Ravshan e Nilufar nunca começavam a sua shur’va (sopa de vegetais e carne) sem a adensar com pedaços de non.
Seguiam-se lagman (massa com outros vegetais e carne) ou dimlamla (guizado). Tendo em conta os seus físico contidos, surpreeendia-nos que os comensais continuassem a dar conta do pão amarelo colocado sobre a mesa.
Fazia-lhes uma certa confusão o facto de não sermos pãozeiros. “De certeza que não querem?” Perguntavam-nos à laia de insistência. “Cá, comemos sempre imenso non à refeição” reitera Nilufar. “Na verdade, a toda hora… possivelmente até um pouco demais.” e ri-se com a espontaneidade da sua adolescência prolongada.
Almoço atrás de almoço, jantar após jantar, acabamos por perceber quanta verdade havia naquelas palavras. E que não poderia ser de outra maneira.
Uzbequistão: o Celeiro da Ásia Central
A Ucrânia sempre teve a fama de mega-produtora de cereais, reforçadora prodigiosa da capacidade da URSS. Se tivermos em conta os tamanhos dos territórios, mesmo se a principal cultura do país é o algodão, o Uzbequistão tornou-se num celeiro prolífico.
Durante a sua era despótica, o Presidente todo-poderoso Islam Karimov congratulou os agricultores da nação pela colheita farta de 2011 que, com 7 milhões de toneladas de grãos, suplantou a anterior em quase 300.000.
Ainda assim, o preço do pão social – o mais simples – subiu 10%, 50 sums (2 cêntimos). A população sentiu o novo aumento como uma facada nas costas. “Parece pouco…” diz Farida Akhmedshina à imprensa nacional “. Na realidade, o aumento foi de 100 sums. Os empregados das lojas sempre nos deram rebuçados como trocos pequenos e é o que vai acontecer quando pagarmos os 550 com 600 ou até com 1000 sums”.
Mais que a saciedade do povo uzbeque que fica afectada com estes aumentos anuais, é a sua vida, a começar pelo relacionamento social.
A Preponderância Social do Pão do Uzbequistão
Nas zonas mais tradicionais, a primeira coisa que as pessoas levam a casa de outras como prenda é um non. À despedida, os anfitriões fazem questão de oferecer um de volta aos visitantes.
Nas casas que possuem os seus próprios fornos, as mulheres preparam os pães que a família consome e que irá oferecer. Batem, acariciam, voltam a sovar a massa até conseguirem a consistência desejada.
Depois, fazem afundar o centro e desenham o padrão decorativo próprio da zona, da aldeia ou até o familiar. Cada região tem as suas variedades, o obi non mais comum os shirma de Samarcanda e os de Bukhara, polvilhados com sésamo ou nigela e que têm um aroma inconfundível.
Os katlama de Andijon e Qashqadaryo – preparados com natas, manteiga e flocos estaladiços – são igualmente aromáticos. De acordo com a tradição, eram e ainda são servidos durante encontros casamenteiros.
Já os lochira da capital Tashkent têm a forma de um prato. São confeccionados com leite, manteiga e açúcar. Outros incorporam carne, cebola, frutos secos esmagados, tomate, passas e distintos complementos.
Cada região, ou aldeia ou até padeiro, pode ter o seu próprio fermento especial que conserva e protege da concorrência sempre que pode.
A maior parte dos lepyoshkas (o nome russo para o pão) são ultimados em tandyres, poderosas fornaças de argila reforçada que garantem o ponto ideal de cozedura entre apenas 4 a 8 minutos.
Os tipos não tandyr de pão, mais raros, foram aperfeiçoados pelas tribos nómadas que, perante a impossibilidade de transportarem grandes fornos, os coziam em kazans (caldeirões) sobre uma base de leite.
Já tínhamos percorrido parte significativa do país. Mudamo-nos por alguns dias para o vale de Fergana e as imediações de Andijan.
Foi em Fergana que, a meio dos anos 2000, se cozinhou uma forte contestação ao Presidente Karimov e que acabou por ser palco de uma resposta brutal ao movimento alegadamente extremista islâmico responsável. A chacina consequente ficou conhecida no Mundo como o massacre de Andijan.
