Sublinha-se com frequência o facto de se tratar de uma das menores capitais do mundo.
A sê-lo, só deverá surpreender quem desconhecer que, mesmo disperso por 115 ilhas do Índico ocidental, as Seychelles são o país mais ínfimo de África.
Ainda assim, nos seus 20km2, Victoria abriga para cima de vinte mil habitantes, um terço da população da nação. É o suficiente para se ver vítima de uma ou outra amostra de engarrafamento. Constatamos o primeiro exemplo em redor da Torre do Relógio local, uma réplica prateada e reluzente da que dita o tempo sobre a Ponte londrina de Vauxhall.
Decididos a fotografarmos o monumento secular, atravessamos a Independence Avenue. Para cá e para lá. Uma vez. Outra. E mais outra. Abusamos e detemo-nos sobre o meio do asfalto, entre condutores desejosos de dali saírem, se bem que sem a ânsia quase raivosa de outras partes.
Durante algum tempo, o sinaleiro de serviço tolera as travessias que estima, extemporâneas. Momentos depois, saturado de nos ver estragar a sua obra, abandona o posto, descompõe-nos e avisa que, se voltarmos a repetir os vaivéns, nos multa.
Submetemo-nos à autoridade. Instalamo-nos de um dos lados da avenida. Admiramos a diversidade étnica e religiosa dos peões, por alguma razão, sobretudo mulheres, rechonchudas, de trajes sortidos e descomprometidos que revelam peles de distintos dourados.
E, a destoar, uma jovem mãe que quase arrasta uma filha indignada pela nossa abordagem fotográfica.
A indisposição da miúda, a condizer com o visual muçulmano, elegante, bem mais reservado da progenitora, moldada a um hijab longo, parcialmente coberto por uma blusa de um vermelho-claro.
Sir Selwyn Selwyn-Clarke e a Economia de Mercado de Victoria
Continuamos a deambular. Caminhamos até ao Sir Selwyn Selwyn-Clarke Market, o mercado central da cidade, baptizado em homenagem ao médico militar e governador colonial das Seychelles, de 1947 a 1951.
Àquela hora, encontramo-lo em grande azáfama.
Quem não tem lugar no interior, trabalha junto ao gradeamento, como faz Jeffe, um comerciante de ovos que os vende às caixas, a partir da caixa do seu camião.
Damos entrada no mercado. Confirmamos a convivência das áreas expectáveis. A da fruta, a do peixe, a das bebidas, especiarias e outros produtos regionais. Em cada uma delas, uma vez mais, um sortido étnico de vendedores.
Christopher, vendedor de fruta, distingue-se pela sua moda rastafári, pela barba bicuda e pelos tons vermelhos, verdes e amarelos do gorro listado, da t-shirt de alças e do colar ao pescoço.
Nas imediações, Bah Dalanda, com origens na Guiné Conacri, prenda-nos com simpatia e com abertura de espírito para os retratos que lhe pedimos.
Não que fosse necessário, mas, em troca, compramos um quilo das suas uvas. Já na peixaria, de sorriso tímido, Marcel Santache tenta impingir-nos uma garoupa escarlate.
As Ilhas Ignoradas do Almirante Vasco da Gama e Navegadores que se Seguiram
A sul das Seychelles, a ilha da Reunião ostenta o nome que mais traduz o encontro de povos no Índico. As Seychelles e, Victoria em particular, não lhe ficam atrás.
Em 1502, durante a segunda expedição à Índia, Vasco de Gama passou pelo arquipélago. Baptizou-o de Ilhas do Almirante.
Malgrado a honra (a sua própria honra), nem o navegador nem a Coroa Portuguesa as consideraram prioritárias.
Durante todo o século XVI, permaneceram por reclamar pelas potências coloniais europeias que já então disputavam o Mundo.
Em 1609, um navio inglês desorientado atracou por alguns dias na ilha do Norte. Uma vez mais, as Almirantes continuaram por reclamar. Apenas os piratas do Índico as consideravam suas e de lá atacavam os navios europeus repletos de riquezas que viajavam entre África e a Ásia.
A meio do século XVIII, os franceses, que já haviam colonizado as vizinhas Maurícias (então, Île de France), desembarcaram na ilha que o navegador Lazare Picault chamou de Île de L’Abundance (a actual Mahe). Dessa base, exploraram o arquipélago em redor.
Pouco depois, reclamaram, por fim, as Almirantes. Em jeito de homenagem ao Ministro das Finanças de Luís XV, Jean Moreau de Séchelles, chamaram-lhes Séchelles.
Por Fim, a Tentativa Pioneira de Colonização das Seychelles
Em 1770, Brayer du Barré, um empreendedor validado pela Coroa Francesa, zarpou da Île de France na liderança de uma comitiva de quinze colonos brancos, sete escravos africanos, cinco indianos e uma mulher negra.
Barré deixou os colonos na ilha de St. Anne, em frente à actual cidade de Victoria, incumbidos de consolidarem o assentamento e voltou a Île de France com a missão de obter mais fundos.
Em vão. No entretanto, as autoridades da ilha tinham concluído que seria impossível abastecer a nova colónia com a regularidade necessária ou dela obter víveres.
