O cartaz do Sinh Office de Ho Chi Minh City falava em 12 horas.
Mencionava um preço modesto de alguns milhões de Dongs. Não mencionava o tipo de autocarro ou o que quer que fosse sobre o percurso.
Quando se trata de agências de países do terceiro mundo ou se vai ou se fica. Não há tempo para indecisões e, esperar por respostas honestas é ser ingénuo. Conscientes disso, compramos os bilhetes e mentalizamo-nos para o que o dia seguinte poderia reservar.
Deixamos a caótica rua De Tham por volta das oito da manhã. Três horas depois, chegamos à fronteira. E ao princípio de um longo tormento.
A área que marca a divisão entre o Vietname e o Camboja estabelece uma separação óbvia na paisagem. De um momento para o outro, os arrozais encharcados e outros campos verdes dão lugar a uma vastidão ressequida. Dela se destacam dois enormes arcos que assinalam a saída de um país e a entrada no outro.
O motorista dá indicação para que toda a gente abandone o autocarro. Aponta, de forma rude, para a cancela mais próxima, a uns bons 500 metros.
Lá fora estão 40 graus, um forno que torna a caminhada um castigo. Viria a repetir-se da barreira vietnamita à cambojana, onde a fila, aumentada pela preguiça prepotente dos soldados de serviço, é maior que a anterior.
Algum tempo depois, o asfalto até então aceitável transforma-se numa sucessão terrosa de buracos convencionais, de antigas crateras provocadas pelas bombas largadas durante a Guerra do Vietname e por lombas e desníveis subsumidos numa poeira densa.
O percurso passa também a fazer-se aos “esses” e aos saltos. Ainda não é tudo.
A Tortura Rodoviária do Cambodja do Pós-Guerra
Aguentamos 150, talvez 200 km de solavancos. As bexigas de alguns passageiros estão nas últimas. Contamo-nos entre os mais aflitos. Por sorte e conveniência, o motorista mal humorado satura-se do desconforto e decide parar.
Andamos já sobre a savana do sudeste asiático quando notamos que os restantes elementos da excursão esbracejam. Tinha-nos passado despercebida uma placa sinalizadora. Caminhávamos entre minas.
A aflição agrava-se mas, uma vez que nada tinha acontecido à ida, no regresso, só temos que identificar e pisar as pegadas no solo. Evitamos a inesperada catástrofe mas não nos safamos do sarcasmo irritante do motorista: “Pode ter sido por pouco, não é? Para a próxima, vejam se se lembram que não estão a passear em Paris!”.
Malgrado o tempo decorrido desde as atrocidades porque se tornou popular o país, aquele cambojano ainda tinha toda a razão.
Em 2010, Kang Kek Lew tornou-se no primeiro khmer vermelho a ser condenado pelos seus crimes de guerra durante o regime maoista de Pol Pot. Muitos mais se deveriam seguir mas o primeiro-ministro Hun Sen sacrificou as condenações em função da estabilidade política.
Foi algo que visto como uma protecção a vários líderes guerrilheiros, hoje presentes nas instituições locais e nacionais do governo cambojano. Se os antigos criminosos continuam dissimulados no poder, o Camboja permanece uma das nações mais vulneráveis da Ásia, dependente da assistência das nações desenvolvidas e do investimento chinês.
À medida que progredimos no país, percebemos a quantidade de campos ressequidos ainda infestados de minas e por cultivar, a predominância de habitações básicas sobrelotadas pelas famílias e pelos seus animais domésticos.
Palmeira cambojana atrás de palmeira cambojana (Borassus flabellifer), palafita após palafita, já bem depois do pôr-do-sol e com um atraso de cinco horas, chegamos por fim a Phnom Penh. Temos apenas uma curta noite de sono para recuperar na capital.
A Navegação Deslumbrante de Phnom Penh a Siem Reap
A viagem recomeça cedo, com partida de uma doca sobre o rio Tonlé Sap que ali se junta ao Mekong. O Tonlé Sap muda de direcção duas vezes por ano, invertido pelo refluxo do caudal do rio principal que a época das chuvas torna excessivo. Aguardam-nos embarcações futuristas mas desgastadas que, em três tempos, se enchem de estrangeiros.
