Já de si, a jornada rumo ao extremo sul de São Tomé tinha tudo para se arrastar.
O facto de nos confrontarmos com uma primeira paragem obrigatória em Pantufo, pouco veio a ajudar.
Pantufo distava uns meros 3km da grande cidade da ilha. Com quase dois mil habitantes, este arredor à beira-mar da capital plantado agrupa um casario abundante abençoado pela igreja de São Pedro, nas imediações do relvado do FC Aliança Nacional, o clube que concentra as paixões desportivas da terra.
E, no entanto, o que nos chama a atenção é o frenesim em que encontramos o areal abaixo da Estada de Pantufo, numa altura em que os seus pescadores regressavam da faina.
Grupos deles conjugam esforços para puxarem as embarcações para fora do alcance da maré-cheia. Outros, já na companhia das famílias, examinam os peixes capturados.
Sem saberem ao certo como lidarem com o nosso inesperado interesse, escolhem os exemplares mais volumosos e impressionantes do pescado, por exemplo, um bonito que ainda trás em si, muito do azul do Atlântico.
E três ou quatro, menos exuberantes, que uma jovem familiar agrupa e nos mostra em cacho, para logo se esgueirar entre os barcos artesanais em doca seca e se sumir para trás da sebe de árvores que separa a baía da povoação.
A via mantém-se próxima do mar. Às portas da Igreja amarela e pontiaguda de Santana, os seus dois sentidos separam-se.
O trânsito de Sul-Norte faz-se quase em cima do oceano. Pelo oposto abaixo, seguimos na direcção de Água Izé, aldeia e lugar de outra roça incontornável de São Tomé e Príncipe.
Roça Água-Izé. Um Projecto Esclavagista de um Negro Feito Barão
Um facto histórico inusitado, destaca-a das demais. A Roça Água Izé foi obra de João Maria de Sousa Almeida (1816-1869), um principense de origem negra. Filho de um coronel terratenente, membro de uma família negra surpreendentemente abastada e influente para a época.
De acordo com os seus recursos, o Barão de Água Izé, assim o proclamou D. Luís, em 1868, viajou o mundo. Acumulou um currículo e experiência de vida que, por si só, são uma história.
Foi comandante militar, governador de Benguela e comerciante em Angola.
Viveu em Lisboa, de onde partiu para um périplo europeu. Mais tarde, cruzou o Atlântico à descoberta do Portugal Sul-Americano.
No Brasil, os colonos portugueses mantinham das maiores plantações do mundo, à custa do trabalho de milhões de escravos raptados em África.
Também nesse capítulo da era colonial portuguesa, João Maria de Sousa Almeida se revelou um caso à parte. Ou nem tanto.
Os Investimentos Agrícolas e Esclavagistas de João Maria de Sousa Almeida
Malgrado as suas origens negras, o Barão enriqueceu com o tráfico de escravos.
Ao regressar do Brasil a São Tomé e Príncipe, em 1853, levou consigo uma série de novidades que se provariam a base do sucesso agrícola colonial do arquipélago: café, tabaco, óleo de palma e cacau que dizia ser a árvore dos pobres.
Dois anos volvidos, em Praia-Rei, hoje conhecida como Água Izé, plantou os primeiros cacaueiros e inaugurou a que se viria a revelar a produção prolífica de cacau da Companhia da Ilha do Príncipe.
E, decorrida meia década, dominava já de tal maneira os segredos do cacau que publicou um estudo completo sobre a sua plantação e processamento.
A obediência dos seus trabalhadores escravos, essa, conquistou-a pela crueldade. Indiferente às suas origens, João Maria de Sousa Almeida recorreu, vezes sem conta, à violência e a punições desalmadas.
Quando descemos à Boca do Inferno, uma laje vulcânica que gera géiseres marinhos exuberantes, os tais sopros do Atlântico revelam-se quase nulos.
De acordo, o guia que lá nos conduz coloca o ênfase da visita no mito para sempre associado ao lugar: “sabem que o Barão João Maria de Sousa Almeida impressionava de tal maneira os santomenses que o começaram a ver como sobrenatural.
Dizia-se que tinha o poder de entrar a cavalgar nesta Boca do Inferno e de sair directo na de Cascais.”
No que diz respeito ao Barão de Água-Izé, entre histórias míticas e reais mas surreais, daria para um romance à parte.
A Vida Livre mas Muito Humilde da Roça Água Izé do Pós-Indepenência
De regresso ao casario envolto de coqueiros, bananeiras e restante flora tropical de Água Izé, encontramos a velha roça em plena actividade.
Num armazém, uma equipa de nativos escolhe o cacau, ensaca-o e empilha sacas, um trabalho que, não chega para os mais de 1200 habitantes de Água Izé.
Ao circularmos em redor, cruzamos o seu dia-a-dia não cacaueiro.
Crianças que, na rua, lavam loiça, escolhem bananas acabadas de colher ou fazem os TPCs escolares à luz da porta de casa. Mães que amamentam recém-nascidos, outras que grelham peixe.
Outras ainda que repousam sentadas contra as paredes das velhas sanzalas, entregues a conversas bem-dispostas.