Barré regressou a St. Anne. Em desespero, tentou resolver o bloqueio da Coroa. Frustrado, resolveu abandonar o projecto. Partiu para a Índia, onde, pouco depois, veio a falecer.
As gentes desembarcadas em St. Anne, essas, ficaram dois anos entregues ao seu destino.
Em 1772, uma parte tinha deixado a ilha. Outra, havia-se mudado para a costa oposta a St. Anne, para o litoral nordeste da maior das ilhas das Seychelles, Mahé.
O L’Établissement Repovoado com Escravos chegados da ilha Maurícia
Informados de que, apesar do abandono, a colónia sobrevivia, colonialistas emergentes retomaram o projecto de Brayer du Barré. Chegaram com navios carregados de escravos crioulos da Île de France e consolidaram o que viriam a chamar de L’Établissement.
Os recém-chegados escravos tornaram-se a génese dos actuais quase cem mil seychellenses, gradualmente anglizados a partir de 1798, quando os ingleses tomaram o quase indefeso arquipélago.
Hoje, mais de 90% da população das Seychelles mantém-se crioula ou kreol.
Mesmo se os nativos abominam o termo que consideram pejorativo e tudo fazem para que os considerem apenas e só seychellois (seychellenses). Os restantes, são migrantes britânicos, franceses, chineses e indianos.
Em vez de Seychelles ou Séchelles, os nativos tratam a sua nação por Sesel.
Desde 1976, citizens da vasta Commonwealth of Nations mas independentes, expressam-se no dialecto seselwa, uma mescla prolífica de francês, inglês, de suaíli, de indiano e até malgaxe.
Mesmo conscientes das agruras coloniais sofridas pelos ancestrais, têm pela sua nação tropical e paradisíaca uma estima intocável.
O Hino Francófono da Banda “Dezil”
Assim o sentimos quando, há uns anos, nos deslumbrámos com um videoclip quase artesanal e despretensioso que passava no canal francês de música MCM. Tratava-se de “Sans Ou (La Riviere)” da banda, à data, pouco mais que adolescente, Dezil, que é como quem diz “das ilhas”.
O tema, que tem como refrão, francês, cantado com um denso sotaque kreol.
“Une minute je suis à la rivière
Une heure et je pleure la mer
Un jour sans toi baby c’est trop beaucoup
Je vais pleurer un océan
Toi que j’aime infiniment “
pode aplicar-se tanto a um qualquer namorico como à relação dos seychellois com a sua pátria. Por estranho que pareça, o coração das Seychelles está na ínfima e peculiar capital que os britânicos se apressaram a rebaptizar de Victoria.
Por lá nos mantivemos, a calcorrear as suas ruas e vielas, à descoberta de tudo um pouco, de lugares e personagens, alguns inverosímeis.
Pelas Ruas e Ruelas da Diminuta Victoria
Nas imediações do edifício colonial e garrido, quase de lego, que abriga o negócio Jivan Imports, cruzamo-nos com um nativo tirado de um qualquer desenho-animado: Marcus Hollanda faz tempo, de perna dobrada para trás, contra um muro coroado por uma sebe refrescante.
Tem uma das peles mais negras e lisas que encontrámos em Victoria.
A sua tez faz destacar o dourado do boné e o amarelo do polo que usa a combinar, com um fio argentino grosso a pender do pescoço.
De início, intimidado pelo nosso súbito interesse, Marcus depressa assimila os motivos que lhe explicamos. Posa orgulhoso, altivo a condizer. Por alguma razão, ainda o tratamos por Golden Boy.
Os Templos que Servem as Fés da Capital das Seychelles
Também ali perto, a Catedral de Victoria cumpre as suas funções de evangelização cristã, reforçada por uma aliada anglicana. Malgrado a sua arquitectura imponente, ambos os templos carecem do exotismo tropical e índico que procurávamos.
Andamos, de um extremo ao outro, até ao templo hindu Arul Mihu Navasakthi Vinaygar, o lugar de culto incontornável e inconfundível dos habitantes hindus de Victoria e das imediações de Mahé.
Erguido em estilo dravidiano, a sua torre ornamentada (gopuram) agrupa dezenas de figuras de divindades numa comunhão garrida, acima dos fiéis de sari e de outros trajes típicos do Subcontinente.
Descalçamo-nos. Entramos.
Examinamos os distintos pormenores de fé do interior, sob o olhar de dois sacerdotes enfiados em dhotis cor-de-laranja, de troncos descobertos, um deles com o peito, os braços e a testa adornados por uma pintura sagrada, listada a branco.
Dão-nos as boas-vindas. Convidam-nos a sentarmos à conversa e examinam algum do equipamento que transportávamos. Dez minutos depois, munidos de uma pequena câmara de acção que lhes emprestamos, ensaiam selfies arredondadas.
Discutem os benefícios e artifícios do aparelhinho.
Quando a eles regressamos, ainda à margem de qualquer esperada espiritualidade, colocam-nos dúvidas técnicas que nos divertimos a esclarecer.
Fotografamo-nos juntos.
De novo, como há dias se sucedia, no aconchego multiétnico de Victoria e das Seychelles.