Zarpamos. A grande velocidade, o barco deixa para trás as aldeias ribeirinhas que aparecem pelo caminho. E faz balouçar, os pequenos barcos dos pescadores que as alimentam.
A dois terços do percurso, o leito alarga e dá lugar a uma imensidão disforme. De rio, o Tonlé Sap passa a lago. Mais duas horas de navegação, atingimos as proximidades de Siem Reap. Mas estamos em plena época seca. Nesta altura, as margens são inacessíveis aos barcos maiores. E esse recuo do lago, obriga a um complexo transbordo.
Provenientes de filiais flutuantes, dezenas de recrutadores turísticos a trabalhar para guest houses acercam-se de nós em pequenas embarcações. Num processo divisório, tentam convencer o maior número possível de visitantes a prosseguir com eles.
Sem alternativas válidas, é o que fazemos.
Dia e meio depois da partida de Ho Chi Minh, tínhamos chegado a Siem Reap. Os templos de Angkor pareciam mais próximos que nunca. Aproximava-se a hora da recompensa.
A Cidade Legada Pela Poderosa civilização Khmer
Construídos entre os séculos XI e XIV, quando a civilização khmer estava no seu auge, os templos de Angkor testemunham, mais do que a grandeza, a enorme criatividade arquitectónica de um povo que dominou o Sudeste da Ásia.
Os khmer subjugaram diferentes etnias durante 600 anos, desde o sul do que é hoje o Vietname, ao território de Yunnan no sul da China, até à baía de Bengala na Índia.
Os mais de cem templos de Angkor que tínhamos por diante são os vestígios vivos de um centro administrativo e religioso que albergava centenas de casas, edifícios públicos e palácios construídos em madeira e que, por isso, desapareceram. Segundo a crença Khmer, o direito de habitar em edifícios de pedra ou tijolo reservava-se apenas aos deuses.
Vários séculos depois, as autoridades cambojanas e da UNESCO concederam a visitantes de todo o mundo, o privilégio de os admirar. Estavamos determinados em aproveitar ao máximo a benesse.
Dirigimo-nos ao lado oposto da entrada do complexo, ansiosos por encontrar as ruínas furtivas de Ta Phrom (Brahma ancestral) um dos poucos templos a que não foi roubada à protecção original da selva.
Descobrimo-lo fiel ao imaginário dos viajantes, cercado por árvores tropicais com raízes tentaculares que se agarram aos muros e paredes envelhecidos.
Ali, o canto exótico das aves quebra o silêncio e reforça uma atmosfera de puro misticismo. Assim contemplado, o templo abandonado não faz justiça à grandiosidade da civilização que o ergueu.
E, no entanto, uma placa informativa afiança que eram 12.500 as pessoas que nele viviam ou que lá serviam. Dois mil e setecentos oficiais, seiscentos e quinze dançarinos e mais de 80.000 almas das povoações circundantes trabalhavam para assegurar os mantimentos e outros serviços.
Está provado que Angkor foi mais que um lugar artístico ou religioso. Acolheu cidades impressionantes que também serviam o povo khmer.
Voltamos ao reduto de Angkor Thom em busca de Bayon.
Tal como Ta Prohm, também este edifício agrupa corredores estreitos e lances vertiginosos de escadas. Nele se destaca a colecção de cinquenta torres decoradas com duzentas misteriosas faces sorridentes de Avalokiteshvara, o Buda da compaixão.
E a inspiração do rei Jayavarman VII para a construção da cidade.
A Imponência Religiosa e Khmer de Angkor Wat
Mudamo-nos para o Angkor Wat a mais imponente de todas as estruturas de Angkor, considerado o trono do Império Khmer e o maior edifício religioso do mundo.
Muitas das características de Angkor Wat são únicas no conjunto dos templo. Uma delas é a sua orientação para Oeste.
O Oeste é, no universo khmer, a direcção da morte. Essa constatação levou vários estudiosos a concluir que o Angkor Wat havia sido erguido como túmulo.
