Incomodados por alguma ansiedade e pelo barulho gerado por caminhantes em quartos próximos do New Phedi, de saída, despertamos ainda antes das três da manhã.
O hotel estava, todo ele, nevado e gelado. Grandes estalactites pendiam dos beirais, incluindo do interior da casa de banho partilhada. No tempo que passara, o caldeiro com água lá colocado, tinha gerado um grande bloco de gelo, com os danos na higiene que tal solidificação implicava.
Pela conversa de dois grupos de estudantes americanos, liderados por professores, o seu calendário para o circuito era pouco flexível. Percebemos que, devido a um qualquer percalço anterior, se viam obrigados a cruzar o desfiladeiro Thorong La, naquela mesma madrugada.
Quando saímos do quarto e examinamos a situação meteorológica, mais que nos desagradar, a ascensão iminente e precipitada dos americanos preocupava-nos.
As montanhas continuavam sob um véu acinzentado de nuvens baixas e de neblina. Batemos no quarto da Sara e do Manel. Preparavam-se para sair.
Expúnhamos-lhes as nossas dúvidas e inquietações quando desata a nevar forte.
Mais forte do que alguma vez tínhamos visto desde a partida de Pokhara.
Contamos-lhes o que sabíamos do histórico das travessias de Thorong La e o que tínhamos planeado para nos precavermos de sustos, que passava por evitar a ascensão rumo ao desfiladeiro no meio de uma tempestade de neve, mesmo que muito outros caminhantes o fizessem.
A tragédia de 2014, de que falaremos no trecho seguinte do circuito, era mais que motivo para sermos argutos e redobrarmos os cuidados.
Ao constatarem o intensificar do nevão, sem vermos uma única estrela no céu, a Sara e o Manel anuem.
Decidimos os quatro voltar a dormir e vermos como estava o tempo após a aurora.
Manhã Solarenga, Tempo de Deixar Thorong Phedi
Voltamos a acordar por volta das sete da manhã. Com a partida precoce dos dois grupos americanos, o hotel New Phedi parecia-nos deserto.
O nevão já tinha parado. O céu abria a olhos vistos. De tal maneira que o sol entrava, radiante e, aos poucos, livrava-se da nebulosidade persistente.
Este sim, era um cenário que considerávamos favorável. Uma pós-tempestade solarenga com, tudo indicava, horas de céu limpo por diante.
Vamos despertar o Manel e a Sara. Voltamos para arrumar as mochilas.
Don, o nosso carregador, já estava pronto para as instruções que lhe déssemos. Ainda antes das oito da manhã, deixamos todos o Hotel New Phedi.
Ao chegarmos ao início do trilho e da ladeira, temos uma visão mais ampla e real do quanto o nevão da noite havia mudado o cenário.
O vale do rio Jharsong Kola e os cumes imponentes que se projectavam do V apertado a ocidente eram, agora, brancos, com ligeiras estrias de terra onde a neve falhara superfícies demasiado íngremes.
Os Bons Augúrios Tibetanos das Bandeiras Lunga ta
Um longo estendal multicolor de bandeiras budista-tibetanas lunga ta, esticadas na horizontal, destacava-se da imensidão alva.
Os tibetanos conhecem-nas como Wind Horse. São símbolos xamânicos da alma humana, também representativas do cavalo, um dos animais que representam os quatro polos cardeais.
São ainda ícones de desejo de boa sorte.
Ali mesmo, à saída de Phedi, essa Wind Horse tremelicante abençoava as jornadas dos caminhantes nos dois sentidos, se bem que o de Thorong La, o nosso, se provava bem mais desafiante que o oposto.
Devagar, devagarinho, subimos a vertente branca, que o rápido derretimento da neve fazia alvacenta.
De início, éramos só os cinco a subir. Aos poucos, caminhantes saídos de Phedi ou já chegados de escalas anteriores – Yak Kharka, de Ledar e outras – e que tinham optado por não parar em Phedi, surgiam no fundo da ravina.
O Apoio Precioso de Don, o Carregador
Este era, sem margem para dúvidas, o trecho mais árduo desde o trilho ziguezagueante que subia do rio Marsyangdi ao cimo de Ghyaru.
Desta feita, graças aos serviços de Don, estávamos menos carregados.
A opção de contarmos com carregador entre Manang e Muktinah, já do outro lado do desfiladeiro, tínhamo-la tomado precisamente porque, devido ao equipamento fotográfico, andávamos com quase o dobro do peso expectável e que os outros caminhantes transportavam.
