Os dias passavam. Parecia confirmar-se a natureza algo epopeica da nossa última incursão pela Patagónia.
As emoções geradas pelos cenários grandiosos compensavam a frigidez da meteorologia austral. Fazendo fé nesta garantia, mudamo-nos para os confins norte do Parque Nacional Los Glaciares, em busca do aconchego solitário e improvável de El Chaltén.
A vila mais recente da Argentina foi erguida à pressa, em 1986. Buenos Aires via urgência em reclamar uma vasta área indefinida circundante antes que o vizinho chileno o conseguisse.
O objectivo terá sido garantido mas a controvérsia associada à partilha do território só se viria a apaziguar 12 anos depois, quando os dois países fizeram passar a linha divisória imaginária sobre o pico maior da montanha homónima – os indígenas chamaram-lhe “fumegante” no seu dialecto tehuelche.
Daí para cá, o interesse apaixonado dos viajantes e dos alpinistas na região justificou alguns investimentos mas a pseudo-povoação pouco mudou.
A Chegada Nocturna a El Chalten e a Meteorologia Milagrosa da Manhã
Chegamos de uma viajem demorada, quase toda nocturna cumprida sobre uma estrada sinuosa, de rípio molhado e deslizante a condizer. Encontramos a paragem final deserta, desarranjada, ventosa e poeirenta, como qualquer entreposto fronteiriço perdido no nada.
Ninguém visita El Chaltén pela sua sofisticação ou pela beleza das avenidas e monumentos. A grande atracção é, e sempre foi, a Cordilheira Fitz Roy.
Perfaz uma secção imponente dos Andes não tanto pelas altitudes, que pouco passam da metade do Monte Aconcágua (6962 m), o tecto da América do Sul mas por os movimentos tectónicos e a erosão ali terem esculpido alguns dos cumes realmente excêntricos à face da Terra.

Um sinal indica a distância para a povoação fronteiriça de El Chalten.
“Olhem que ou lá passam muito tempo ou vão precisar de sorte para os ver” avisaram-nos nativos agoirentos de El Calafate. “Essas montanhas só estão descobertas uns 20 ou 30 dias por ano!”
São onze da noite. Sentimo-nos de rastos. Uma ansiedade fotográfica incontornável obriga-nos a espreitar de novo pela janela apertada da pousada e a gelar mais uma vez as caras.
Deixamo-nos levar pela crendice. Malgrado o vento furioso, interpretamos a lua enorme e o firmamento desobstruído como sinais de um amanhecer benemérito.
Quando o dia desperta, alguns dos visitantes rogam pragas por as nuvens e a chuva se terem sumido apenas em cima da sua partida. Nós, esfregamos as mãos, comemorarmos a satisfação efémera. Fechamos as mochilas e fazemo-nos à floresta verde-amarelada de lengas e faias do sul.

Folhagem com cores outonais, embeleza a floresta de coníferas entre El Chaltén e a cordilheira Fitz Roy
Caminhada pelos Trilhos e a Visão Arrebatadora do Monte Fitz Roy
Temos 10 horas de luz natural para caminhar mas chegamos ao pequeno promontório da Loma del Pliegue Tumbado num ápice.
Dali, a visão inesperada dos pináculos graníticos do Monte Fitz Roy contra o céu azulão apanha-nos de surpresa. Dá azo a uma contemplação perplexa e demorada.

Viajantes admiram a imponência de granito do monte Fitz Roy.
Continuamos para a base do colosso e atingimos as imediações do Glaciar Piedras Blancas.

Trecho do glaciar Viedma no sopé do monte de granito Fitz Roy.
Cortamos depois para sul e, atravessamos um prado ensopado que nos conduz às margens das Lagunas Madre e Hija. Logo, voltamos a meter-nos num bosque sombrio e descemos em direcção ao acampamento D’Agostini e à Laguna Torre.
No fim deste derradeiro trecho íngreme, vislumbramos pela primeira vez o outro pico majestoso da cordilheira.
Cerro Torre: o Monte-Agulha Desafiante e de Todas as Controvérsias
Considerada entre os escaladores e alpinistas a mais difícil do mundo, o Cerro Torre é o apogeu de uma sequência decrescente de quatro montanhas: a Torre Eger, a Punta Herron e o Cerro Stanhardt.

