Depois de um desembarque em pleno Domingo em que desesperamos com os estabelecimentos da capital Road Town fechados, chegados ao fim da tarde, descobrimos que a Segunda-Feira seria igual ou pior.
Ficou para a história que, ao deparar-se com estas paragens no início da sua segunda incursão as Américas (1493), a armada de dezassete navios e mais de mil homens de Cristóvão Colombo se surpreendeu com uma profusão de pequenas ilhas a que não viam fim. Ao devotíssimo cristão Colombo, o arquipélago fez lembrar a lenda medieval de Úrsula e das Onze Mil Virgens.
Reza esta lenda que era suposto Úrsula e as acompanhantes viajarem até junto do futuro marido de Úrsula, o governador pagão da Armórica.
Só que as viajantes decidiram adiar o encontro e inauguraram uma longa peregrinação europeia que incluía uma visita ao Papa, em Roma. O desvio religioso custou-lhes caro. Úrsula e as virgens acabaram chacinadas em Colónia, pelos Hunos que então cercavam a cidade.
Não seriam onze mil as ilhas que ali tínhamos em redor, nem nada que se parecesse. Das várias que hoje compõem as ilhas Virgens – tanto as vizinhas estadounidenses como as britânicas, duas ou três destacavam-se das demais.
Um Retiro Quase-Forçado nos The Baths de Virgin Gorda
Confrontados com a inércia de Road Town, deixamos simplesmente de querer saber. Dedicamos o feriado, dia de Santa Úrsula, à segunda ilha das BVI (British Virgin Islands) que, de acordo com o seu imaginário e com o perfil em breve mapeado de mulher barriguda, Colombo terá baptizado de Virgen Gorda.
Conseguido um despertar madrugador, às oito e pouco da manhã embarcamos no ferry que liga Road Town (capital do território e única cidade da ilha de Tortola) a Spanish Town, a cidade de Virgin Gorda.
O ferry ostenta o nome de “Sensation”. Pouco depois de zarparmos, o assento ventoso do seu deck superior prenda-nos com sucessivas recompensas sensoriais: a massagem dos ventos alísios nas nossas faces. O balançar no Mar das Caraíbas sereno.
O litoral recortado e verdejante destacado do azul-petróleo marinho. As fragatas que esvoaçavam contra o firmamento acima. E a conversa animada de um grupo de amigos de Tortola apimentada por um forte sotaque caribenho.
Desembarque na Cidade Britânica de Spanish Town
Decorridos três quartos de hora de navegação, acostamos no porto do destino. Em Spanish Town, tal como havíamos constatado em distintas zonas de Tortola, encontramos novo grande cemitério de iates, catamarãs e outras embarcações apanhadas pelos furações Irma e Maria que, entre 30 de Agosto e 2 de Outubro de 2017, arrasaram as Ilhas Virgens, Porto Rico, a República Dominicana e várias das Pequenas Antilhas em redor.
Daí para cá, as BVI, em particular, têm feito de tudo para recuperarem, para estarem à altura dos cenários e do acolhimento que as haviam tornado famosas e desejadas, numa longa era de pré-hecatombe.
Dodo, condutor de uma carripana-taxi de caixa aberta adaptada para transportar uns bons visitantes de cada vez, fazia o que lhe competia. “Are you going to the Baths?” pergunta-nos com um sotaque ainda mais cerrado que o dos compinchas a bordo do “Sensation”.
Respondemos-lhe que sim, que já vínhamos com essa pequena viagem comprada de Road Town. “OK, I could take you there.” O condicional que emprega deixa-nos de pé atrás. Mais conversa, menos conversa percebemos que se tratava apenas outro dos incontáveis “modos” gramaticais das Caraíbas.
Que o homem, além de pachorrento para com a nossa reticência, estava de boa fé e mais que desejoso que lhe confirmássemos o serviço.
A Caminho do Devil’s Bay (The Baths) National Park
Confirmamo-nos os únicos passageiros a bordo da carrinha. Por certo ainda por consequência do Irmaria, assim tratam os nativos a dupla de furações que coexistiram no tempo e que, em parte substancial das suas vidas, partilharam uma mesma trajectória caribenha de devastação.
Dodo deixa-nos junto à bilheteira do The Baths National Park. Pé ante pé, titubeantes de receio de tropeçarem e caírem sobre a floresta de cactos que ladeia o caminho, idosos vindos dos cruzeiros que ancoram em Road Town atrasavam as visitas programadas em modo de toque e foge a Virgin Gorda.
Mesmo senhores do nosso dia, sentimos uma mesma ansiedade por trocarmos aquele labirinto de vegetação perfurante pelo das enseadas e trilhos misteriosos dos Baths.
O Deslumbre Caribenho de Devil’s Bay
Completado um derradeiro meandro arenoso, damos entrada numa tal de Devil’s Bay e, pelo menos no nosso imaginário, numa extensão do hemisfério ocidental da ilha seichelense de La Digue.
Um mar gentil algures entre esmeralda e turquesa irrompe em linhas curvas pelo meio de enormes rochedos de granito polidos e amarelados pelo tempo. Movida pelos alísios, uma caravana de esculturas nebulosas sobrevoa-os e – diverte-nos pensar assim – renovam nas pedras cativas uma inveja milenar.
Dali, só percebemos uma ínfima parte da colónia de rochedos afins que, por capricho geológico, ocupou a costa ocidental de Virgin Gorda.
Atentos aos movimentos de um dos guias locais dos cruzeiros, aprendemos como subir a um dos rochedos. Do cimo, em formato panorâmico, percebemos melhor como duas penínsulas mais próximas de calhaus encerravam a enseada contra um areal coralífero abundante.
