Provou-se quase imediata a sensação de intimidade com a nova escala do périplo caribenho que havíamos inaugurado quase quatro meses antes.
Tínhamos aterrado, fazia uma meia-hora, provindos de Port of Spain, Trinidad. Na deslocação entre o aeroporto e o centro de Willemstad, metemo-nos numa carrinha estilo Hiace, daquelas bem populares e económicas, que acolhe passageiros pelo caminho.
Sentados em lugares dianteiros, escutamos os diálogos entre as passageiras de todos os dias e o condutor, que as conhecia de ginjeira. De conversa de ocasião, a interacção evoluiu para tagarelice. Sem que o esperássemos, quanto mais os ouvíamos mais nos parecia identificarmos sons e palavras.
Evitamos precipitar-nos. No entanto, entre tantas outras expressões e termos do crioulo local, continuaram a repetir-se “tá bom” e “tio”, estes, bem mais que alguns outros.
Quando chegamos ao destino final de Otrobanda, estávamos convictos a dobrar da influência do português no papiamento, o dialecto oficial de Curaçao e de Aruba, também falado em Bonaire, a ilha B” do famoso trio ABC do Caribe Holandês.
Otrobanda. A Caminho de Punda
Saímos na derradeira paragem de OtroBanda. Tínhamos marcado alojamento numa das ruas de Punda mas, com o mapa estudado, sabíamos que era curta a distância entre ambas.
Metemo-nos a caminho. Pouco depois, confrontamo-nos com o canal de Sint Annabaai que nos separava de Punda.
A sudeste, como em redor, o céu mantinha-se limpo e azulão, condizente com a atmosfera seca e ventosa que se fazia sentir. Percorriam-no, apenas, caravanas velozes de pequenas nuvens brancas.
Este firmamento em fundo reforçava a elegância arquitectónica e, àquela distância, sobretudo cromática, da Handelskade, a marginal encerrada por uma linha de prédios históricos exuberantes.
Metemo-nos pela ponte móvel Rainha Emma que, nos dias seguintes, haveríamos de cruzar vezes sem conta. Sentimos, pela primeira vez, o seu estranho menear.
A ponte deixa-nos de frente para o que nos pareceu o mais intrincado dos edifícios do conjunto.
O Penha faz de sede de um dos comerciantes de produtos de beleza pioneiros das Caraíbas, de portas abertas desde 1708.
Surge à entrada da espécie de centro comercial histórico instalado ao longo da Breedestraat, a via por que prosseguimos a caminhada.
Damos entrada nos aposentos já sobre as quatro da tarde. Com trabalho de “tipo escritório” por completar e os dias em Curaçao ainda em aberto, já não saímos.
O dia seguinte amanhece igual. Aproveitamo-lo ao máximo, com deambulações longas e aturadas por praticamente todas as ruas e ruelas, para começar, as da Punda em redor.
O Principal Entreposto Esclavagista da Holanda no Atlântico
Ditaram o tempo e a história que Willemstad se desdobrasse em áreas bem demarcadas. Essa sua diversidade só lhe granjeia interesse.
Punda foi a primeira zona a surgir, a partir de 1634, o ano em que os holandeses conquistaram Curaçao aos espanhóis. O seu nome derivou do holandês de punt, a Ponta.
Ciosos de que Espanha – ou outro qualquer rival colonial – poderia almejar a ilha, os novos donos apressaram-se a erguer muralhas.
Três décadas mais tarde, até à abolição holandesa do esclavagismo, Willemstad manteve-se o principal polo de comércio de escravos da Holanda, capturados ou adquiridos no litoral oeste de África, vendidos para os restantes territórios coloniais das Caraíbas e das Américas, não só os holandeses.
Este comércio fez aumentar a população de Punda a grande ritmo. O potencial da colónia atraiu novos comerciantes.
Século XVI: a Chegada dos Judeus Sefarditas ainda em Fuga da Inquisição
No final do século XV, o rei D. Manuel decretou a expulsão de todos os judeus que não se convertessem ao catolicismo. Em 1497, cerca de vinte mil judeus concentraram-se no porto de Lisboa, decididos a partir.
Muitos, rumaram ao norte da Europa, sobretudo Alemanha e Países Baixos. Dos Países Baixos, uma parte, atravessou o Atlântico e instalou-se na Nova Holanda, o território do norte do Brasil ocupado e explorado pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais.
No contexto complexo de disputa do norte do Brasil entre Portugal, a Holanda e Espanha, Portugal prevaleceu. Na sequência, o Tribunal do Santo Ofício Português dedicou-se a identificar e a castigar os judeus que tinham fugido da sua acção na Europa.
Milhares de sefarditas recém-chegados à Nova Holanda voltaram a fugir. Muitos, rumaram a Nova Amesterdão (mais tarde, Nova Iorque). Outros, dispersaram-se por colónias caribenhas e das Índias Ocidentais. A começar por Curaçao.
A componente portuguesa e crioula-portuguesa do dialecto papiamento advém da linguagem introduzida pelos judeus sefarditas, dos dialectos falados pelos escravos chegados de territórios portugueses, da actual Guiné-Bissau de Cabo Verde e até de São Tomé e Príncipe.
Os judeus instalaram-se e aos seus prolíficos negócios em Punda.
