Não há como falhar, é tão simples como isso.
Quem, como nós, procura os lugares imperdíveis de Lanzarote, acaba por os listar a todos num itinerário de descoberta da ilha: o Jardin de Cactus, em Guatiza, os Jameos del Água, o Mirador del Rio sobre a ilha de La Graciosa, a Casa-Museo del Campesino e o Monumento Al Campesino, o Restaurante El Diablo das Montanhas del Fuego, o Museu LagOmar.
Sem esquecer a Casa-Museo e a Fundação César Manrique. Todos estes, entre outros menos populares. Nem por isso a ignorar.
Nos dias que passamos em Lanzarote visitamos, claro está, aquele que foi o refúgio de José Saramago da hipocrisia e intolerância beata de demasiados dignitários e instituições portuguesas para com a sua pessoa e a sua obra.
Dois Autores Geniais para Sempre na História de Lanzarote
A presença de Saramago em Lanzarote de 1992 a 2010 (ano da sua morte) centrou a atenção dos media na vida exilada do escritor, sobretudo no período que se seguiu à atribuição do Prémio Nobel da Literatura, em 1998.
Hoje, o legado de Saramago está eternizado à escala universal em cada página dos livros que escreveu.
Após a sua morte, em termos tangíveis, imobiliários, vá lá que seja, Lanzarote, preservou pouco mais a casa de Saramago e Pilar, com a biblioteca de ambos, o escritório do escritor e restantes espaços comuns, incluindo uma varanda que dá para um jardim verdejante, com vista sobre o Atlântico.
Este património não chega a concorrer com o deixado por César Manrique, de tal forma abundante e diversificado que, a determinada altura, nos dá a sensação de se confundir com a ilha.
Nos dias supostamente primaveris que passamos em Lanzarote, os dias amanhecem nublados e frescos. Só já bem para o fim da manhã consegue o sol afastar o manto de nuvens denso que se forma durante a noite para logo fazer resplandecer os cenários.
As Formas e as Cores Lanzarotenhas
Sob as nuvens, Lanzarote parece-nos uma ilha a preto e branco com laivos de verde. Mal o grande astro irrompe por entre a nebulosidade, esse tricolorido ganha uma dimensão e complexidade de tons e formas antes difíceis de prever. Muitas das formas humanizadas de Lanzarote – de entre as excêntricas, pelo menos – são os contornos, jeitos e trejeitos da mente insatisfeita de César Manrique.
Os primeiros de que damos conta, encontramo-los nas imediações de San Bartolomé, no coração da ilha. Seguimos a estrada Tinajo quando vislumbramos uma espécie de totem modernista bem destacado acima do asfalto e dos campos em redor.
A escultura “Fecundidad”, de 1968, serve-nos de farol. Guia-nos até ao Museo del Campesino circundante.
Gerações após gerações, os nativos de Lanzarote viram-se servos de uma vida rural extenuante, local ou emigrada, em Lanzarote ainda mais ingrata devido à dificuldade em cultivar e obter produção de um solo vulcânico áspero.
Com o monumento e o museu, Manrique granjeou aos descendentes uma obra que dignifica e celebra a era dos seus pais, avós e bisavós.
Lá encontramos um conglomerado de pequenos edifícios alvos com janelos e varandins verdes que contrastam com a negrura vulcânica em redor.
César Manrique dotou-os de algumas das expressões incontornáveis da cultura campesina de Lanzarote: os vinhedos sobre a lava, protegidos por muros de pedra basáltica, à imagem dos da ilha do Pico. Instalações com os instrumentos mais usados na lavra da terra e na pecuária. Pequenas oficinas de tecelagem e cerâmica, exemplos pitorescos da arte que as gentes de Lanzarote aperfeiçoaram com os séculos e lojas que vendem exemplares em forma de recuerdos.
Madrid, Nova Iorque. De Lanzarote a… Lanzarote.
Manrique viveu o que pôde em Lanzarote. Na sua adolescência, mudou-se para Tenerife. Lá estudou arquitectura sem ter completado a licenciatura. Entre 1936 e 1939, alistou-se como voluntário numa unidade de artilharia do exército que servia Franco. Em 1945, mudou-se para Madrid.
