O Desfiladeiro Emblemático de Sela Pass
Arrasta-se, longo, íngreme e sinuoso, o percurso da planura de Assam para o âmago rugoso de Arunachal Pradesh. A certo ponto, aproxima-se dos 4170 metros de altitude do Sela Pass, uma portela frígida e ventosa que separa Kameng Ocidental de Tawang.
Cruzamos o pórtico budista entre as suas bandeiras de oração esvoaçantes. Contornamos o lago semi-gelado que a moldura nos desvenda e continuamos pelo último dos distritos adentro. Tanto alguns quilómetros aquém como para lá de Sela, os esses da estrada surgem salpicados de lona verde e de camuflado de campanha.
Sucedem-se tendas e paióis dissimulados, camiões e outros veículos menos pesados. Milhares de soldados, oriundos um pouco de toda a Índia, povoam e operam estas estratégicas colónias bélicas, que veríamos repetir-se até aos derradeiros metros do norte indiano.
Das alturas de Sela, atingimos a vertente que conduz à orla do vale de Tawang e as povoações que nele se instalaram: Dungkhar, Khalengche, Tongsheng. Tawang, a cidade, mantinha-se destacada, bem acima, na encosta contrária. O plano era nela nos abrigarmos para a noite.
Antes de o concretizarmos, impõe-se um derradeiro desvio a Thinmey, lugar de um mosteiro de monta, ainda assim, na sombra do maior e mais famoso da região.
Um Torneio Budista de Badminton
Chegamos sobre o último estertor da tarde. Distraímo-nos algum tempo com uma roda gigantesca de oração até que uma súbita algazarra vinda das traseiras do complexo nos desperta a curiosidade.
Um barracão delgado que servia de aposento separava o edifício principal de um pátio elevado de terra batida, munido de uma rede de voléi e de badminton.
Lá se concentravam os monges do mosteiro, em pleno torneio do desporto arraquetado. Dois pares aguerridos tinham-se já livrado da quase totalidade dos trajes cor-de-vinho. Defrontavam-se com uma fúria contida em função da sacralidade do lugar e da presença de jovens discípulos.
Estes, aguardavam pela sua vez de jogar a bebericar chá. E por que o fumo libertado pelas grandes panelas estorricadas que atravessava o telhado de zinco da cozinha e subia aos céus, se sublimasse na hora do jantar comunal.
A cozinheira de serviço, acompanhava as diabruras dos rapazes de Buda e, ao mesmo tempo, a cozedura de milktea nas mãos.
O ocaso ditou o término do torneio, a hora de nos refugiarmos no Hotel Yangzom e a iminência do nosso próprio repasto. Vínhamos de doze horas de fascinante mas dolorosa expedição rodoviária.
Não resistimos muitas mais.
Despertamos para o novo dia bem antes do sol. Espreitamos a casa que viu nascer Tsangyang Gyatso, o sexto Dalai Lama, um jovem da etnia mompa predominante nestas paragens.
Na sequência, atravessamos a Tawang urbana e visitamos uma enorme estátua do seu inspirador: Buda.
Um Mosteiro Budista de Monta
Mal tinha ainda amanhecido. Um pelotão de crentes circundava a base vermelha do trono colorido do sábio, a desfiar as contas dos seus malas, os rosários budistas. Os raios solares começaram a dourar um santuário longínquo, de tal forma resplandecente que nos arrebatou de vez o olhar.
Era muito mais que apenas outro mero mosteiro, o castro de edifícios brancos e amarelos que admirámos e fotografámos até a exaustão, contra um recorte caprichoso de montanhas sombrias.
Fundado em 1680-81, a 3000 metros de altitude, o mosteiro budista de Tawang mantém-se o maior da Índia. É, aliás, o segundo maior do mundo, logo a seguir ao de Potala que resiste à sino-invasão chinesa no coração tibetano de Lhasa.