Não tardamos a reparar que faltava um elemento ao típico conjunto caribenho: em tempos, coqueiros seculares projectavam-se do meio dos rochedos para o céu.
Esses impressionantes extras vegetais foram também eles arrancados pelo poder destrutivo dos furações, no caos gerado pelas baixas pressões recordistas, poucos nativos saberão dizer se pelo Irma ou pelo Maria.
Uma linha de boias estabelece um limiar proibitivo aos donos de veleiros provindos das ilhas Virgens em redor. Sem pressas, apreciamos os seus cuidadosos transbordos. Dos pequenos barcos, para botes ínfimos que atam às boias para completarem o derradeiro percurso aquático a nadar, com mochilas e sacos impermeáveis às costas.
A Hora The Baths
Descemos de volta para o areal, instalamos a nossa própria tralha a salvo das vagas e submetemo-nos a uma primeira talassoterapia salgada e sagrada daquele santuário marinho. Quando nos sentimos re-energizados, secamo-nos. Logo, apontamos a norte e ao trilho anfíbio que conduzia aos The Baths em si.
Serpenteamos entre rochedos plantados sobre o mar e a vegetação que os acompanha sempre ao alcance das vagas amortecidas pela sucessão de calhaus.
Escadarias de madeira e corrimãos de corda dão-nos acesso a verdadeiros túneis, ante-câmaras e câmaras de granito em que desvendamos piscinas naturais reabastecidas em permanência.
Cruzamo-nos com nativos de Spanish Town e Road Town deliciados com aqueles momentos imaculados de evasão.
Caminhada por Sucessivas Galerias Balneares
Descemos nova escadaria, entramos numa câmara ampla e escutamos o eco de distintas vozes. Em pleno âmago granítico-balnear dos The Baths, deitados na água turquesa que a oscilação dos feixes solares parecia irradiar, mulheres e crianças de uma só família tagarelavam e brincavam em absoluto rejúbilo.
Pedimos a dois homens que, no exterior e a seco, partilhavam outra conversa e uma garrafa de whisky que nos guardassem as mochilas. Voltamos ao interior escuro e espojamo-nos na água, deliciados com a riqueza espiritual tanto da gruta-lagoa como da confraternização repleta de afecto que nela tinha lugar.
De regresso à língua de areia em que havíamos deixado as mochilas, agradecemos aos dois homens. Já tínhamos reparado que, tal como eles, uma das mulheres dentro da lagoa tinha feições indianas. Curiosos quanto a uma provável relação, metemos conversa.
As respostas de Vicky e de Roj esclarecem-nos a suspeita. “Nós nascemos na Guiana mas já nos mudámos cá para Tortola há uns dezoito anos. Lá dentro, eles são todos nossa família. Porque é que nos mudámos?? As coisas lá na Guiana iam de mau para pior.
A economia, a segurança… Aproveitámos uma oportunidade de virmos para cá trabalhar e confirmou-se que ganhávamos muito mais e tínhamos uma vida mais tranquila. Fomos ficando e abrimos o nosso próprio negócio. Agora, estamos realmente melhor.
De qualquer maneira, quando temos saudades do que havia de bom, a Guiana não está assim tão longe. É só apanharmos um avião e vamos até la.”
Nos Antípodas da Devi’s Bay: a mais frequentada Spring Bay
Despedimo-nos. Retomamos o trilho que continuava a serpentear dos Baths em direcção ao desafogo de uma tal de Spring Bay, comparável à Devil’s Bay mas, no sopé do trilho principal do parque, bastante mais frequentada e acolhedora.
Enfiado no seu pitoresco “The Poor Man’s Bar”, Moses Carrier e a sua família servem rum punch atrás de rum punch a um grupo de clientes instalados numa mesa à sombra.
À boa maneira caribenha, estes convivas tagarelam num volume tão elevado e em tons tão graves que mais parecem prestes a inaugurar uma pancadaria ébria.
Quando caminhamos entre o bar e o mar, sobre quase brasas, bem arrependidos de o termos iniciado descalços, rasamos a mesa do grupo ruidoso.
Perscrutamo-los com a atenção merecida e apuramos que são os mesmos com quem tínhamos partilhado o convés superior do “Sensation”, que o rum e o excesso de testosterona temperada pelo sol e a ausência de companheiras tornara estridentes a triplicar, tão ou mais despreocupados com o incómodo que a sua discussão estivesse a provocar.
Spring Bay em Modo de Exclusividade
O parque encerrava às quatro da tarde. Uma hora depois, o ferry zarpava para a derradeira viagem do dia para Road Town. Aquele grupo em aparente pré-zaragata debandou já meio aos esses. Nós, deixamo-nos ficar mais um pouco.
Escalamos um novo rochedo panorâmico e nadamos entre calhaus contíguos. Logo, subimos o trilho do parque até meio em busca de vistas para outras enseadas.
Nesse mesmo trajecto, passamos por um conjunto de letras azuis colocadas na base de uma fraga que versavam “One BVI”. Lá acabamos por fotografar três amigas deliciadas com o inesperado protagonismo de modelos.
A Inesperada Metamorfose “ONE BVI – BOVINE”
Descemos de volta à enseada para um último mergulho. Ao retomarmos o trilho ascendente, eventualmente já atrasados para o reencontro com Dodo e para o embarque no “Sensation”, constatamos que visitantes bem-dispostos do parque se tinham detido e entretido com um jogo malicioso de Scrabble. Em vez de “One BVI”, as letras versavam agora “Bovine”.
O “Sensation” zarpou quarenta minutos atrasado, já em pleno lusco-fusco. Desembarcámos em Road Town tarde e a más-horas mas com a certeza absoluta de que tínhamos passado um dos melhores dias balneares das nossas vidas.