No ponto exacto em que se entrega ao oceano Atlântico, o rio Gâmbia estreita.
É aí que o cruzamos, com partida do porto da capital gambiana, Banjul.
O ferry cumpre a ligação entre o sul e o norte da nação, dividida na íntegra pelo rio, com 1100 km de extensão, um dos mais longos e largos da África Ocidental.
Como quase sempre, vai à pinha, dentro de um limite de pessoas e carga que, confrontadas com naufrágios terríveis nas suas águas e ao largo, as autoridades se viram obrigadas a respeitar.
Sobre o convés, os passageiros ocupam todos os bancos disponíveis, costas contra costas, joelhos contra joelhos.
Seguem de pé, à galhofa, contra as vedações limiares do barco. Malgrado o aperto, dezenas de vendedores percorrem os espaços entre filas. Impingem amendoim e caju, máscaras sanitárias, utensílios para telemóveis e afins.
Outros, promovem cabeleiras e uma incrível farmácia naturalista portátil.
Meia-hora de navegação depois, já sobre a margem oposta, avistamos uma frota de pirogas, lado a lado sobre um areal, aquém de um casario abarracado que, a espaços, se funde com uma linha de coqueiros, de palmeiras, de outras árvores tropicais.
No limiar nordeste da costa, vislumbramos ainda muralhas de uma fortificação.
Entre embondeiros massivos que a época seca desfolhou, esconde-se o emblemático forte Bullen.
O Desembarque em Barra, do Outro lado do Rio Gâmbia
Um grande pórtico dá-nos as boas-vindas: “Welcome to Barra”.
Uma multidão de passageiros desembarca para uma via murada que os leva mais para dentro desta povoação contraponto de Banjul.
Mesmo escrita em inglês, a única língua oficial da Gâmbia, a mensagem incorpora o nome secular português da região: “Barra”, em vez do Niumi que o antecedeu.
Foram os navegadores enviados pelo Infante D. Henrique, os responsáveis por o Reino de Niumi vigente em redor da boca do rio Gâmbia, ficar conhecido como Reino de Barra, mais tarde, apenas como Barra.
Em 1446, durante a sua quarta viagem ao longo da costa ocidental de África, com a missão de chegar à África negra, Nuno Tristão, terá entrado pela foz de um rio da zona, subsiste a polémica quanto a qual, se o Gâmbia, ou outro mais a sul.
Por ele acima se aventurou. Enquanto pôde. Cerca de oitenta nativos (estima-se que Niumi) que seguiam sobre mais de dez canoas cercaram e atacaram o batel para que se tinha transbordado, com vinte e poucos homens.
Dispararam sobre os portugueses centenas de flechas envenenadas.
Só quatro dos alvos sobreviveram para, a muito esforço, regressarem a Lagos e contarem a tragédia. Nuno Tristão não foi um deles.
Com o ferry já a preparar-se para o regresso a Banjul. Damos seguimento à nossa própria, incomparável, aventura.
Sem surpresa, abordam-nos vários “empresários” da cidade. Uns, são condutores de táxi e de sept-places.
Outros, oportunistas que que lucram de recrutarem passageiros toubab (leia-se brancos) a preços inflacionados. Voltamos a exasperar com os esquemas destes “gambian men”, assim conhecidos entre os forasteiros pela sua imaginação negocial e falta de escrúpulos.
Enfiamo-nos num velho VW Golf. Apontamos a Albreda, 33km para sudeste e o interior da Gâmbia.
E a Chegada a Albreda
Lá nos recebe Mrs. Aminata, a co-proprietária do Kunta Kinteh Lodge em que iríamos pernoitar. Aminata é tão branca quanto possível. Tem olhos azuis, algo siameses.
Fala com um leve british accent. Não obstante, traja grandmubas, vestidos tradicionais gambianos repletos de folhos e cores. E é muçulmana.
Quando lhe narramos o frenesim da garage (gare de transportes) de Barra, Aminata desabafa. “Por cá, quando veem pele branca, veem dinheiro. Comigo é a mesma coisa!”
Ms. Aminata, serve-nos almoço. Um guia local não espera sequer que terminemos. Senta-se à mesa. Faz de tudo para que o recrutemos antes de outros.
Naquele momento, queríamos deambular. Assimilar os visuais e atmosfera do lugar. É o que fazemos.
Depressa constatamos a vida dupla de Albreda, dividida entre o dia-a-dia da comunidade local de pescadores e o dos moradores que se dedicam ao mais proveitoso acolhimento e acompanhamento dos visitantes.
À hora do calor, um grupo de barqueiros e guias tagarelavam à sombra, junto à base do pontão que serve Albreda.
À nossa passagem, interrompem a conversa para nos venderem os seus serviços.
Adiamo-los.
O Memorial UNESCO do Tráfico de Escravos de Albreda
Apreciamos o “Never Again Monument”, símbolo anti-esclavagista e modernista com cabeça de planeta Terra, corpo de gente e braços desagrilhoados ao alto.
Três burros erráticos detêm-se na sua base, a devorarem uma rara erva tenra.
Quatro ou cinco cabras fazem o mesmo, sob duas enormes sumaúmas. Passamos junto às suas raízes, em busca do Museu da Escravatura.