Por volta das oito, o mosteiro e os monges residentes estavam entregues às suas rotinas. Vimo-los concentrarem-se em frente a uma longa ala escolar, logo, agruparem de frente para o edifício, costas voltadas para cidade e o cenário de cordilheira que a envolvia.
Excêntricos Debates Matinais
Outros, surgem do interior das salas de aula e de partes distintas do complexo. Trazem cadernos e blocos. Formam novos grupos no terraço e dão início a uma animada sessão de debate budista, repleta de palmas, gritos silogísticos e réplicas desafiantes.
Uma hora e meia depois, o debate e os ensinamentos são encerrados. Um batalhão de monges e monginhos forma sobre o terraço e assiste a um discurso vagaroso de um dos mentores do mosteiro.
Segue-se uma oração de grupo que os mais novos acompanham, os da fila da frente compenetrados e de olhos fechados, sob a supervisão bafejante dos velhos tutores.
Entretanto, também aquela sessão de fé e disciplina chega ao fim.
Os adolescentes e a criançada dispersam entre um óbvio alívio e o êxtase, muitos deles para a alameda de acesso de mosteiro que não tardam a varrer em cadeia.
Uma Festa Militar a Caminho de um Convento
Deixamos os monges ocupados com a sua fascina. Tawang acolhia também um convento, o de Ani. John, o guia local era da opinião de que o devíamos visitar.
Fizemo-nos, assim, ao caminho mas, sem que alguma vez o esperássemos, vimo-nos emboscados por um batalhão militar que controlava não só a estrada de acesso, como uma vasta área em redor.
Por motivos que não tardaremos a explanar, Arunachal Pradesh é uma das províncias indianas mais delicadas em termos de segurança e presença de estrangeiros. Fazíamos parte de uma comitiva de jornalistas, todos munidos de vistos especiais que lhes granjeavam a cobertura do lugar.
Mesmo assim, quando um enorme soldado sikh faz deter o carro em que seguíamos, ocorre-nos pensar que podemos estar em sarilhos.
É pobre o inglês do militar, pelo que nos assiste a tradução do motorista. “Organizaram uma festa Punjabi lá no batalhão deles. Fazem questão de que participem.”
De início, torcemos o nariz. A outra metade do nosso grupo tinha já chegado ao convento. Não queríamos perder o lado feminino da religiosidade budista de Tawang.
Mas, quando o motorista nos diz que temos tempo; que não ia haver problema se chegássemos ao convento mais tarde, deixamos de sentir restrições e valorizamos o convite como merecia.
Momentos depois, damos por nós a conviver com dezenas de oficiais e soldados indianos: punjabis e sikhs, quase todos robustos e de postura altiva, como é seu apanágio. Oferecem-nos papad e outras especialidades em thalis sortidos.
Depressa percebemos que nos faltava estômago para o picante usado, desculpamo-nos e passamos a suaves sobremesas de kheer, o arroz doce indiano.
Mais e mais militares e populares se juntam ao convívio e ao ataque aliado de uma longa mesa de bufê. Soa musica festiva mas, contida pela seriedade da missão do batalhão, a festa nunca chega a descambar para devaneios bollywoodescos.
A Força Bélica Indiana que Dissuade a China
Ali, como em redor do Sela Pass e noutros lugares de Arunachal Pradesh, a presença do exército indiano tem uma razão histórica e outra actual de ser. Entre ambas, jaz a segurança e a supremacia da sua vasta e mega-populosa nação.
Por volta de 500 a.C., a região de Tawang era já dominada pela etnia Mompa. Fez parte do reino do Butão. Mais tarde, viu-se incorporada no do Tibete e assim permaneceu durante séculos a fio.
Em 1914, com os Britânicos cada vez mais predominantes nesta zona da Ásia, um tal de Acordo de Shimla entre a Grã-Bretanha, a Índia e o Tibete, forçou o Tibete a ceder várias centenas de km2 à Grã-Bretanha. O tratado foi desprezado pela China.
Durante todo este período, mesmo separada do Tibete, Tawang manteve-se sempre acessível aos tibetanos. Em 1950, a China invadiu o Tibete.
