Faz parte do ritual do Circuito Annapurna.
Ditam as regras que, para evitar o mal de montanha devemos beber litros de água. Segui-las, significa, quase sempre, dormir de bexiga cheia e acordar uma, duas, três vezes para incómodas idas à casa-de-banho.
Desde Chame que este tormento se repetia. Tornou bem menos revigorantes as quase dez horas de descanso que já levávamos. Às seis e pouco da manhã, estamos numa espécie de sétimo sono. Mila, o encarregado da Mount Kailash guest house, bate-nos à porta. Tínhamos-lhe pedido água quente. Quando abrimos a porta, lá está ele, com dois grandes baldes fumegantes aos pés.
Uma Aurora Gélida e Branca
Levantamo-nos sobressaltados e a esforço. Damos-lhe os bons dias e agradecemos-lhe a cruel pontualidade. Aproveitamos a embalagem, aventuramo-nos na madrugada gélida e espreitamos o panorama fantasmagórico a partir do alpendre no exterior do quarto. Uma luz ténue azulava o vale por diante.
Esfregamos os olhos e inspecionamo-lo uma vez mais. O azulado não assentava nos tons em que nos tínhamos despedido de Pisang pouco depois do ocaso. Tingia uma alvura disfarçada de penumbra que, durante a noite, se apoderara das povoações e das montanhas envolventes. Quando, por fim, caímos em nós, fazemos soar o alarme de nevão e reagimos a condizer.
Atabalhoados, reunimos o equipamento fotográfico necessário sobre os sacos-camas enrodilhados. Vestimo-nos o mais possível, já com luvas e gorros. Subimos ao terraço panorâmico, também ele coberto de neve.
O sol começava a incidir no pico supremo das montanhas por diante, aos 7937 metros do monte Annapurna II, a décima sexta elevação do mundo. Iluminava uma névoa limiar provocada pela incidência da luz no cume gelado, reforçada pela neve que o vento arrancava à força das arestas expostas.
O raiar alastra-se pelo cimo daquela secção da cordilheira. Pouco depois, incide nas encostas abaixo e, aos poucos, no casario de Pisang instalado no seu sopé e no talvegue percorrido pelo Marsyangdi, o rio que nos continuava a acompanhar.
Os Aquecimentos Gentis do Sol e do Banho
O amanhecer não tarda a passar para o lado de cá do rio e abençoa a Upper Pisang íngreme em que o apreciávamos. Num ápice, a povoação recupera os sentidos. Corvos saídos do nada esvoaçam sobre os telhados brancos e os estandartes budistas tremelicantes, a debaterem-se pelos seus pousos preferenciais.
Alguns habitantes emergem das profundezas dos lares de pedra para apreciarem o que lhes trazia o novo dia. Quase uma hora depois, a bênção solar atinge também o cimo do monte Pisang, por detrás de nós, e oposto ao Annapurna II.
Por essa altura, lembramo-nos da água quente e dos banhos que não chegámos a tomar. Voltamos ao piso intermédio e procuramos por Mila. “Não se preocupem, já a voltei a aquecer” sossega-nos mal nos cruzamos junto à cozinha.
Ganhamos coragem, metemo-nos no compartimento exíguo de duche, despimo-nos arrepiados e entregamo-nos a ensaboares intercalados por catadupas tépidas que despejamos sobre nós de um pequeno alguidar.
O Aconchego Matinal de Mount Kailash
Vencida a passagem do término gélido do banho para o conforto da roupa invernal, sentamo-nos à mesa e atacamos as papas de aveia com maçã e mel que o anfitrião tinha acabado de servir. Ao mesmo tempo, aproveitamos o regresso da eletricidade para carregarmos o máximo possível de baterias.
Consciente de que ainda éramos os seus únicos clientes e de que os afazeres estavam controlados, Mila senta-se junto a nós. Conversa puxa conversa, percebemos que a pousada não lhe pertencia, que o ancião não era sequer de Pisang.
A Mount Kailash resultara da iniciativa de Bhujung Gurung, um nativo mais novo e aventureiro que mantinha nas paredes da pousada uma série de fotos suas, sempre barbudo, a cavalo e noutro tipos de aventuras. Mila e a família, tinham-se limitado a aproveitar a crescente notoriedade de Upper Pisang e a oportunidade que a tea-house lhes havia proporcionado.
Acima e Abaixo de Upper Pisang
Àquela hora, pouco mais conhecíamos da povoação que a rampa sinuosa para a Mount Kailash que, aliada ao peso excessivo das mochilas, nos tinha arrasado à chegada. Como tal, deixamo-las refeitas no quarto, gritamos um até já à Mila e saímos à descoberta.
Subimos uns metros adicionais na povoação. Apontamos ao templo budista que o terraço destacado antes nos tinha revelado. Já no interior do recinto, percebemos que estava entregue a um monge solitário, demasiado concentrado com as tarefas religiosas matinais ou habituado à paz do retiro para connosco perder tempo.
O sacerdote acende um fogo ritual numa torre chorten elementar, de pedras empilhadas. Quando o consegue, retira-se para um qualquer anexo e deixamos de o ver.
Curioso como é da sua natureza, um corvo suspeita que o fogo pode representar algum proveito.
Pousa sobre um mastro de bandeira de oração a uns poucos metros de nós e, por momentos, fica a controlar-nos os movimentos. Quando intui a mais que provável falta de proveito, debanda.
Os Derradeiros Momentos em Upper Pisang
Nós, percebemos que a subida do sol para o seu zénite, fazia derreter a neve noturna e descobrir os telhados azuis modernos e incaracterísticos que, para desilusão de qualquer fotógrafo, os nepaleses se habituaram a usar. Descemos para o âmago da povoação.
Seguimos a peugada de uma nativa que solta os iaques do curral, os leva a beber água e liberta para a habitual deambulação pastoral. Espreitamos algumas outras ruas, casas e recantos. Saudamos três ou quatro habitantes, os poucos com que nos cruzamos.
Tinham chegado as dez da manhã, a hora de nos pormos a caminho. De acordo, de volta à Mount Kailash, selamos as mochilas, colocamo-las às costas e despedimo-nos de Mila.
Caminhamos, motivados, rumo à orla da povoação, contornamos o seu muro mani de rodas de oração, atravessamos a estupa de saída/entrada e fazemo-nos ao trilho Annapurna Parikrama Padmarga, apontados a Ghyaru. A Ngawal e a Braga.
Mais informações sobre caminhadas no Nepal no site oficial do Turismo do Nepal.