A determinada altura da conversa, Othamn Masoud inaugura uma lição de gentílicos em suaíli: “inglês dizemos Kiingereza, francês é Kifaransa.
Portugal?? Portugal é Ureno e português é Kireno! Não vos sei explicar o porquê” confessa-nos o adolescente quanto tentamos perceber a discrepância fonética do termo.
O mistério intriga-nos.
Entretanto, passados vastos arrozais ressequidos que aguardavam as monções, chegamos à floresta verdejante de Jozani. Recebe-nos Hassan.
Apresenta-se trajado de acordo com a sua religião e o ofício.
A Fauna Excêntrica da Floresta de Jozani
Traz uma kofia – barrete islamita em estilo do sudeste africano – e galochas de borracha.
Sobre os trilhos apertados, revela-nos um raro musaranho saltador antes de seguirmos para o reduto da espécie menos tímida e, por isso, mais ameaçada de extinção daquele ecossistema exíguo: o macaco colobus.
Em três tempos, dezenas de espécimes felpudos e listados, brancos e negros, descem das copas das árvores para a proximidade do vasto manguezal e concedem-nos um curioso convívio investigativo.
Como o dia ainda ia a meio, aproveitámos para passar por uma das várias granjas de especiarias que coexistem em Anguja, a maior ilha de Zanzibar.
Conduziu-nos, nesta ocasião, Abdallah Rasih, um guia nativo experiente com vozeirão e porte a condizer.
Pelo que percebemos, desenvolveu-se com o passar do tempo um estilo muito próprio de apresentação destas granjas e das plantas aos visitantes.
Uma Incursão pelas Especiarias Abundantes de Zanzibar
O seu ingrediente fulcral era a total ausência de expressividade facial e o suspense. “já viram estas folhas, indaga-nos Ysuf, um anfitrião da granja? Esta textura, conhecem?
E este cheiro? Se calhar, pelo cheiro já vão lá? E se esmagar as folhas assim?
Assim já sabem o que é ? Muito bem, é citronela!” confirma-nos.
Depois de termos passado por rituais mais ou menos exaustivos para o cravinho a canela, a noz moscada, a pimenta e por aí fora.
O Pequeno Forte Português e a Razão de Ser do Termo Ureno
A explicação para a sua presença tão distante da origem geográfica estava associada ao mistério de “Ureno”. Não tardámos a desvendá-lo.
“Bom, já que vimos uma das vossas heranças e estamos aqui tão perto, vamos espreitar o sítio onde se crê em que os navegadores portugueses primeiro ancoraram”.
Seguimos de carro até Fukuchani. Ali, Abdallah mostra-nos as ruínas de um edifício que se acreditou durante muito tempo ter servido de fortificação aos primeiros descobridores a desembarcar naquelas paragens.
A passagem de Vasco da Gama pelo arquipélago ditou a sua incorporação na província de Arábia e Etiópia do reino de Portugal, que então se expandia a forte ritmo num império.
Segundo apurámos na Internet e nos pareceu fazer todo o sentido, Ureno, o tal gentílico suaíli derivou de os portugueses terem sido conotados como o povo do Reino.
Também foram eles os responsáveis por as especiarias se terem disseminado pelo leste de África.
A Bordo do Dala Dal (autocarro) 117, Rumo à Cidade de Pedra
Num novo dia, solarengo como todos, deixamos o acolhedor Mapenzi, avançamos até à estrada que percorre a costa leste da ilha e aguardamos que passe o primeiro dala dala (autocarro à moda local) apontado à cidade de Zanzibar, a capital da ilha.
Não esperamos cinco minutos quando apareceu o 117, proveniente de Kiwenga e à pinha. O motorista intui lucro adicional. Faz-nos seguir ao seu lado em vez de na cabine sobrelotada. Cobra-nos o dobro.
Por um lado, furta-nos a eventual interacção com os outros passageiros mas, pelo outro, apreciamos melhor o caminho.
O dala dala pára a todos os momentos e em todos os lugares instruído por nativos que saem do nada ou pelos passageiros em frequentes disputas verbais.
Passa por motoretas, bicicletas, carros de bois e pedestres que se adensa à entrada das povoações, perdidas entre colónias densas de coqueiros e bananais.