A ideia foi ainda alavancada pelo facto de muitos dos seus baixos-relevos terem sido criados de forma a serem interpretados ao contrário do movimento dos ponteiros de um relógio, uma opção com antecedentes nos rituais funerários hindus.
Por outro lado, o deus hindu Vishnu sempre foi associado ao Oeste. De acordo, a explicação hoje mais aceite é a de que o Angkor Wat foi inicialmente um templo, mais tarde, o mausoléu de Suryavarman II, o décimo sexto rei do império khmer.
Atravessarmos a ponte sobre o fosso exterior. Passamos para o interior de uma câmara escura. Ao sairmos, temos a visão inesperada e majestosa de três enormes torres longínquas. E pela frente, uma enorme avenida conduz ao templo central.
Percorremo-la lado a lado com um grupo de monges budistas que, com os seus trajes cor-de-laranja ,emprestam cor ao lugar e que se fotografam sem parar.
Acabamos a conversar, apesar do seu inglês limitado que têm o ensejo de praticar: “Não somos khmer, somos tailandeses. Vimos a Angkor de vez em quando.
Para nós é um privilégio sagrado podermos aqui rezar em paz. Durante muito tempo, corríamos risco de vida de cada vez que o tentávamos.”
Chegados ao pátio interior do templo, examinamos as galerias térreas e enfrentamos as escadarias assustadoras que dão acesso aos níveis superiores, determinados a conquistarmos o acesso à vista desafogada sobre o complexo em redor.
Nessa altura, compreendemos um pouco melhor o discurso dos monges. E confirmamos que a longa e dolorosa viagem partir de Ho chi Minh tinha valido a pena.
Camboja: do Fratricídio ao Esquecimento Forçado
Devastado pela guerra e pelo regime sanguinário de Pol Pot, o Camboja esteve mais de vinte anos fora do mapa turístico do mundo.
Após o cessar-fogo e a estabilização relativa da situação política, o país abriu-se, pouco a pouco, ao estrangeiro. Expôs aos visitantes o estado em que havia ficado: uma destruição quase total da sua escassa rede de transportes e da maior parte das infraestruturas importantes.
Uma população oprimida pela violência impune dos khmers vermelhos e pela corrupção generalizada de um governo vendido a todo o tipo de interesses.
Um território repleto de minas por rebentar que impedem os camponeses de voltar a cultivar os campos e mata, ainda hoje, várias pessoas por dia.
Em 2003, a situação do Camboja era ainda muito frágil.
Em termos políticos, o país continua dividido pelos conflitos do passado: os dirigentes são vistos como tendo sido pró ou contra vietnamitas; antigos apoiantes da barbárie perpetrada pelos khmers vermelhos ou opositores.
Esta última oposição é uma verdadeira ferida aberta na sociedade cambojana. Depois das eleições de 1998, uma parte significativa dos guerrilheiros khmer deixou a selva.
Entregou-se às forças governamentais da recém-criada coligação que uniu as duas maiores forças políticas do país, o CPP e a FUNCINPEC.
Em 25 de Dezembro desse ano, o líder da coligação, Hun Sen, foi prendado com um pedido de autorização dos principais dirigentes khmer vermelhos para também eles se entregarem ao governo.
Hun Sen fora desde sempre um defensor de um julgamento dos responsáveis pelo genocídio generalizado em que havia mergulhado o país.
No entanto, inexplicavelmente, os líderes khmer vermelhos tiveram uma recepção VIP à chegada à capital. Hun Sen passou a defender a necessidade primordial de uma reconciliação nacional e evitou castigar os seus antigos inimigos, como a população cambojana esperava que acontecesse.
Esta reviravolta é ainda hoje uma causa latente de instabilidade. À medida que os membros da guerrilha khmer vermelha voltaram às suas casas, muitos deles passaram a viver lado a lado com pessoas que haviam torturado ou mutilado, ou a quem haviam assassinado parte da família.
O receio de que um julgamento justo das altas patentes khmer vermelhas possa assustar os restantes ex-guerrilheiros e levá-los de novo para a selva e reacender do conflito, tem sido um forte factor dissuasor.
Assim mesmo, habituados a sofrer e calar, os cambojanos agarram-se à única opção que lhes foi dada: esquecer o que ficou para trás.