A Expansão para fora do Domínio Muralhado de Punda
Com eles, o número de lares e edifícios comerciais aumentou sobremaneira.
De tal forma, que as autoridades se viram obrigadas a aprovar a expansão da colónia para fora das muralhas, a uma distância de cerca de 500 metros que permitisse aos canhões do Forte Amesterdão alvejar navios ao largo, sem edifícios pelo meio.
Essa nova povoação, Pietermaai, estendeu-se para sudeste de Punda e do braço de mar de Waaigat que a delimita a norte.
Dia após dia, deambulamos por ambos.
Confirmamos em Punda, o perfil mais urbano de Willemstad, repleto de prédios de quatro e cinco andares de corres garridas, culminados por águas furtadas com fachada recortada, numa óbvia transposição da arquitectura de Amesterdão e de outras partes da metrópole holandesa.
E, a despontar do conjunto, a sinagoga de Curaçao, erguida pelos judeus sefarditas chegados da Holanda e do Brasil, hoje, a sinagoga mais antiga das Américas, com piso de areia, como se tornou hábito nas Caraíbas.
Lá nos sentamos e acompanhamos a dissertação de um rabi norte-americano que a desbobinava tim-tim por tim-tim a cada novo grupo de visitantes.
As Vivendas Seculares de Pietermaai e os Prédios “holandeses” de Punda
Em Pietermaai, predominam as vivendas, envelhecidas, senhoras de uma deslumbrante decadência colonial. Algumas, foram transformadas em bares e restaurantes que combinam mobília velha, mas elegante com murais, pinturas e outras decorações criativas.
Willemstad é, toda ela, uma deslumbrante galeria de arte de rua, repleta de murais tridimensionais, que aproveitam as formas de contadores de água e outros recursos criativos inspiradores.
Devido aos preços hiperinflacionados, a sua marginal está reservada aos passageiros dos cruzeiros.
Mais para dentro, os inevitáveis franchises multinacionais também marcam presença. Malgrado as sucessivas marés de turistas desembarcados, Willemstad preserva alguns recantos antigos e genuínos.
A tasquinha que anuncia petiscos de kuminda krioyo que identificamos sem grande esforço: os pastechi, serbes i refresco, pan ku krokèt, ku frikandel ou ku hotdog.
Noutros estabelecimentos, a excêntrica sopa tradicional de iguana também servida na Plasa Bieu!, a extensão gastronómica do Old Market.
O Influxo de Migrantes Venezuelanos e da sua Cultura
Há uns poucos anos, este mercado contava com uma ala flutuante de frutas e vegetais sobre as águas de Waigaat que dependia da chegada de produtos e de vendedores da vizinha Venezuela.
Deixou de funcionar quando o presidente Nicolas Maduro ordenou o fecho das fronteiras com as ilhas ABC. Condenados pela miséria que se alastra na sua nação, os venezuelanos continuam a chegar, muitos deles (quase todos) por meios ilegais.
Instalam-se e enriquecem o caldeirão étnico e cultural secular de Curaçao.
Ao entardecer, sentados numa das esplanadas da Handelskade, ouvimos alguns deles tagarelar no castelhano suave do sul do Caribe.
E, pouco depois, prendarem os clientes com uma cantoria generosa de rumba, reggaeton e outros sucessos latino-americanos.
Por essa altura, devido a uma qualquer necessidade da navegação, as autoridades portuárias mantinham a ponte móvel recolhida. A substituí-la, colocaram ao dispor um pequeno ferry com convés elevado.
Agradados com a variante, cumprimos a viagem no seu cimo.
Uma e outra vez. Para cá e para lá, até nos fartarmos.
Travessia à Descoberta de Otrobanda e de Scharloo
Por fim, desembarcarmos à descoberta de Otrobanda, o bairro oposto de Punda, seu rival quase espelhado se bem que sem o mesmo deslumbre arquitectónico do lado de lá da Sint Anna Bay, tratado por “lado hispânico”, por conta do perfil dos seus habitantes.
Lá visitamos o museu antropológico Kurá Hulanda, que exibe e explica a história do tráfico esclavagista do Atlântico. Guia-nos Yflen Florentina, ela própria, descendente dos escravos radicados em Curaçao.
Subimos a níveis mais elevados de Otrobanda, entre vivendas arejadas, aqui e ali, à conversa com os seus moradores, às tantas, com tentativas esforçadas de empregarmos uma ou outra expressão do papiamento.
Até que escurece. Descemos de volta para a Sint Anna Bay. Da sua beira, admiramos a iluminação artificial da frente de Handelskade destacar-se do crepúsculo.
Voltamos a passar para lá, pela ponte que está de novo operacional. Regressamos às margens de Waigaat.
Aventuramo-nos por Scharloo, o quarto bairro de Willemstad, na génese, uma plantação abandonada onde, mais tarde, os mercadores judeus abastados ergueram as suas villas.
Evoluiu, assim, para se tornar o sector grãfino da cidade, até que, por volta de 1960, entrou noutro dos deliciosos declínios da ilha.
Lá nos sentamos numa esplanada popular. Lá saboreamos cervejas Brion geladas. Tínhamos o tempo por nossa conta. Willemstad e Curaçao mereciam muito mais.