Quando desembarcamos na estação central de Quioto, o edifício imponente de vidro e aço, labiríntico e de arquitectura futurista baralha-nos toda e qualquer expectativa quanto ao Japão milenar.
Estamos num país oriental, xintoísta e budista mas que é, ao mesmo tempo aspirante a ocidental, capitalista e consumista. À medida que a interminável escada rolante nos eleva do nível térreo, ouvimos temas de Frank Sinatra, Nat King Cole e outros clássicos norte-americanos.
O movimento diagonal revela-nos uma orquestra acompanhada de coros e um anfiteatro gigantesco pejado de gente que se ergue a partir do palco até ao terraço no cimo do enorme complexo. Sem que alguma vez o tivéssemos esperado, desse topo, desvendamos o vale de Yamashiro preenchido pela vasta Quioto em redor.
Inaugurada em Setembro de 2007, a Kyoto Central Station originou reacções mistas. Certos críticos ficaram impressionados com os seus espaços amplos e linhas arrojadas que se dão com o visual de foguetão da Kyoto TV Tower, aterrada sobre um dos prédios em frente.
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A Torre de Quioto, um monumento à modernidade numa cidade essencialmente histórica.
Outros, não perdoaram uma ruptura tão destoante com a arquitectura tradicional, por vezes, milenar. Essa polémica está longe de ser exclusiva da estação.
A Quioto Milenar Camuflada na Quioto Moderna
As primeiras ruas e avenidas da cidade que percorremos dão-nos uma sensação de aparente insipiência histórica reforçada pelo edifício-sede carrancudo da Nintendo.
Esta impressão desfez-se, no entanto, em três tempos contra as fachadas resplandecentes dos monumentos quase sempre meio escondidos pelo aglomerado do casario mais recente desta cidade milenar.
Apanhamos o metro. Saímos já bem longe do considerado centro. Recebe-nos Shoji, um anfitrião nipónico dos seus quarenta e muitos anos, determinado em acolher hóspedes do máximo de países do mundo. O seu projecto já é de si surpreendente. Mais ainda nos espanta quando percebemos que lhe dedica toda uma vivenda tradicional.
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Um manequim em trajes tradicionais à entrada de um restaurante da cidade.
Shoji podia aluga-la mas prefere desde há muito o contacto com os gaijin (estrangeiros) que dessa forma lhe enriquecem a vida mesmo que não domine nenhuma língua para lá da sua materna e só fale algo digno de registo com aqueles que estudaram o nipónico.
O dono da casa dá o seu melhor para nos instalar. Explica-nos os truques e segredos do lar, desdobra um mapa sobre uma mesa baixa e aponta-nos as atracções da cidade que, a seu ver, não podíamos perder por nada deste mundo.
E, no entanto, foi por um triz que a Quioto milenar não foi obliterada pelas bombas atómicas “Little Boy” ou “Fatman”, em Agosto de 1945.
O Japão Milenar Quase Perdido para a História
A paixão suscitada por Quioto no coração dos visitantes vem de há muito. Por coincidência e infortúnio de Hiroxima e Nagasaki, o Secretário de Guerra americano das administrações Roosevelt e Truman, Henry L. Stimson, frequentara a cidade diversas vezes durante os anos 20 enquanto Governador das Filipinas.
Alguns historiadores afiançam que Quioto foi também o destino da sua lua-de-mel. Fosse como fosse, a acção disuasora que protagonizou, granjeou-lhe a fama de derradeiro responsável pela sua salvação.
Quioto é a cidade mais reverenciada do Japão. Dezassete monumentos dos seus 1600 templos budistas e cerca de 400 santuários xintoístas são Património Mundial da UNESCO.
A quantidade de monumentos sublimes revela-se tal que um autor da famosa editora de guias de viagem Lonely Planet se deu ao trabalho de advertir os leitores “… em Quioto, é fácil ser-se vítima de uma overdose de templos …”.
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Fotógrafo à saída de um túnel de toris do santuário Fushimi Inari.
Quioto, uma Cidade Erguida à Imagem das Grandes Cidades Asiáticas de Então
À imagem da vizinha Nara, Quioto foi erguida num padrão de grelha inspirado em Chang’an (actual Xi’an), a capital da dinastia chinesa Tang.