Examinamos mapas, painéis explicativos e outros itens e aprendemos um pouco mais sobre o flagelo que assombrou África séculos a fio.
Entre Albreda e as ruínas de São Domingos que logo nos propusemos encontrar, também percorremos a génese do tráfico de escravos europeu.
Perdidas numa floresta ribeirinha, estas ruínas e – apesar de já quase imperceptíveis – as da capela no centro de Albreda, testemunham a presença pioneira dos portugueses, nestas terras que o desfecho da expedição de Nuno Tristão augurava traiçoeiras.
O Regresso à África Ocidental e a Exploração do Rio Gâmbia
O Infante D. Henrique voltou à carga. Volvida uma década, enviou dois outros navegadores, o veneziano Alvise Cadamosto e o genovês Antoniotto Usodimare.
Em Maio de 1456, evitando expor-se demasiado aos nativos Niumi, ancoraram junto a uma pequena ilha, cerca de 3km ao largo da actual Albreda.
Lá terão enterrado André, um marinheiro que a viagem vitimou. Após o que procuraram estabelecer contacto.
Em 1458, seguiu-se-lhes Diogo Gomes.
No regresso de uma incursão ao estuário do Rio Grande de Geba (Guiné Bissau), o navegador de Lagos, voltou a ancorar na recém-baptizada ilha de Santo André.
Desta incursão, veio a resultar a aquisição da ilha a mansas (reis) mandingas locais e ainda a sua autorização para o assentamento fortificado de São Domingos.
Os portugueses apostavam em se imiscuírem nas rotas auríferas que ligavam Timbuktu e o Alto Níger, pelo Saara, ao litoral marroquino. Em vez do ouro, deparam-se com escravos.
O Tráfico de Escravos Fomentado pelos Reis Indígenas
Tal como há séculos faziam com mercadores árabes e de outras paragens de África, diversos reis mandingas procuraram comerciar prisioneiros das suas guerras com os portugueses.
Os portugueses acederam.
Em breve, passaram a fomentar as capturas de nativos africanos em maior número, para uso dos escravos nas suas distintas colónias, com destaque para o Brasil.
Após a União Ibérica de 1580, a coroa espanhola institucionalizou o sistema de asientos que viabilizava contractos de tráfico de escravos com mercadores de outras nações.
Nos séculos XVI e XVII, franceses, holandeses, britânicos, curlandeses, suas companhias privadas e mercenários gananciosos aproveitaram esta brecha no monopólio português e aniquilaram a supremacia portuguesa nas margens do Gâmbia e no litoral em redor.
O centrado na Ilha de Goreia era igualmente prolífico.
Mesmo assim, até ao século XVIII, por lá persistiram bolsas de colonos lusos.
Os Refugiados sem Retorno da Guerra Civil Guineense
Hoje, por motivos distintos, muitos habitantes do rio provêm da lusofonia mais próxima.
Regressados das ruínas de São Domingos, cruzamo-nos com o sr. Eduardo, um homem de etnia diola, esguio, enfiado numa velha camisola da selecção portuguesa e que ainda dizia o dinheiro em contos.
Entendemo-nos num nosso esboço de crioulo e em português.
Eduardo explica-nos que a Guerra Civil de 1998-99 o obrigou a deixar o norte da Guiné Bissau.
À imagem de tantos outros refugiados no Senegal e na Gâmbia, nunca mais voltou.
Eduardo queria levar-nos à ex-ilha de Santo André. As autoridades turísticas atribuíram-nos outro barqueiro.
A Ilha Memorial de Kunta Kinteh às Ruínas do Fort St. James
Atingimos a ilha num ápice. Lá cirandamos entre as ruínas do forte e os embondeiros despidos que lhe servem de sentinelas.
Nas décadas seguintes, como o rio que a envolve, a ilha mudou de potência colonial e de nome amiúde.
Até que, em 1702, ao mesmo tempo que consolidavam a sua Senegâmbia, os britânicos a capturaram e a renomearam e ao forte, de St. James.
Todas as sucessivas potências coloniais se envolveram no tráfico negreiro.
Em Albreda, em parte, sob as grandes sumaúmas, damos com o maior edifício colonial, o edifício CFAO (do administrador) da era francesa, restaurado, agora usado como um bar-restaurante que não chega a desafiar o gerido pela Srª Aminata.
Os britânicos que conquistaram a colónia aos franceses, chegaram a tempo de abastecer de milhões de escravos as suas Índias Ocidentais e os E.U.A..
Avancemos até 1807. Os britânicos votaram a Abolição da Escravatura. Passaram a combate-la.
Durante largos anos, traficantes de escravos de outras nacionalidades procuraram contornar a acção anti-esclavagista britânica.
E, na Senegâmbia, em particular, os tiros dos canhões do fort Bullen de Barra com que os britânicos visavam os navios esclavagistas.
O fort Bullen já só serve de atractivo turístico. Quando o visitámos, nem isso.
Frequentavam-no três enormes vacas, deitadas entre outros tantos embondeiros seculares.
E, no entanto, África sofre um inusitado regresso da escravatura. Sofrem-na os migrantes em busca da Europa que se veem aprisionados na Líbia.
Mas não só.