Na capital espanhola, recebeu uma bolsa para frequentar a Escola de Belas-Artes de San Fernando. Nesta escola, formou-se como professor de arte e de pintura. Manrique viveu e expôs as suas obras de arte não-figurativa em Madrid durante os 19 anos que se seguiram.
Nesse tempo, foi associado ao movimento “informalista” que então ganhava relevo em Espanha, visto como um empenhado abstracionista, obcecado pelas propriedades e especificidades da matéria.
Em particular, com as da diversificada matéria vulcânica de que era e é feita Lanzarote. Em 1964, Manrique mudou-se para Nova Iorque. De chegada à Big Apple, voltou a ver o mundo com outros olhos.
O Autor e Artista Multifacetado
Em contacto permanente com o Expressionismo abstracto norte-americano, com a pop e a kinetic art que despontavam, Manrique enriqueceu o seu próprio estilo, aventurou-se de corpo e alma em diversas disciplinas.
De tal maneira que, nos dias que correm, ninguém se atreve a catalogá-lo como escultor, pintor ou arquitecto. Nem sequer como pertencendo mais a uma destas modalidades da arte.
Em Nova Iorque, viu ser-lhe atribuída uma bolsa Rockefeller que lhe permitiu alugar um estúdio e viver na cidade. Conheceu e lidou com outros artistas e personalidades de renome, entre os quais Andy Warhol.
O seu crescente estatuto e o das obras que criou já na cidade granjeou-lhe três exibições a solo na conceituada galeria Catherine Viviano. E um crescente desafogo financeiro.
A Beleza Crua e Insuperável de Lanzarote
Na sua mente, Nova Iorque era, no entanto, Nova Iorque. Por mais fascínio cosmopolita e artístico que a megalópole norte-americana lhe despertasse, nenhum lugar chegava aos calcanhares da sua Lanzarote.
Manrique chegou a proferir “Para mim, (Lanzarote) era o lugar mais bonito na Terra e eu percebi que se as pessoas o pudessem ver pelos meus olhos, pensariam a mesma coisa.” Mais que uma declaração, estas suas palavras não tardaram a soar a missão. A aventura novaiorquina durou dois anos.
Em 1966, Manrique regressou e entregou-se de alma e coração à sua ilha. Por esta altura, o turismo começava a tomar conta das povoações mais sedutoras de Espanha e, em particular, das Canárias.
Com os seus cenários resultantes de um vulcanismo excêntrico, Lanzarote, tinha o destino traçado por um exército de investidores construtores civis que proliferavam sem controle na Espanha de Franco: ser inundado de hotéis e resorts de cimento que acolheriam milhares de forasteiros e incentivariam novas construções afins.
De uma forma precoce, Manrique lutou pela sua consciência ecológica da paisagem, pela preservação da sua ilha e das Canárias. Malgrado o inexorável crescimento local do turismo, pelo menos em Lanzarote, vários dos seus pedidos às autoridades e à população continuam a ser atendidos.
São raros os outdoors publicitários e as vedações a infestar a beira das estradas, os prédios altos provam-se inexistentes e os moradores cativados pela filosofia de Manrique acrescentam tons pastel harmoniosos às paredes tradicionalmente brancas das casas.
Em vez dos outdoors publicitários, muitas rotundas foram embelezadas com intrigantes engenhos movidos a vento.
Fundação César Manrique: o projecto gradual e fulcral que Manrique nunca viu terminado
É um destes moinhos esdrúxulos mas hipnotizantes que nos recebe e fixa o olhar quando chegamos à entrada da Fundação César Manrique, uma verdadeira base experimental e galeria de arte expandida a partir da casa que habitava em Tahíche.
Isto, ainda antes de se ter mudado para a sua amada Haría, um vilarejo repleto de palmeiras, verdejante a condizer, situado no norte da ilha.
Na Fundação de Manrique, desvendamos, semi-incrédulos, aquilo em que se transformou o lar desafogado em que se instalou após o seu regresso de Nova Iorque, um lote com 30002 disposto em boa parte, sobre a lava de uma erupção do século XVIII do vulcão de Tahíche.