Tawang tornou-se-lhes gradualmente inacessível. Uma ferida aberta entre a China e a República Indiana, declarada independente apenas três anos antes.
Desde o início da sublevação e em especial durante as revoltas de 1959, a Índia prestou apoio aos tibetanos, incluindo ao Dalai Lama a quem concedeu, de imediato, asilo.
Em simultâneo, deu início à sua Forward Policy em que estabeleceu diversos entrepostos militares, até mesmo a norte da Linha Fronteiriça de McMahon (definida pelo Secretário para os Assuntos Estrangeiros Henry McMahon).
Por seu lado, meses após o acordo de Shimla, a China tinha já estabelecido os seus próprios entrepostos a sul dessa linha. Como seria de esperar, a divergência levou ao confronto.
Breves Confrontos Fronteiriços
Incapazes de fazer valer os seus intentos, os chineses lançaram ofensivas na região de Ladakh e, ao mesmo tempo, através da Linha McMahon. Fizeram-no em plenos Altos Himalaias, num dos cenários de guerra mais agrestes de sempre.
E em plena Crise dos Misseis Cubana quando o atrevimento soviético em Cuba deixou os E.U.A. em apuros e indisponível para apoiar a Índia.
Em 1962, Tawang viu-se, assim, ocupada pela China, à imagem de uns quase 40.000 km2 antes pertencentes à Índia ou sob disputa.
Satisfeitos com o resultado da sua invasão mas cautelosos, os chineses declararam um cessar-fogo unilateral e recuaram de algumas das posições. Tawang foi uma delas.
A partir de Novembro de 1962, regressou a controlo indiano. Como seria de esperar, Delhi nunca recuperou do trauma. Com a casa roubada, colocou trancas à porta.
Deixamos o banquete, agradecidos pelo convívio e pelas gentis fotos de grupo, apostados em recuperar os planos originais.
Quando chegamos ao convento, a outra metade do grupo estava de saída. Acolhe-nos apenas um pórtico com a mensagem tibetana de “Tashi Delek” traduzível como “Benção e Boa-sorte” ou “Saudações Auspiciosas”.
O Convento de Ani e o Regresso ao Mosteiro
Chateamos, em segunda mão, as poucas freiras esquivas que por lá encontramos.
Do convento, regressamos ao coração de Tawang e exploramos o seu mercado de rua frenético. À tarde, visitamos, Tipki, uma aldeia tradicional mompa no fundo do vale, onde somos recebidos com tal festa, pompa e cerimónia que o preferimos narrar num artigo dedicado.
Deixamos a aldeia já sobre o pôr-do-sol e voltamos ao abrigo nocturno do hotel.
Novo dia, novo despertar sofredor, ainda mais madrugador que o prévio. Regressamos ao mosteiro de Tawang decididos a assistir à reza matutina dos monges aprendizes.
Quando entramos no complexo ainda é de noite e não detectamos vivalma. Sentamo-nos à porta do templo principal, numa expectativa sonolenta.
Por fim, com os primeiros raios solares a furarem as nuvens a leste, uma torrente de “pequenos budas” surge da ala habitacional do mosteiro, atravessa o pátio e irrompe templo adentro em grande correria.
Os jovens monges sentam-se em várias linhas e recebem uma taça de leite que lhes quebra o jejum.
Na sequência, um sacerdote adulto dá início à cerimónia com cânticos e orações ressonantes que nem a nossa cada vez mais dinâmica intromissão atrapalham.
Deixamos o mosteiro sob pressão de John que, nesse resto de dia, tinha que nos conduzir a todos de regresso a Guwahati, a capital da província vizinha de Assam.
O sol que entrava em força pelas janelas do templo, atingia as faces de uns poucos monges eleitos. E reanimava a missão defensiva dos muitos batalhões do exército indiano por ali destacados.
Mais informações sobre Tawang e o seu mosteiro no site Incredible India.