A imitação da mais poderosa China era, à época, uma forma assumida de progresso. Por fim, na vanguarda da civilização nipónica, Quioto acolheu a família imperial japonesa. Fê-lo de 794 a 1868, um longo período em que, enquanto o Japão em geral era governado por xogunatos em permanente confronto, a cidade se destacou a nível cultural.
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Visitantes na base do templo Chion.
No fim do século XIX, o movimento de restauração Meiji – que visava a consolidação do poder imperial – forçou a mudança dos imperadores e família para Edo (mais tarde conhecida por Tóquio) a capital do Leste.
Depois de Heyan-kyo (cidade da paz), Kyo Miyako (cidade capital), Keishi (metrópole) e, no Ocidente, Meaco ou Miako, Quioto juntou mais um título à sua já extensa colecção de nomenclaturas. Por algum tempo, tornou-se na Saikyo (a capital do Oeste).
A Espécie de Overdose de Templos, Santuários e Outros Monumentos de Quioto
Na Quioto dos dias d’hoje, até os visitantes mais optimistas depressa se conformam com a impossibilidade de apreciarem tudo o que a cidade tem para oferecer. É então que se rendem a uma espécie de ranking oficioso das suas atracções.
O rio de gente que vemos fluir nas zonas históricas de Ninen-zaka (Colina dos Dois Anos) e Sannen-zaka (Colina dos Três Anos) anuncia sérios concorrentes à popularidade do Pavilhão Dourado.
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Vista dupla do templo mais famoso de Quioto, tema do romance homónimo de Yukio Mishima.
Ali se encontram duas das ruas mais antigas de Quioto, feitas de longas sequências de machiyas (habitações de madeira típicas), lojas, restaurantes e velhas casas de chá.
Subimos a encosta de Gojo-zaka, com passagem obrigatória pela Chawan-zaka (Colina do Bule), uma ruela repleta de doçarias e estabelecimentos de artesanato.
O Retiro Florestal do templo Kiomizu-dera
No cimo, à laia de recompensa, deparamo-nos com o templo Kiomizu-dera, outra das vedetas patrimoniais da cidade.
O seu edifício principal prolonga-se numa varanda assente em troncos e estacas, assim destacada da colina.
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A varanda do santuário Kiomizudera sobre a floresta outonal que envolve Quioto.
Sem surpresa, este templo está quase sempre a abarrotar de japoneses de todas as idades de que se destacam as sucessivas excursões escolares, identificáveis pelos uniformes azuis: pulôver, fato com gravata e calça que os rapazes fazem questão de combinar com os ténis mais espalhafatosos que encontraram; pulôver, fato e saia (por vezes, transformada em mini-saia) usados pelas raparigas faça o frio que fizer.
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Duas estudantes inclinam-se perante um pequeno santuário do templo Kiomizu-dera.
Mais que simples extensões, as varandas de madeira do Kiomizu-dera são miradouros privilegiados para a Quioto vislumbrável para lá da floresta verdejante que preenche a planície até às montanhas longínquas de Kitayama e Nishiyama.
Não faltam, também neste templo, rituais sagrados. Descemos uma longa escadaria disposta abaixo das varandas. No seu fundo, encontramos a Otowa-no-Taki, uma pequena cascata transformada em fonte em que os visitantes formam longas filas para se munirem de enormes colheres de ferro e nelas beberem água que acreditam ter propriedades terapêuticas.

Visitantes e crentes bebem água sagrada no templo Kiomizu-dera.
Já nas imediações do templo secundário de Jishu-jinja, o objectivo dos crentes é garantir sucesso ao amor. Para tal, devem caminhar cerca de dezoito metros entre duas pedras com os olhos fechados. Alertam-nos de que falhar a segunda pedra significa uma condenação sem retorno a uma vida de celibato.
O risco parece-nos demasiado. Descartamos o desafio.
Ninen-zaka, Sannen-zaka e o templo de Kiomizu-dera fazem parte do roteiro South Higashiyama que continua pela rua Ishibei-koji, passa pela entrada do templo Kodai-ji, pelo Parque Maruyama e se prolonga para oeste até ao Yazaka-jinja, este um novo complexo de templos.