À medida que progredimos pelo espaço branco-cinza lava, salpicado de cardones espinhosos e um sortido improvável obras de arte: os estúdios dos artistas a ocuparem os antigos quartos do andar superior.
A cave disposta a agrupar cinco câmaras de lava amplas legadas pela solidificação do magma, cada qual decorada no seu próprio estilo inusitado, uma delas a dar para um jardim que faz fronteira com a própria maré de lava, embelezado de uma piscina, uma área de churrascos e até uma pista de dança.
Obras de Manrique mas Não Só
De volta ao âmbito que lá nos levou, a Fundação acolhe ainda uma galeria que expõe várias das obras da autoria de Manrique outras por ele obtidas ao longo da sua vida, entre as quais, esboços originais de Pablo Picasso e de Joan Miró.
A partir de 1982, a Fundação foi expandida por Manrique e um grupo de amigos. Só viria a ser aberta ao público dez anos mais tarde, após o acidente de viação ocorrido nas imediações da fundação que lhe abreviaria a vida.
A fundação César Manrique revelou-se um projecto gradual. Até porque Manrique e os seus a desenvolveram em simultâneo com intervenções paralelas que moldaram para sempre a ilha de Lanzarote e contribuíram para que conquistasse a classificação protectora de Reserva da Biosfera, a segunda a ser atribuída pela UNESCO às Canárias em 1993, dez anos após a classificação de La Palma.
Um Périplo Fascinante por Outras das Intervenções de Manrique
Como o próprio Manrique definiu “Eu tento ser a mão livre que molda a geologia.” E, de facto, a sua mente e mãos moldaram para sempre Lanzarote e outras ilhas das Canárias.
Depois da curta passagem pelo restaurante “El Diablo” do PN Timanfaya e das aventuras sensoriais do Museu del Campesino e da Fundação, progredimos para norte.
Damos entrada nos Jameos de Água e na Cueva de los Verdes, ambos situados num túnel vasto produzido por erupções do vulcão Corona, em pleno Monumento Natural del Malpaís de la Corona.
O primeiro, surge à beira do oceano Atlântico, o último, mais para o interior, dotado de uma sala de concertos que, com meras cadeiras e um palco aproveita a magnificência e a acústica especial da câmara.
Lá nos deslumbramos com a decoração, o paisagismo e os jogos de luz emprestados por Manrique e pelo seu aliado Jesús Soto.
Ao entrarmos nas profundezas dos Jameos, a elegância colorida e luxuriante da câmara adaptada a sala de refeições insinua-se como um prenúncio do insólito subterrâneo que se segue.
Descemos a escadaria para a beira de um lago azulado. Alguns visitantes chegados antes de nós acocoram-se minutos a fio.
Demoramos mas percebemos que se esforçam para fotografar os caranguejinhos albinos e cegos (munidopsis polyorpha) endémicos da gruta, num fundo pintado de vermelho pela luz artificial ali dissimulada e que contrasta com o azul petróleo da lagoa.
Cruzamos para o lado de lá. Da margem oposta, como por magia, vemos a escadaria vermelha espelhar-se e duplicar-se na água. De volta à superfície, ficamos de boca a aberta a contemplar a espécie de praia tropical-vulcânica e afundada com que Manrique continua a prendar os visitantes.
Dos Jameos del Água ao Mirador del Rio
Mais alguns quilómetros para norte, passamos pela sua casa de Haría, situada em pleno palmeiral e onde estão preservados mobília e pertences bem como o novo estúdio em que trabalhou até à morte.
Chegados ao limiar norte e abismal de Lanzarote, sob uns alísios furibundos, deixamo-nos deslumbrar pela miragem real da pequena ilha vizinha de La Graciosa e do arquipélago Chinijo. Esta sempre foi uma das vistas que mais admiração gerou em Manrique.
Sem espanto, Manrique lá ergueu o Mirador del Rio, um edifício que se confunde com a Natureza fronteiriça e, através das formas e da luz, a torna mais rica e acolhedora.
César Manrique também proferiu alto e em bom tom que “Lanzarote era como uma obra de arte sem moldura e por montar e que a pendurava e segurava para que todos pudessem admirar”.
Poderíamos ter passado outra semana a explorar e louvar o império artístico-naturalista que legou à sua ilha.