Contemplamos o pôr-do-sol interminável sobre Homer, satisfeitos por os dias alasquenses se preservarem tão estivais como longos.
Não são frequentes os momentos de descontração total nas viagens que fazemos pelo mundo. Conscientes do seu valor, gravamos na memória a imagem do lago espelho e dos hidroaviões diminutos ancorados nas margens, contra a floresta de coníferas em redor.
Tínhamos poucas ilusões de que aquela bonança durasse. A confirmá-lo, a relíquia de telemóvel que usávamos nos Estados Unidos dá sinais de vida.
Do outro lado da linha, fala-nos um piloto: “Bom, meus amigos, acho que estão com sorte. Tenho vagas. Venham cá ter ao hangar às 7 da manhã!”
O Voo Providencial de Homer para Katmai
Não é a primeira vez que elogiamos os filmes de Werner Herzog. Nem será a última.
Tínhamos visto e admirado “Grizzly Man” – a sua obra de 2005 – por duas vezes. Sabíamos que seria difícil aproximarmo-nos tanto dos cenários selvagens que revela como onde estávamos. A extremidade marítima da língua de terra de Homer permitia-nos, inclusive, vislumbrar as montanhas ainda nevadas do Parque Nacional Katmai.
Alguns contactos cirúrgicos tinham-nos deixado na expectativa de conseguirmos voo e guia. Michael Hughes concedeu-nos esse desejo. Antes da hora por ele ditada, já estávamos nas instalações da sua empresa do aeródromo.
Preocupado em preencher o tempo de espera, o piloto delicia-nos a contar parte da sua vida aventureira no Alasca: “Bom, como devem calcular, os ursos só são visitáveis no fim da Primavera e Verão.
No resto do ano, faço outras coisas bastante mais arriscadas”. “Estão a ver os programas da National Geographic sobre as pescas do Alasca (n.a. “Pesca Radical” ou, na versão original, “Deadliest Catch”) ? “Aquilo é realmente perigoso mas quem indica aos barcos a posição dos cardumes sou eu e os meus colegas, a partir do ar.
Muitas vezes, em dias de tempestade nada propícios a estes aviões. Ganhamos um bom dinheiro mas já apanhei uns sustos. Com os ursos é mais tranquilo, vão ver!”
E o Sobrevoo Panorâmico do Cook Inlet, Golfo do Alasca
Entretanto, os passageiros em falta dão entrada. Michael passa-nos um briefing exaustivo.
Logo, metemo-nos na avioneta e descolamos para os céus sobre a baía de Kachemak. Sobrevoamos o Spit de Homer. E Seldovia, uma vila piscatória também ela isolada. Não tarda, entramos no Golfo do Alasca.
Passados 20 minutos desde a descolagem, atingimos as imediações das montanhas opostas. Michael pede que confirmemos que os cintos estão bem apertados. Após o que dá início a uma descida abreviada. Não detectamos qualquer sinal de pista.
Em vez, o piloto faz o avião aproximar-se dos areais da península que Timothy Treadwell tornou famosa.
Timothy Treadwell: A Carreira de Actor Falhada e a Perda de Rumo
Nos anos 90 e princípios dos 2000, Treadwell tornou-se num passageiro frequente desta rota. As suas repetidas chegadas e partidas nunca entusiasmaram os rangers do parque nacional. Estes oficiais mantinham com Timothy um conflito recorrente devido às permanentes infracções do ambientalista.
Timothy Treadwell nasceu em Long Island, Nova Iorque.
Os seus pais afirmam no filme sempre se manteve uma criança normal. Pelo menos até que os deixou para prosseguir os estudos universitários. Nesta fase da sua vida, terá começado a espalhar entre os colegas que era um órfão britânico nascido na Austrália.
Sabes-se ainda que, depois de perder o papel de Woody Boyd para Woody Harrelson na série “Cheers”, se tornou alcoólico e toxicodependente.
Terá sido, aliás, após sobreviver por pouco a uma overdose de heroína, no fim dos anos 80, que Timothy Treadwell decidiu viajar ao Alasca.
O Auto-Proclamado Defensor dos Ursos de Katmai
Treadwell percebeu, nessa ocasião, a urgência de mudar a sua vida. Convenceu-se de que a sua protecção dos ursos era uma espécie de chamamento divino que não podia ignorar.
Daí em diante, regressou a Katmai ano após ano. Confraternizou com os grizzlies com um à vontade cada vez maior, de tal maneira, que se atrevia já a acariciar e até a abraçar alguns espécimes.
Os rangers do parque e os habitantes das povoações próximas viam em Treadwell uma calamidade iminente. A desgraça adiava-se vezes sem conta.
Em Outubro de 2003, com o Inverno já à porta, os salmões quase não apareciam nos rios e o período de hibernação obrigava os ursos a alimentar-se. Timothy abusava da sorte no território dos animais.
A Natureza não perdoou a sua insolência. Treadwell e a namorada que o acompanhava foram devorados por um macho faminto.
O Drama Revelado como Cinema por Werner Herzog
A sua vida esteve para ser retratada por Leonardo di Caprio, que iria protagonizar o filme mas, Timothy Treadwell tinha entregue os vídeos que acumulara a uma ex-namorada e incumbiu-a de os passar para cinema.
Jewel Palovak sempre achou que Werner Herzog era o homem indicado para o fazer. Dessa convicção de Jewel, surgiu o aclamado “Grizzly Man”, a principal razão para estarmos prestes a aterrar numa praia da longínqua Katmai.
Assim que saímos do avião, apercebemo-nos que o litoral está repleto de ursos que escavam em busca de moluscos. Colocamos em prática as instruções antes transmitidas por Michael.
Por fim, entre os Ursos do Parque Nacional Katmai
Em fila indiana atrás do guia, aproximamo-nos lentamente dos grizzlies que, satisfeitos com a abundância natural de alimentos, nos detectam mas ignoram.
Deixamos o areal. Internamo-nos no prado contíguo que nos dá quase pelo peito. Dali, acercamo-nos o mais possível de distintos espécimes e fotografamo-los com cuidados insuficientes, chamados à atenção pelo guia, de cada vez que nos deixamos ficar para trás.
Uma hora e quarenta minutos depois, fazemos uma pausa para recuperar energias. Michael certifica-se de que não há salmão ou outros peixes nas sandes.
Satisfeito com a inspecção, deixa-nos entregue aos snacks e à conversa. Depois, pressionados pela subida da maré, regressamos à caminhada.
Avistamos vários ursos dentro do tempo estabelecido. Sem que o esperássemos, somos apanhados entre uma fêmea que protege as suas crias e um macho.
Michael reconhece o risco e dá o sinal de retirada. Ainda conseguimos fotografar os dois ursitos de visual peluche, sob alçada da progenitora mas vêmo-nos forçados a recuperar o atraso face ao grupo já de regresso ao avião.
Conhecíamos o filme de Herzog de trás para a frente. Sabíamos que o Grizzly Man tinha resistido 13 anos entre os ursos.
Sermos apanhados ao fim de algumas horas não estava nos nossos planos.