Picos aguçados da cordilheira Fitz Roy com névoa em suspenso sobre o gelo e o granito, na vertente sul das montanhas.
Chega aos 3133 m de altitude. Nada de especial, apetece concluir. Mas o seu cume projecta-se numa gigantesca agulha de rocha salpicada de gelo. Forma um repto a que os melhores alpinistas e escaladores não conseguem resistir e que já pôs cobro a várias vidas.
O “Grito de Pedra” de Werner Herzog
Werner Herzog, o realizador alemão obcecado em filmar a obsessão e a loucura um pouco por todo o mundo também se deixou apanhar pela magia desta montanha, pelas suas estórias e mitos.
Um enredo de ganância e mistério, em particular, inspirou “Grito de Pedra”, o seu filme de 1991. Nesta obra-prima do cinema de aventura, Donald Sutherland desempenha o papel de um produtor de TV maquiavélico. A sua personagem vive preocupada apenas com as audiências.

O cume pontiagudo do Monte Fitz Roy, a elevação protagonista do Parque Nacional Los Glaciares, em conjunto com o vizinho cerro Torre.
Para as fazer subir, transmite em directo a competição hercúlea para o topo do Cerro Torre entre um velho montanhista ermita que vive junto ao seu sopé e um jovem campeão mundial de escalada, formado em ginásios e escarpas artificiais.
A Disputa Lendária pelo Cume Mais Difícil do Montanhismo
Trinta e dois anos antes, Cesare Maestri, Cesarino Fava (italianos) e o guia austríaco Toni Egger tentaram atingir o cume ainda vitorioso pela vertente nordeste.
Suportaram ventos e nevões terríveis. Ao ponto de sentirem que, mais que escalar, estavam a brincar com as suas vidas. Já sob condições deploráveis, chegaram a um recanto íngreme que precede o Col of Conquest (no intervalo entre o Cerro Torre e a Torre Eger).

Vegetação assume tons outonais à vista do sempre nevado Fitz Roy.
Faltavam ainda muitas centenas de metros de paredão quase vertical. Nessa altura, Fava voltou para trás e deixou o desafio entregue aos colegas mais novos.
Algum tempo depois, encontrou Maestri junto à base, quase totalmente enterrado pela neve e moribundo. Socorreu-o o rival.
Após voltarem ao acampamento, os dois contaram que Maestri e Egger tinham atingido o cume mas que o segundo havia sido arrastado por uma avalanche durante a descida e morrido.
A dupla depressa se viu enrodilhada nas suspeitas de fraude levantadas por Carlo Mauri (que falhara a ascensão no ano anterior) e de muitos outros montanhistas.
Apontavam-lhes incoerências nas descrições da ascensão e, principalmente, a inexistência de grampos, pitons e cordas para cima do ponto em que Fava desistiu da escalada.
O suposto feito de Maestri e Egger acabou por ser desconsiderado pela comunidade alpinista. O Cerro Torre só seria tomado de forma inequívoca 15 anos depois, em 1974.

Floresta de coníferas dá lugar a um prado ressequido pelo frio em pleno Parque Nacional Los Glaciares.
O Deslumbre pelo Cerro Torre que nem Assim se Desvaneceu
Daí para cá, longe de diminuir, o respeito e fascínio pela montanha mais difícil de escalar reforçou-se.
Alpinistas de todas as partes continuam a arriscar as vidas pela recompensa de verem o mundo do seu cimo exíguo e gelado e sobreviverem para o contar.
Almas menos radicais viajam milhares de quilómetros pelo mero direito de o contemplarem com os pés bem assentes na terra.
E, como nós, resistem ao seu chamamento.