grande enigma está em como foram parar os guanches a Tenerife e às restantes Canárias que habitavam. À chegada dos colonos europeus, nenhuma outra ilha da Macaronésia era habitada.
Mesmo tendo em conta a relativa proximidade das Canárias da costa ocidental de África – 300 km de Tenerife, pouco mais de 100km de Lanzarote – e a comprovada genética berbere dos guanches, continua por comprovar de que maneira conseguiram atingir o arquipélago com gado, outros animais domésticos quando não tinham conhecimentos para construírem embarcações que assegurassem a viagem.
Achados arqueológicos e vestígios orgânicos que a ciência datou de meio milénio antes de Cristo ou ainda mais antigos indiciam que, de uma maneira ou de outra, os guanches terão cumprido a travessia.
Vulcão Teide: a Origem Geológica e a Mitologia Guanche
Por essa altura, há muito que o grande El Teide se projectava acima de Tenerife e do firmamento das Canárias.
A datação de uma ilha peca quase sempre por inexacta mas, ainda de acordo com estudos científicos, terão sido erupções submarinas massivas de há cerca de 25 milhões de anos a gerar o arquipélago.
Tenerife, em específico, formou-se através de um processo de acreção de três enormes vulcões de escudo, de início numa ilha com três penínsulas agregadas a um vulcão massivo, o de Las Cañadas.
No tempo em que Tenerife os acolheu, os guanches cultivaram o significado mitológico da montanha que parecia sempre vigiá-los. Sem grandes dúvidas espectadores e vítimas de mais que uma erupção ou distinta manifestação vulcânica, os aborígenes habituaram-se a temer o vulcão.
Chamavam-lhe o inferno, no seu dialecto, Echeyde, o termo que os castelhanos depressa adaptaram para El Teide.
Para os guanches, a montanha Echeyde era a morada sagrada de Guayota, o demónio do mal. Acreditavam que Guayota teria sequestrado Magec, o deus da luz e do sol que aprisionou no interior do vulcão, votando o seu mundo à obscuridade, sem surpresa a mistificação do fenómeno provocado por uma erupção significativa que, como tantas outras ao longo da história, ao libertar nuvens de cinza e pó, terá bloqueado o sol.
Sempre apreensivos quanto ao que o vulcão lhes reservava, os guanches aprofundaram a sua mitologia. Os missionários que mais tarde acompanhavam os colonos europeus registaram o que os nativos lhes contavam, que o seu povo havia rogado perdão a Achamán, o seu Deus de todos os deuses.
Este, acedeu. Após um combate intenso, Achamán triunfou sobre Guayota. Resgatou Magec das profundezas de Echeyde, fechou a cratera do inferno e aprisionou Guayota lá dentro.
A tampa salvadora, hoje identificada como a sub-cone Pilón ou Pan de Azucar, coroada pela cratera menor do Pico del Teide, não voltou a ver erupções. Outras se deram, com expressão reduzida, em zonas distintas do enorme vulcão. Algumas tiveram lugar em plena era colonial.
O Testemunho Presencial de Cristovão Colombo, uma Erupção a Caminho das Américas
A de 24 de Agosto de 1492, horas antes de zarpar rumo às Índias pelo Ocidente e de dar com as Américas, Cristovão Colombo narrou no seu diário de bordo: ”Zarpou no dia seguinte e passou a noite próximo de Tenerife, de cujo cume, que é altíssimo se viam sair grandes labaredas que, maravilhando-se a sua gente, lhes deu a entender o fundamento e a causa do fogo, aduzindo para respeito, o exemplo do monte Etna, na Sicília de vários outros onde se via o mesmo.”
Os cientistas chegaram à conclusão que, nessa data, Colombo e os seus marinheiros terão assistido à erupção de Boca del Cangrejo, no sul da ilha.
Terá sido a quinta das erupções históricas de Tenerife, nenhuma delas provinda da cratera principal do monte Teide. Seguiram-se outras no período 1704-1706, registadas em Fasnia, em Siete Fuentes e que causaram forte destruição no casario à beira-mar de Garachico.
Uma do Pico Viejo, conhecida como Chahorra, entre o início de Junho e Setembro de 1798. A derradeira deu-se em 1909, a partir do vulcão secundário de Chinyero. Haveríamos de passar por parte destes focos do vulcanismo de Tenerife.
Até lá, prosseguimos pela via TF-24.
Não tarda, já livres da sombra verdejante dos pinheiros, deslumbrados com o paredão geológico formado por várias camadas de escoadas lávicas, de distintas texturas e tons, de tal maneira que recebeu o nome informal de Tarte do Teide.
Esta tarte tem os seus próprios dois miradores, ambos reveladores da magnificência do estratovulcão, ainda mais sobranceiro se face ao vale imenso partilhado por La Orotava, Puerto de La Cruz e várias outras cidades, vilas, aldeias, lugarejos.
Detemo-nos num dos miradouros.
Dali, apreciamos um esquadrão de praticantes de parapente elevar-se e planar, em deliciosas elipses entre o observatório do Instituto de Astrofísica das Canárias e o fundo oceânico, boa parte do tempo, com o cone da montanha em fundo.
Do Domínio Grandioso da Caldeira Las Cañadas ao Cimo do Pan de Azúcar
À medida que também o sol ascendia para o seu zénite, a calima intensificava-se. Quando entramos no domínio da caldeira de Las Cañadas, formada pelo abatimento do vulcão homónimo, a sua névoa seca desilude-nos.
Esforçamo-nos por ignorar a adversidade fotográfica.
Apontamos ao sector de Tabonal Negro e, logo, à base do teleférico que assegura a ligação dos 2.356 metros aos 3.555m do quase topo da cratera principal, no sopé da cimeira Pilón de Azucar.
Dedicamo-nos a percorrer dois trilhos principais assentes em basalto, irregulares a condizer e que sulcam um entorno áspero, até cortante, de lava entre o ocre e o acastanhado.
Seguimos o que conduzia ao ponto de observação do Pico Viejo.
E, no regresso, o que levava ao miradouro da Fortaleza, revelador da orla norte da caldeira de Las Cañadas e de boa parte da costa setentrional de Tenerife.
Em conjunto, os dois panoramas opostos e o concedido pelo trilho que ligava os pontos de partida revelaram-nos imponência geológica há milhões de anos no âmago da ilha.
Em diversas direcções, a caldeira encontrava-se coberta de distintas escoadas de lava, algumas só detidas pela vertente interior da sua orla.
Instantes depois, inaugurámos os 1200 metros de descida de teleférico que emulava a da lava. Aos poucos, a cabine reaproximou-nos do tracejado da TF-21.
O Ocaso na Calima, em Volta dos Roques de Garcia
Uma vez mais pelo seu asfalto, visamos o recanto sudoeste da caldeira. Deixamos a estrada para a vista aberta do Llano de Ucanca.
Apoiados na vedação-parapeito que separa a estrada da planície apreciamos o sol a oeste a esconder-se atrás de um retalho afiado da caldeira e, ao mesmo tempo, ao alaranjar gradual dos rochedos rivais de Roques de Garcia.
Um fotógrafo de casamentos esforçava-se para fotografar um casal no meio da via com aquela luz suavizada.
Mais cedo do que estimávamos, o fundo atmosférico de calima começou a apoderar-se do grande astro.
Quando o buscamos já no mirante de La Ruleta, a sua bola amarelada resplandece do céu enegrecido e parece rolar sobre o cimo da silhueta entre os Roques.
Dois namorados sentados numa laje conveniente, deixavam-se contagiar pelo romantismo vulcânico e cósmico do momento.