Abundam as escolas, fáceis de identificar àquela hora da manhã pelos inúmeros grupos de jovens em uniformes, ainda mais quando avistávamos longas procissões de raparigas todas cobertas por jilbabs ou combinações de hijabs com túnicas.
São apertadas as bermas da estrada mas a população parece já se ter habituado a levar a sua vida em sincronia e até em função do trânsito.
O dala dala número 117 passa por uma vivenda que apuramos ter sido domicílio do explorador escocês David Livingstone.
Ao lado, vários masais trabalham na construção.
À Deriva pelas Ruas e Ruelas da Cidade de Pedra, Capital de Zanzibar
Logo, embrenha-se na orla da cidade de Zanzibar e na estação de dala dalas do mercado de Darajani.
Esta zona da cidade transborda de gente. Inunda-nos os sentidos de movimentos, das cores, dos cheiros e dos sons da miríade de produtos e transacções que ali têm lugar.
Exploramo-lo com o fascínio que qualquer mercado genuíno de uma cidade africana secular nos desperta.
Perdidos naquele labirinto sobrelotado, recorremos a um mapa e fazemo-nos ao que pensamos ser uma entrada viável da Cidade de Pedra, a cidade velha com arquitectura predominante do século XIX que a UNESCO classificou, em 2000, de Património Mundial.
Sobretudo, devido à incrível mistura de influências de elementos árabes, persas, indianos e europeus, meia centena de mesquitas, seis templos hindus e duas igrejas católicas subjacentes à cultura agregadora suaíli.
Caminhamos com a orientação única do mar pelas ruelas ora sombrias ora solarengas, raramente desertas. Grande parte dos edifícios que as delimitam estão degradados ou em ruína.
Preservam um encanto decadente.
É o caso do Forte Árabe que foi erguido como defesa pelos ocupantes de Omã, em 1780, no lugar em que existia uma capela portuguesa.
Acolhe, em Fevereiro, o Sauti za Busara, Festival de Música de Zanzibar, um dos maiores eventos de música étnica do Mundo.
A Origem Zanzibarita de Farouk Bulsara, Mais Conhecido por Freddy Mercury
A Cidade da Pedra tem uma outra relação fascinante com a música.
Foi na rua Kenyatta que também percorremos que nasceu, em 1946, Farrokh Bulsara, filho de pais parses e zoroástricos indianos.
Farouk viveu em Zanzibar até aos nove anos até que a família se mudou para a Índia. Em 1970, chegou a Londres. Já na capital inglesa, sob o pseudónimo de Freddie Mercury, liderou uma banda que poucos leitores desconhecerão, de nome Queen.
Regressamos atrás no tempo e à frente marítima da Cidade de Pedra.
Mesmo ao lado do Forte Árabe, destaca-se pela sua dimensão suprema, o Beit-el-Ajaib ou a Casa das Maravilhas. Um sultão mandou erguê-la em 1883.
Conquistou o título por ter sido o primeiro edifício da ilha dotado de iluminação eléctrica e o primeiro da África Oriental equipado com elevador movido a electricidade.
Nos dias que correm, o acesso ao interior está interdito. A grande torre do relógio parado dá horas falsas.
Nas imediações, a antiga casa do zanzibarita Tippu Tip é considerada uma das ruínas mais majestosas de África.
Tippu Tip, terá ganho o seu nome pelo som que as muitas armas ao seu dispor faziam nas incursões negreiras que liderava ao interior de África com o fim de capturar escravos para as suas plantações de cravinho e para as de outros proprietários.
Então, as embarcações a que se socorria partiam da marginal onde nos sentamos a apreciar os dhows (barcos árabes de vela triangular) e outros na sua azáfama turística ou pesqueira.
Aos dhows em particular, haveríamos de os voltar a ver passar com grande frequência a partir das areias de pó-de-talco ao largo da ponta norte de Anguja, a ilha principal de Zanzibar.
Durante o dia, os barcos velozes sulcavam as águas azul-turquesa do oceano cálido em que nos banhávamos.
Com o sol a pôr-se, transformavam-se em silhuetas geométricas que íamos acompanhando até ao anoitecer.