Queríamos evitar que uma súbita lesão no fundo das costas, ou afim, já para não falar do Mal de Montanha, nos deixasse incapazes de prosseguir.
Mesmo assim, a Don, calhava apenas o nosso excesso. Aquém do que os carregadores nepalis estão habituados a suportar.
Nós, transportávamos 9 ou 10kg cada um, sobre o limiar do aconselhado.
Nestes modos mais portáteis, numa mera hora de sobe-pára, recupera-retoma, atingimos o alto do High Camp, onde recuperamos, a contemplarmos o novo cenário do cimo e a imensidão que tínhamos deixado para trás.
Nova Desistência Causada pelo Mal de Montanha
Vivemos esse deslumbre quando, ao longe, vemos o que parecia um helicóptero a aproximar-se. Nuns poucos minutos, atingiu o cimo da ladeira do High Camp e aterrou numa saliência plana usada como heliporto.
Dois caminhantes apareceram de um hotel. Um deles era uma jovem, apurámos que israelita e que, para nosso espanto, caminhava de calças de ganga e com dificuldades.
O outro, bem preparado, com calças de neve e um casacão de penas volumoso, entregou-a à equipa de salvamento. A desistente estaria em estado aceitável, caso contrário, não tinha pedido uma foto sua de despedida.
Concretizada a recordação, o helicóptero descolou. Como o tínhamos acompanhado a definir-se contra as montanhas e o céu, assim o vimos sumir-se acima do leito do Jharsong Kola.
Voltamo-nos para a nossa própria realidade.
Com as instalações do High Camp ali ao lado, voltam a assaltar-nos as dúvidas de se queríamos seguir, ou lá passar uma noite.
A Escala Não Planeada no High Camp
Lembramo-nos do que nos tinham contado no Base Camp de Phedi, que as instalações do High Camp, os quartos em particular, eram miseráveis para o frio que lá fazia.
Como se não bastasse, a entrada para o desfiladeiro distava umas centenas de passos. Decidimos continuar.
Caminhamos pelo trilho nevado, por quase quarenta minutos.
Até que, numa zona em que se inclinava sobre um declive pronunciado, sentimos o vento a intensificar-se para rajadas e a trazer nuvens densas do lado de lá da cordilheira, sobre o maciço de Damodar Himal.
Com a visibilidade comprometida e dificuldade crescente para nos mantermos equilibrados e evitarmos tombar para o declive, abortamos o plano.
Invertemos marcha. Refugiamo-nos no conforto do High Camp. Coincidência ou não, já lá estavam vários caminhantes.
Muitos outros apareceriam.
Sobre as dez da manhã, ficamos com os dois últimos quartos duplos disponíveis. Deixamos as mochilas, reencontramo-nos na sala aquecida, a essa hora, já distantes das inevitáveis salamandras.
Tínhamos gasto energia a sério com a ascensão de Thorong Phedi. Sentimo-nos esfomeados muito antes do que seria normal.
Almoçamos por volta das 11 da manhã. Conscientes de que devíamos manter os corpos habituados ao esforço em altitude, voltamos a sair.
À Descoberta dos Cenários Elevados do High Camp
Conquistamos um promontório com vista monumental sobre o vale do Jharsong Kola e os picos nevados em redor.
Coroava a sua extremidade uma pilha de pedras, sustentáculo de uma antena gradeada, uma estrutura mal-amanhada, ainda assim, com direito a bênção religiosa.
Nem a antena nem o lunga ta que a decorava chegavam para abençoar os hóspedes de sinal de telefone, quanto mais de internet.
Mais caminhantes nos seguiram os passos e apareceram das funduras do High Camp. O espaço apertado em redor da antena deixou de chegar.
Forçou-nos a trocas de posições acrobáticas que, mal calculadas, podiam resultar num mergulho para o abismo. Resignados, voltamos a descer para o High Camp.
A Noite Passada às Portas do Desfiladeiro Thorong La
Encontramo-lo à pinha. Conseguimos mesa, uma vez mais, distante das salamandras.
Malgrado o frio e o desconforto, dormitamos, quase até à hora do jantar e as 20h do fecho da sala de refeições que nos remeteu para os quartos gélidos e espartanos.
Nessa noite de ansiedade renovada, o plano era acordarmos às 4h30, tomarmos um pequeno-almoço leve, às 5h. E sairmos às 5h30, sobre o nascer do sol.
Embalou-nos o desejo de que o dia despertasse clemente.