Os indonésios estão habituados aos seus vulcões.
Em Java existem mais de quarenta. Destes, vários são tão reverenciados como temidos. Desde a erupção recordista do Krakatoa, às mais recentes agruras causadas pelo Merapi, a actividade imprevisível dos gunungs tem causado enormes danos.
As populações que habitam em redor, também conhecem o outro lado desta realidade. Os campos são férteis na proximidade das montanhas de fogo. E os visitantes que procuram as mais místicas e impressionantes – em especial o vulcão Bromo – ajudam a desafogar as suas frágeis economias.
O vulcão Ijen é um caso à parte. Há muito que não entra em erupção e sustenta muitos dos homens das povoações em redor. Ao mesmo tempo, encurta as suas vidas.
A Lenta Ascensão à Cratera do Vulcão Ijen
A caminhada mal tinha começado quando o primeiro carregador surge no topo de uma rampa lamacenta subsumida na floresta. Apesar de prevista, a visão que dele temos confrange-nos.
Ao longe, sobressaem os cestos e os estranhos blocos amarelos, quase fluorescentes, que os preenchem.
À medida que a distância diminui, reparamos nas meias rotas que lhe desvendam os pés molhados e sujos sobre uns chinelos acabados. Na roupa rasgada e velha e no esgar de dor do homem, em apuros para suster o embalo que o declive e o peso geravam.
Ao longo do trilho, cruzamo-nos com dezenas de outros carregadores. Por estranho que pareça, em vez dos corpos e rostos violentados é um som que mais impressiona.
Ficou-nos para sempre nas mentes, como o símbolo derradeiro da sua condenação.
A Tortura das Cargas Atrozes de Enxofre
Cada homem carrega dois cestos de verga. Une-os um eixo que assenta sobre as costas e os ombros. Em movimento, o peso extremo faz os cestos oscilar. Produz um ranger repetitivo que o silêncio da montanha multiplica e torna perfurante.
Um dos trabalhadores mais idosos rende-se ao cansaço e detém-se para recuperar energias. Mostra-nos os ombros deformados e em ferida e sugere alguma caridade. Depois, segue encosta abaixo, entregue ao sofrimento que o destino lhe reservou e ao rangido que o irá massacrar vida fora.
Até o despertar destes quase escravos é deprimente e miserável. O vulcão Ijen produz grandes quantidades de enxofre, quase sem interrupções mas são poucos os homens dispostos a trabalhar as noites.
Como tal, antes do nascer do sol, a substância abunda e pode ser retirada com relativa facilidade e – aquilo que conta para os que mais se sacrificam – permite ganhar algumas rupias extra.
O normal é, assim, os trabalhadores chegarem à base do vulcão por volta das 4h.30 da madrugada, na caixa de um camião que os recolhe das suas casas.
Espera-os uma caminhada de duas horas encosta acima. A que se seguem mais 200 metros de descida íngreme e sinuosa até à margem do lago ácido (PH inferior a 0,5) do vulcão, ao longo de um trilho acidentado que, como o lago, já causou algumas casualidades.
A Cratera Sulfurosa e Traiçoeira do Vulcão Ijen
Ali, ao abrigo de uma cortina traiçoeira de fumo tóxico, o Ijen expele um enxofre avermelhado que, por reacção química, em contacto com o ar mais frio, solidifica e se torna amarelo.
Enquanto uma equipa de trabalhadores especializados tenta controlar a temperatura e a pressão das tubagens – quando possível, também a intensidade dos fumos – cabe a cada carregador partir e equilibrar nos cestos as pedras que pretende transportar.
Os mais experientes sabem que a ambição excessiva não compensa. Para aqueles, o peso de referência fica algures entre os 70 e os 100kg.
A carga pode depender de factores tão diversos como o porte físico, a idade, a saúde e a disposição das vítimas. Estas considerações são frequentemente inúteis. Não existe uma balança junto à matéria-prima.
O carregamento é feito por estimativa, debaixo de gases que queimam os pulmões e os olhos, já que as máscaras, quando as usam, são meros panos molhados.
É levado a cabo sob a pressão dos colegas de trabalho que disputam os melhores filões de enxofre para, também eles, deixarem aquele inferno.
Seja qual for a dor e o prejuízo, depois de enchidos os cestos, é raro algum dos homens deixar enxofre pelo caminho, particularmente árduo no regresso íngreme ao exterior da cratera.
A Pesagem no Depósito do Patrão Chinês
O motivo espera-os dois quilómetros abaixo, num depósito abarracado. Ali, aguarda-os um funcionário chinês austero. É responsável pela pesagem, pela contabilidade e por apurar o pagamento, entregue logo ao lado, em rupias, num guichê de madeira fechado por grades.
O quilo do enxofre vale cerca de cinco cêntimos. Em cada percurso, os homens descarregam uma média de 80kg que equivalem a menos de quatro euros. São raros os homens que suportam mais de três percursos.
E só em casos muito excepcionais, conseguem um rendimento diário superior a dez euros.
O enxofre é vendido pela companhia que explora os trabalhadores por valores incomparáveis, para ser usada na produção de medicamentos e produtos de estética mas também no processamento de açúcar.
A ironia das ironias é que a poucos quilómetros do vulcão Ijen, estendem-se as vastas plantações de café arábica de Java, considerado um dos melhores do mundo. Para qualquer um destes homens, o trabalho exaustivo da recolha dos grãos seria uma brincadeira mas o café não os estimula.
A maior parte tem famílias para sustentar. Nas plantações, não receberiam nem um terço do que ganham a carregar enxofre.
Assim, dia após dia, o vulcão Ijen continua a corroer-lhes o corpo e a alma e a abreviar-lhe a dolorosa existência.
Sem alternativas, os escravos do enxofre agradecem o sacrifício.