E o Bairro Tradicional Gion que as Gueixas ainda Percorrem
Ali, ao fim da tarde, quando as gueixas e as maikos (aprendizes de gueixas) sobem a escadaria e cruzam o tori (portal) para passear e rezar, sentimos estabelecer-se uma intersecção fascinante entre a esfera religiosa de Quioto e o seu domínio boémio e noctívago formado pelas zonas de Ponto-Cho e Gion.
O célebre distrito Ponto-Cho pouco mais é que uma ruela apertada, paralela ao rio Kamo-gawa. O “pouco mais” conta com os inúmeros restaurantes e bares que, ainda assim, acolhe e à passagem constante e misteriosa de gueixas a caminho dos compromissos com os danna, os seus patronos.
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Gueixa percorre um beco do bairro de Pontocho.
Deambulamos por este domínio quando cai a noite e Ponto-Cho ganha vida, iluminado e colorido pelas lanternas orientais que emprestam à zona uma atmosfera mística do Japão clássico.
Logo ao lado fica Gion. O bairro vizinho é dominado pela arquitectura moderna e, à hora de ponta, inundado de trânsito. Ainda assim, preserva algumas bolsas históricas também dignas do melhor imaginário gueixa.
As suas ruas protagonistas são a Hanami-koji e a Shinmonzen-dori, ambas delimitadas por mais casas antigas, restaurantes, antiquários e outras casas de chá. Muitas destas últimas são, na realidade estabelecimentos dedicados ao entretenimento secular geisha (gei=arte + sha=pessoa) que, apesar de se encontrar num lento processo de extinção, continua a ter lugar por detrás de tantas portas fechadas da cidade.
De oitenta mil gueixas, nos anos 20, restam, hoje, entre mil a duas mil, quase todas em Quioto.
Henry L. Stimson o Secretário da Guerra Apreciador e Salvador de Quioto
Se retrocedermos uma vez mais na história, é-nos fácil concluirmos que poderia perfeitamente não restar nenhuma. E nunca soará a exagerado o crédito de Henry L. Stimson.
Em pleno processo de decisão das urbes nipónicas a aniquilar, o Los Alamos Target Committee formado por generais e cientistas dos E.U.A. e liderado por Robert Oppenheimer, insistia em colocar Quioto no topo da lista.
Justificavam-no “por Quioto nunca antes ter sido bombardeada, por incluir uma área industrial e contar com um milhão de habitantes.” Também consideravam a sua população em grande parte universitária “mais apta a apreciar o significado de uma arma como o engenho que seria utilizado.”
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Bloco de bares e restaurantes na margem do rio Kamo.
Contra tudo e contra todos, em 1945, o Secretário de Guerra Stimson, ordenou que Quioto fosse retirada da lista. Argumentou que tinha forte importância cultural e que não era um alvo militar. Os militares resistiram. Continuaram a repor a cidade no topo da lista até ao fim de Julho de 1945.
Esta teimosia forçou Stimson a dirigir-se em pessoa ao presidente Truman.
Stimson escreveu no seu diário que “Truman concordou com que, caso não removessem Quioto da lista, o ressentimento nipónico para com os E.U.A. seria tal que tornaria impossível qualquer reconciliação no pós-guerra com os americanos e, em vez, a viabilizaria, com os Russos.” Por essa altura, as tensões que levaram à Guerra Fria já se faziam sentir.
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O tori gigante que marca a entrada no domínio xintoísta do santuário Heian.
Truman estava determinado a não alimentar o monstro comunista, nem na Ásia, nem em nenhuma outra parte do mundo. Até semanas antes da primeira bomba nuclear ter sido lançada, Nagasaki não constava sequer na lista de cidades-alvo.
Por ironia do destino mas, acima de tudo, devido ao amor de Henry L. Stimson por Quioto, Nagasaki tomou o lugar daquela no derradeiro sacrifício. Depois de Hiroxima, Nagasaki sucumbiu ao apocalipse.
Quioto continuou a resplandecer.