Ribeira Afonso e as suas Lavadeiras Inconformadas
Completados mais 6km para sul, uma nova expressão da vida santomense prova-se demasiado exuberante para a podermos ignorar.
A via estreita. Encaixa-se numa ponte. Para ambos os lados, a Ribeira Afonso que cruzávamos, estava repleta de lavadeiras e de roupa já lavada, estendida ao sol sobre as margens pedregosas.
À boa moda africana, algumas mulheres mantinham bebés amarrados às costas. Embalavam os rebentos com o esfregar e o vaivém dos seus corpos vigorosos.
Sem surpresa, aquela profusão de lavadeiras despertava a atenção dos estrangeiros que por ali passavam. As mulheres estavam mais que fartas de se verem fotografadas pelo que os nossos esforços enfrentaram uma quase-imediata reprovação.
“Parem com isso! É todo o dia a mesma coisa, pensam que isto é o jardim zoológico ou quê?”
Da Ribeira Afonso para baixo, a estrada rende-se a uma série de meandros intrincados. Vence as enseadas recortadas de Micondo e volta a recolher para o interior.
Uma nova curva pronunciada, deixa-nos à entrada da Roça São João dos Angolares.
Na Roça com os Tachos em São João dos Angolares
Estávamos sobre a hora de almoço. E foram os pratos e petiscos santomenses do programa de TV “Na Roça com os Tachos” que tornaram a Roça São João e o cozinheiro João Carlos Silva famosos.
Recebe-nos um bando sortido de patos demasiado entretidos com o arranjo de penas para nos abrirem alas.
Subimos à casa. Admiramos a decoração simples e elegante que combinava na perfeição com os traços coloniais das portas e janelas.
Passamos ao terraço. Encontramo-lo partilhado por grupos de convivas, amigos e familiares, que saboreavam entradinhas.
Também João Carlos Silva por ali está, nem poderia ser doutra maneira. O anfitrião dá início ao seu espectáculo gastronómico do dia.
Apoiado por alguns ajudantes, concretiza uma sequência de petiscos tradicionais, elaborados com banana, maracujá, amendoim, chocolate, mariscos e tantos sabores de São Tomé.
João Carlos Silva serve-os sobre toalhas com padrões africanos que poderíamos encontrar em capulanas e lenços.
E com uma vista privilegiada sobre a propriedade em redor e a baía dos Angolares em frente. Um tal repasto e o cenário em que foi servido merecia o resto da tarde em descanso contemplativo.
Habituados ao nomadismo fotográfico, forçamo-nos a retomar o itinerário.
A Miragem Tropical e Excêntrica Pico Cão Grande
Tal como o tínhamos preparado, sabíamos que o caminho para a ponta sul passava por uma das elevações estranhas e emblemáticas de São Tomé.
Esperávamos vislumbrá-lo a qualquer momento. A visão não tardou, desprovida da pureza vegetal que merecia.
Passado o povoado de Dª Augusta e a Praia de Pesqueira, a São Tomé forrada da sua vegetação natural e endémica, dá lugar a uma plantação sem fim de palmeiras de óleo de palma, as mesmas que o Barão de Água Izé introduziu na ilha e que, cada vez mais, por esse mundo fora, profanam os trópicos.
Avistamos a montanha aguçada do Pico Cão Grande, destacada acima de um sem fim dessas palmeiras e, de tempos a tempos, meio sumida numa nebulosidade baixa que abafava a floresta húmida densa e misteriosa do Parque Natural de Ôbo, uma selva, ao invés, protegida.
Prosseguimos para sul. Deixamos para trás Monte Mário e Henrique. Chegamos à Ponta da Baleia que serve de ancoradouro às ligações de barco ao Ilhéu das Rolas.
Atravessamos a Vila Malaza.
Porto Alegre, a sua própria Roça e os Fundos da ilha de São Tomé
Do lado de lá da baía que a acolheu, chegamos à Roça Porto Alegre, e voltamos ao âmbito histórico da família Sousa Almeida.
Fundou-a Jacinto Carneiro, filho do Barão de Água-Izé.
Apesar de remota e acessível quase apenas de barco, Jacinto Carneiro conseguiu expandi-la e torna-la um caso sério de multiprodução agrícola, ao ponto de, num regime de auto-suficiência, a ter tornado a segunda maior propriedade do sul de São Tomé, com um território vasto que incluía o Ilhéu das Rolas e seis dependências.
A Roça de Porto Alegre mantém uma configuração que é única, com uma alameda de palmeiras a conduzir à sua casa principal, para junto dos lares dos empregados e das longas sanzalas.
Uma vez mais, encontramos a roça entregue à espécie de remanso histórico a que São Tomé se viu no pós-independência. Cabras e galinhas salpicam o pasto à entrada, a alameda de palmeiras e os pátios degradados.
Um único elemento destoava do cenário expectável de uma roça santomense. Por uma qualquer contingência bélica, enferrujado e tomado pela vegetação, um velho tanque de guerra tinha ali achado o derradeiro pouso.
Uns quilómetros para sul, a praia Inhame provava-se o último dos recantos balneares da ilha de São Tomé. Uma espécie de dedo geológico inacessível por estrada indicava-nos o iminente Ilhéu das Rolas.
E, a cruzá-lo, a linha do Equador que marca o meio tropical do Planeta.