Passaram-se oito anos. Somos testemunhas de que toda esta comoção político-militar não afectou a famosa hospitalidade da província.
A Grande Padaria Uzbeque de Margilan
Nilufar já nos tinha ouvido gabar a beleza do pão da sua pátria vezes sem conta. Quando passamos por Margilan, pede ao novo motorista Muhit Din para estacionar numa rua conhecida pela abundância de padarias e fornos tandyr.
De um momento para o outro, damos por nós num périplo enfarinhado. Jovens moldam e alinham a massa, à conversa e sempre de olho nos seus telemóveis envelhecidos.
Logo ao lado, uma dupla com visual exótico encarrega-se do trabalho mais árduo. O forno irradia para o exterior uma temperatura de sauna descontrolada. Ma’ruf Jon, o padeiro mais experiente resiste. Coloca mais e mais pães no interior, como se fosse imune ao desconforto.
O seu rosto está cozinhado pelo calor, com as veias e outros vasos sanguíneos dilatados e feridos sob uma pele fina, cada vez mais escarlate. O padeiro alterna com um colega, provavelmente aprendiz. Ainda assim, assume a maior parte do sacrifício que o destino lhes impôs.
Por razões que os uzbeques consideram óbvias, os padeiros do país são todos os homens. Homens especiais, com uma força de vontade superior. Sentimos que Ma’ruf Jon é um veterano daquele ofício.
A determinada altura, sugere que o experimentemos provavelmente para darmos ao seu ofício o valor merecido. Nilufar traduz o repto: “Vá, pega na pá! Chega de fotografias. Agora é a vossa vez.”
À primeira vista, a tarefa parece simples. Só temos que arrancar dois ou três pães já cozidos, colados ao tecto e às paredes do forno em pré-brasa e atirá-los para um cesto. Mas não nos conseguimos aproximar daquele inferno mais que uns segundos.
Como consequência, apressamos a operação. Deixamos ficar pedaços agarrados à superfície do forno e danificamos a forma preciosa do alimento.
Quando devolvemos a pá ao mestre, estamos algo envergonhados e não nos restam grandes dúvidas: a profissão só poderia ser desempenhada por corpos resistentes ao flagelo e por espíritos inabaláveis. Não tardaríamos a descobrir um lado menos dantesco do negócio.
Um Grande Mercado de Beira-Estrada, só de Pão
Deixamos Margilan de regresso a Tashkent. Ainda antes de atravessarmos a fronteira para a província de Namangan, Muhit Din tem que parar num posto de controle policial. Pouco depois, encontramos um mercado de estrada, com vendedores organizados para fornecer os melhores produtos de Fergana a quem viaja para a capital.
Ali, vemos dezenas de mulheres em trajes tradicionais atrás de uma longa banca improvisada sobre blocos de cimento e caixotes, preenchida por exemplares dos pães da região, dourados como o Sol.
Detêm-se fornecedores e clientes à beira da estrada. Os primeiros equilibram tabuleiros com mais espécimes. Os últimos percorrem a banca a todo o comprimento a avaliar a mercadoria oferecida.
É então que, em sequência, cada vendedora os tenta capturar com pregões e chamamentos encantadores em uzbeque ou russo, dependendo dos alvos.
Os clientes precisam daqueles pães para distintas ocasiões, mais ou menos solenes. É raro regressarem aos carros de mãos a abanar.
No Uzbequistão, muitas famílias continuam fiéis aos antigos costumes. Colocam um pão debaixo da cabeça dos recém-nascidos para lhes desejar uma vida longa e sem problemas.
Mais tarde, quando o bebé dá os seus primeiros passos, o pão é mudado para entre as pernas como uma bênção para o resto do caminho.
Se o bebé é rapaz, anos depois, quando chega a altura de cumprir o serviço militar ou se for recrutado para uma guerra, a sua mãe fá-lo-á comer um pedaço de pão para que regresse o mais depressa possível.
A importância do non alcança as mais elevadas instâncias politicas e diplomáticas.
Em 2011, os 20 anos de independência do novo país foram comemorados no parque Bobur de Tashkent com um grande “Non Sayli”, um festival nacional do pão.